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5 O QUE DIZEM OS USUÁRIOS SOBRE O “ATALHAR” NO

6.1 Os trabalhadores do hospital e os gestores

6.1.1.5 Avaliação sobre o atalho

6.1.1.5.1 A avaliação sobre o acesso informal e a contribuição do encaixe

O encaixe, uma das denominações para o acesso informal, é trazido como um fator positivo para o hospital, o argumento que avalia o encaixe como positivo é o de que ele contribui para o cumprimento das metas do hospital.

Ao falar das faltas dos pacientes encaminhados pelo DERE, a trabalhadora argumenta que:

Quando eles (usuários) não vêm, consequentemente você não vai ter retorno pra você poder estar agendando porque esse paciente não chegou, e a gente precisa que os médicos atinjam a meta porque foi pactuado no POA/2013, por causa disso a gente consegue encaixar esses pacientes [...] se chegarem todos os casos que a gente oferta, aí não tem como fazer. (Entrevista Anastácia. Belém, 2014).

Ela continua:

É a gente informa, quer dizer, se, por exemplo eram doze, um a mais nós vamos receber pelos treze, aí esse retorno a gente marca conforme a vaga no sistema, já não é um a mais, já é a vaga no sistema, tem vaga pra retorno, aí nós vamos agendar (Entrevista Anastácia. Belém, 2014)

A falta de um usuário encaminhado pelo setor responsável pela regulação (DERE) gera uma “brecha” para o encaixe de outro usuário aleatório, o qual não estava na fila oficial, mas que já estava na fila do SUS. Em alguns casos de usuários o atraso na fila oficial é causado por ele percorrer caminhos incorretos na organização do SUS, ou por desconhecer a rede de serviço de saúde ou por desinformação53. Esta não é a única explicação para as filas, há uma complexidade analítica dos fatores que colaboram com a fila para acesso no SUS, um dos principais relatados por estudiosos da saúde pública é a não resolutividade da atenção primária (ROCHA, 2015).

No hospital, o encaixe é avaliado como parte da produção financeira para o hospital.

[Como funciona?] Recebe produção porque ela abre um prontuário, ela tem um registro, aí vai cobrar, todos os anos que ela fizer, ela é registrada aqui, e tal, faz um exame de sangue, tem o registro dela, ela vai ter um registro no Hospital, vai vir mensalmente pra consulta ou trimestralmente, então isso vai ser tudo ressarcido, vai ser pago, porque é tudo registrado. (Entrevista Roger. Belém, 03.04.2014).

O encaixe como um procedimento de gerência do serviço ambulatorial é expresso como de importância para a sustentabilidade financeira do hospital. O que aponta também para um problema central no SUS: a má gestão da regulação. Diante da má gestão o “encaixe” encontra “brechas” para sua atuação e é interpretado como uma das soluções para o cumprimento dos acordos que financiam o hospital.

Porque isso foi, por exemplo, quando nós decidimos pedir pra não entrar mais o público aqui no hospital a produção ia cair, então não tem muita saída, entendeu? [...] quando a gente pega, quando a gente autoriza uma abertura de prontuário é justamente visando a produção mensal, porque a gente informa o BPA e não o número de agendados, mas o número de atendidos, então geralmente, por exemplo, a gente marca doze pacientes, vieram seis pro hospital, então e os quatro, a gente perdeu esses quatro. É por isso, a gente só abre por isso. (Entrevista Anastácia. Belém, 2014).

53

“Para se ter uma ideia, a falta de comunicação entre médicos e usuários ou orientações incorretas sobre marcação de consultas, realização de exames e locais para retirada de medicamentos estão entra as demandas mais frequentes levantadas pela Defensoria Pública do Estado [...]. Muitas vezes o paciente que procura a Câmara já está com a consulta marcada, mas por falta de informação, acaba perdendo o atendimento” (ROCHA, 2015, p. 16).

O atalho é um dos componentes que contribuíram para o cumprimento das metas de atendimento ambulatorial, a sua ausência impacta negativamente na produção e, por conseguinte, nos recursos financeiros recebidos pelo hospital. Para além do impacto financeiro negativo através do impedimento do “encaixe” de usuários, ainda há um impacto negativo referente ao não atendimento do usuário SUS, agravado pelo fato da disponibilidade de vagas para consultas.

Mesmo os usuários que são encaminhados por meio de bilhete da direção ou dos médicos, e, excedem a meta do médico, também são registrados:

[...] aí é como tô falando pra você, aí se o médico do ambulatório pede pra gente abrir prontuário, ele que vai atender o paciente, vai ser um a mais que aquele dia ele atendeu, aí é por conta dele, ele está além da meta é problema dele [...] sim, exatamente, porque é feito um registro no prontuário, nunca, nunca perde, não perde porque o paciente vai ser registrado. (Entrevista Roger. Belém, 03.04.2014).

Uma trabalhadora do hospital relatou a diferença na avaliação entre a ajuda, ligada ao cuidado e o acesso por meio da propina, criticando a propina:

“Muita. O outro pensa no bem próprio, isso é contra todos os meus valores, formação é negativo [...] um presente [...] não pode negar (em receber), mas diz que não precisa, não é a mesma coisa que a propina. É diferente”. (Entrevista Márcia. Belém, 22.10.2014).

Se tem esse serviço no hospital, se é liberado pela unidade básica, vai pro SUS acho que não teria o porquê deu cortar, usar os atalhos, se fosse, se eles tivessem acessibilidade a esse serviço, se eles tivessem a facilidade de conseguir esse serviço, acho que não teria porque eu usar esses atalhos, coisas que não tem, tem coisas no hospital que o próprio funcionário não sabe que tem aqui no hospital, desconhecem os serviços porque mudam as rotinas e eles não informam e tem funcionário que é mesmo desligado, eu não precisaria usar se eles não tivessem a palavra que eu usei agora, se eles não tivessem facilidade de conseguir essas consultas (Entrevista Dolores. Belém, 02.04.2014).

O argumento da má funcionalidade do sistema de saúde público justifica o acesso por meio do atalho, poderíamos afirmar que o motivo justificável para o atalho seria a necessidade de atendimento e a ineficiência e/ou a restrição de vagas para o atendimento dos usuários. Os motivos citados são observáveis na realidade brasileira e possibilitam perguntar e simular um futuro para o SUS: se for corrigida a ineficiência do funcionamento da rede de serviços de saúde e houver um quantitativo de vagas aceitáveis para os usuários os “atalhos” não existirão?

Para argumentar com a pergunta acima apresento parte da experiência de trabalho de campo vivenciada em Lisboa. O sistema de saúde público em Lisboa permite a marcação de consultas nas unidades de saúde diretamente na unidade ou através de ligações telefônicas. O tempo de espera é de aproximadamente uma semana para o clínico geral e varia para as demais especialidades.

Visitei dois centros de saúde, o que poderíamos denominar de unidade básica. Há uma “tranquilidade” observável no ambiente. Os usuários aguardam sentados em cadeiras distribuídas pelo centro de acordo com as especialidades médicas e pelo profissional médico referenciado para aquele usuário. Há alguns televisores no ambiente, senhas para a chamada dos usuários, funcionários e alguns médicos circulando pelos corredores. Um ambiente diferente de algumas unidades de saúde de Belém-PA em que as filas ocupam grande parte do ambiente e o tempo de espera para o atendimento chega a ser de 2 (duas) horas ou mais.

Ao entrevistar as trabalhadoras e os trabalhadores do Mercado de Campo de Ourique, em Lisboa-PT, eles revelaram sobre o acesso por meio da marcação de consultas e as relações pessoalizadas estabelecidas.

Todas as pessoas entrevistadas relataram conhecer situações de acesso aos serviços de saúde por meio de concessões de outras pessoas que trabalham nos serviços de saúde. A marcação de consulta no Centro de Saúde por meio de um ou de uma conhecida foi revelada por 3 (três) dos informantes. A marcação de consulta para o médico de família por meio formal ocorre por telefone ou indo ao Centro de Saúde, mas os entrevistados revelaram que por conhecerem pessoas que trabalham no Centro, incluindo o médico, não necessitam telefonar para marcar, e, em alguns casos conseguem antecipar a consulta, facilitada pelo conhecimento da médica. No caso relatado pela D. Maria Rosa, a médica também frequenta o mercado de Campo de Ourique e é sua cliente na peixaria. (TAVARES, 2015).

O trabalho de campo identificou outras possibilidades de acessar o serviço de saúde por meio de favorecimento de pessoas conhecidas, uma foi o caso do Sr. Martinho ao relatar que não é morador do bairro, mas que devido à sua rede de relações sociais com pessoas do bairro de Campo de Ourique conseguiu ser incluído como usuário do Centro de Saúde local. Ele relatou que estabeleceu boas relações, tanto com pessoas influentes (status social alto) como pessoas que exercem funções consideradas de menor escalão.

Uma terceira entrevistada relatou que, às vezes, por conhecer uma funcionária do Centro de Saúde, pede a ela para marcar sua consulta. Durante a

entrevista, a D. Lili referiu que utiliza tanto o serviço do Centro de Saúde como o do Hospital. Ela relatou duas situações, ambas de trauma (perna e braço) provocado por quedas as quais a levaram ao Hospital. Na última situação, ela referiu que ao ir ao Hospital Militar, na Estrela, ela foi atendida por um médico conhecido de sua filha (Entrevistada D. Lili e Registro Diário de Campo. Lisboa-PT, 08.12.2014). Relatou ainda que:

[...] para eu marcar consulta, às vezes, vou lá (Centro de Saúde), às vezes, vem aqui uma pequena que trabalha lá, e então ela pois leva o meu número e marca (a consulta), sim, é ali pro lado da Lapa, passa aqui em Campo de Ourique, assim pra Estrela, também é perto [...] ela tem aqui (Mercado) pessoas conhecidas e vem aqui visitar, depois quando ela vem aqui a gente pede para ela marcar a consulta. Por acaso marcou, marcou para ...não... no mês passado, no fim do mês marcou-me e tenho a consulta marcada para o dia 19”. (Entrevistada D. Lili. Lisboa-PT, 08.12.2014)

Ao relacionar usuários em situações diferentes de acesso, observei e constatei que o fenômeno do atalho e suas várias denominações ocorrem tanto em situações em que o sistema de saúde público apresenta problemas sistêmicos, como o brasileiro que mantém uma rede de serviços com muitos ruídos de comunicação, principalmente na regulação, inviabilizando o acesso de forma mais eficaz, quanto em situações em que o sistema de saúde apresenta características com melhor organização das unidades de saúde para o acesso, o caso de Lisboa- PT. Os casos belenense e lisboeta indicam que o acesso pelo atalho poderá ocorrer em maior ou menor intensidade e quantidade dependendo da organização do sistema de saúde, mas as relações sociais pessoalizadas traduzidas neste estudo como o acesso por meio de “atalho” ocorrem ligadas às necessidades e às interações sociais entre conhecidos e parentes. O fenômeno das relações sociais apresentam-se como inerentes às sociedades com estrutura social marcadamente relacional (BARBOSA, 2006).