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A fotografia como dispositivo

4. O SIGNO FOTOGRÁFICO

4.4 A fotografia como dispositivo

O efeito de real gerado pela fotografia, não cessou de ser denunciado durante o século XX. A intensa codificação em cada etapa do processo fotográfico, inclusive em sua leitura, foi percebida em análises semióticas, cognitivas, por desconstruções ideológicas e ainda por leituras antropológicas que demonstraram que as fotografias não comunicam universalmente a mesma mensagem (ou sequer necessariamente uma mensagem). Seriam, portanto, codificadas culturalmente.

Poderíamos buscar entender em que medida a fotografia é um dispositivo que não gera apenas objetos visíveis, representações de realidades ou de ficções, mas de visibilidades, ou demonstrações da parcialidade do real apreendido através dos limites de nossas esculturas de luz (casas, janelas, prisões, maquinas fotográficas, etc) e de nossos próprios sentidos. Nesse sentido, a evidência do fotográfico não deixa de ser também uma conformação, ou consignação que teria o poder de modelar aquilo que se pode ver.

A própria modelagem do que se considera uma representação “fiel” e objetiva do espaço depende de uma codificação bastante antiga, com raízes na pictografia. A objetividade não é mais do que uma ilusão, ou um efeito de coincidência do convencional com a forma de representação atualizada. Isto porque o dispositivo fotográfico não surgiu e se desenvolveu de forma acidental, mas derivou da antiga técnica da câmera escura que, por sua vez, foi elaborada com base em outra série de noções convencionais.

A noção de “realismo” atribuída à fotografia é claramente desnaturalizada no decorrer do século XX. O dispositivo é revelado tanto quanto as imagens que produz em diversas vertentes teóricas como o estruturalismo, que problematiza a transparência da imagem fotográfica tanto quanto a da linguagem verbal.

Ainda sobre a questão do realismo e da codificação da fotografia (que neste momento poderíamos entender como uma linguagem fotográfica), um ponto de análise parece pertinente por ilustrar outros códigos que fazem parte do processo: a pose.

Ser fotografado certamente não possui a mesma carga simbólica universalmente. As maneiras de interação com o “ser fotografado” variam imensamente. Isto porque a forma como se dá a fotografar está notavelmente codificada por convenções distintas daquelas que regem as dinâmicas conversacionais e práticas interacionais cotidianas. A representação do Eu nas fotografias é geralmente estereotipada, imbuída de uma convencionalidade cambiante conforme o gênero das interações.

Consideremos duas abordagens artísticas que buscam um realismo pela transcendência do código. Uma delas diz respeito à utilizada por Diane Arbus, e sua busca na pose deliberada de seus modelos, de um certo embaraço inerente à pose, um estranhamento. A seguinte, ao invés de um fotógrafo real, uma frase de uma personagem de um filme de Agnes Varda (1976): Jerôme, o fotógrafo explica que fotografa as mulheres que aceitam posar para ele, mas que ele é paciente e espera que elas se cansem de posar. Ao invés do estranhamento, o cansaço. O autêntico em ambos os casos não está no código cuja existência é levada a seus limites quando por fim algo se dá a ver no instante em que sua falha produz um curto- circuito, uma redundância da máscara com o rosto.

O corpo cansado das mulheres fotografadas por Jerôme ou o corpo monstruoso e desconcertante na fotografia de Diane Arbus revelam algo que foge ao controle do código, não através da intenção do referente, do gesto dos fotografados, mas na sua falha ou impossibilidade de manterem intactas as representações.

Figura 5: Diane Arbus, Female impersonator

holding long gloves

Fonte: Metropolitan Museum of Art New

York. Disponível em:

<https://www.metmuseum.org/art/collection/ search/651807> Acesso em 21 de janeiro de 2019

A explicitação e a superação do código são estratégias exploradas também na obra do fotógrafo brasileiro Rogério Reis. Em sua série “Na Lona” (1986-2001), pessoas vestidas com fantasias carnavalescas posam para o fotógrafo sobre uma lona que funciona como fundo infinito. Entretanto as dobras e a textura grosseira da lona, presa sobre uma corda, explicitam o caráter cenográfico tanto das personagens encenadas por seus modelos, quanto do ato fotográfico em si, que recai sobre as curiosas expressões da plateia que por vezes acompanha o ensaio e aparece nas fotografias. O fato de que a lona não cubra todo o quadro faz com que a própria pose entre em colapso e a falsidade recaia sobre uma nova potência de real.

As dobras, os remendos ou as bordas da lona remetem ao caráter convencional dos retratos. A fotografia não tem aí mais realidade do que as fantasias de carnaval das pessoas fotografadas e as potências do falso12 abrem espaço para a expressão das máscaras em si.

Figura 6: Imagem da série “Na Lona” de Rogério Reis

Fonte: Site do artista. Disponível em: <https://www.rogerioreis.com.br/na- lona?lightbox=i12jzt> Acesso em: 11/08/2018

De uma maneira ou de outra, trata-se de um “fazer ver”. O dispositivo deixa rastros de si mesmo e com isso o “real” fotográfico apresenta-se como uma impostura. Mas o impostor que se declara como tal corre o risco de figurar em uma camada de representação mais profunda, tão enganosa quanto a primeira. O sentido em Diane Arbus não se encontra no referente, mas naquilo que Dubois (2012) denomina de “um além do verdadeiro na própria artificialidade da representação”.