• Nenhum resultado encontrado

5 O QUE DIZEM OS USUÁRIOS SOBRE O “ATALHAR” NO

6.1 Os trabalhadores do hospital e os gestores

6.1.1.3 A seleção para o acesso por meio do atalho e as suas

6.1.1.3.1 O atalho mal sucedido

O atalho mal sucedido poderá ser por não cumprir um dos critérios preestabelecidos, como por exemplo, o do não cadastramento do médico no ambulatório. Para autorizar a consulta ambulatorial, o médico precisa ser cadastrado no ambulatório e não apenas na internação, são setores diferentes. O agente administrativo explica:

Ele mesmo, o médico do paciente pra mandar abrir prontuário não existe isso. Tentei explicar [...] ele não vai acompanhar o paciente quem vai acompanhar o teu paciente é o médico do ambulatório. – Quem é o médico que vai atender o paciente no ambulatório? (Entrevista Roger. Belém, 03.04.2014).

O cadastro do profissional médico é realizado via Cadastro Nacional dos Estabelecimentos de Saúde (CNES) que credencia aquele médico na sua especialidade e no atendimento a ser prestado no hospital. É um sistema online gerenciado pelo hospital. O agente administrativo tem acesso ao sistema e conhece quem está cadastrado, o que lhe permite e o autoriza a não abertura do prontuário para consulta de um médico não cadastrado, mesmo que o médico solicite e até mesmo use de autoritarismo com o agente administrativo. Haverá negação da consulta na medida em que será impossível disponibilizar vaga para consulta já que aquele médico não dispõe nem de espaço físico, nem de agenda no ambulatório. As normas formais são determinantes e impeditivas para o atalho neste caso. O que

não impede que o médico solicitante consulte o usuário, mas ele não será matriculado no ambulatório do hospital. O saber poder (FOUCAULT, 1996) do agente administrativo lhe permite indeferir uma solicitação médica, invertendo por um instante a hierarquia hospitalar.

Uma segunda situação de atalho mal sucedido é a forma de pedido para o atalho. Um entrevistado descreveu um atalho que poderá não ser concretizado pelo fato de o solicitante mostrar-se arrogante na situação, aqui se aproxima da técnica do jeitinho (BARBOSA, 2006), o saber pedir a alguém que dispõe de um poder para conceder o atalho.

O termo atalho, ele vem bem a calhar. Porque se a pessoa chegar na triagem e disser:

- Eu quero uma consulta com o Dr. Tal.

- Não, você tem que ir no posto de saúde, pegar encaminhamento da clínica médica, vai ser marcado por lá e pode ser que seja marcado pra (médico) ou não.

- Mas eu tenho direito.

- Sim, a senhora tem direito de ser atendida, mas o atendimento funciona assim.

Ao passo que se você ultrapassar aquela triagem lá no portão conhece alguém, servente [...]

- Doutor, será que dá pro senhor atender a minha mãe?

- Ah tá! Tudo bem, marca tal dia. Dentro desse mundo subterrâneo, eu abri uma agenda extra na quinta-feira (Entrevista Adalberto. Belém, 11.07.2014).

Por esta interpretação, o pedido ao atalho precisa seguir a linha da humildade, a expressão relacionada ao direito à saúde é criticada, e é enfrentada com outra norma formal que é a da rede SUS, seguindo a trajetória formal para acesso ao hospital. O sujeito precisa colocar-se no lugar de solicitante de um favor em prol de uma relação pessoal de amizade regada pela possível caridade cristã. O saber está em como pedir acionando as relações afetivas, mesmo que os laços sejam fracos. Acionar o direito parece atingir um saber poder do trabalhador, que já o tem, já conhece e lida cotidianamente com esse conhecimento. É necessário acionar o emocional e ter atitude de subordinação diante dos que detêm um poder saber instituído. A chamada “carteirada”, “o senhor sabe com quem está falando” disfarçado na expressão de que foi uma ordem da direção ou equivalente para que o médico atenda ao usuário, também poderá resultar em atalho mal sucedido. As atitudes para a solicitação do atalho que são interpretadas como arrogância, no caso da exigência do direito à consulta e da subordinação do médico a um superior ou a alguém que se julga importante são tratados como impossibilidades para o atalho e

reforçam o argumento de que o atalho deverá ser exercido por atos de relações pessoalizadas, baseadas em reconhecimento dos poderes instaurados no hospital e da posição de horizontalidade subordinação e inferioridade daquele que solicita o atalho e o intermediário ou concedente. A solicitação do atalho pede daquele que é instruído e conhecedor dos direitos e daquele que possui cargo ou foi enviado por uma pessoa influente um rebaixamento na escala e a horizontalização nas relações pessoalizadas.

Os atalhos mal sucedidos também poderão ocorrer pela não concordância do médico sobre o atalho ou pelo menos pela dificuldade em conceder o atalho, um relato sobre o pedido de um funcionário ao médico para antecipar um atendimento, a resposta foi para que ele retornasse por meio da marcação formal.

Dirija-se à marcação, eu diria que eu sou didático e educativo toda vez [...] chega, chega gente com exames, funcionários:

- olhe os meus exames estão prontos. - perfeitamente

Aí eu vou lá [...] por favor, chamo pra atender esse senhor.

- atenda esse senhor, explique direitinho e veja a marcação, porque se for eu fazer a marcação ... (Entrevista Clementino. Belém, 22.10.2014).

Para o médico, o problema do acesso e todas as suas dificuldades deverão ser resolvidas pelo sistema.

É, eu sei que o médico tem a parte técnica de dizer: preciso ver esse paciente daqui a dois meses, mas o sistema, ele é tão caótico, que você puxar essa responsabilidade pra si, você vai estourar o seu ambulatório, tem que ter uma mudança no sistema de regulação da consulta, entendeu? (Entrevista Clementino. Belém, 22.10.2014).

O acesso por via do atalho é uma prática estabelecida no hospital, mas sua aceitação é majoritária, mas não é unânime, ela sofre algumas críticas que são remetidas ao mau funcionamento do sistema de saúde, mais especificamente ao sistema de regulação. No caso do médico que se nega a aceitar o atalho, interpreto a sua postura como uma forma de atacar o sistema de regulação, responsabilizando-o pelos problemas do acesso. Ao fazer o usuário retornar à marcação de consulta, o médico pretende ensiná-lo a lidar com as normas e ao mesmo tempo reduz e/ou mantém o número de atendimentos programados para ele no ambulatório. Ele reproduz um discurso com base na racionalidade da administração pública.

Na pesquisa de campo, em conversa informal, a postura do profissional médico que nega o atalho por parte dos usuários foi criticada por um outro colega de profissão. O médico que atende aos usuários por meio do atalho ressaltou que existem aqueles que não aceitam atender aos usuários quando não vêm regulados pela central e criticou a conduta com os argumentos de que eles fizeram um juramento quando se formaram e que um determinado colega médico, que se nega a atender aos usuários por via do atalho, é religioso, professa o catolicismo e não pratica o que prega. Duas características foram acionadas para a crítica ao colega, uma relacionada ao não cumprimento da ética médica e a outra sobre o não exercício da caridade como princípio religioso.