• Nenhum resultado encontrado

O problema estudado foi a dificuldade para o acesso dos usuários ao Sistema Único de Saúde brasileiro, o SUS, neste caso, no ambulatório do Hospital Universitário João de Barros Barreto (HUJBB). A dificuldade vivenciada cotidianamente pelos usuários os fez criar um caminho mais rápido para atender às necessidades de saúde, o que denominei de “atalho”, também chamado pelos trabalhadores do hospital como “extra”, “cupincha” ou “porta da esperança”. Ao longo da pesquisa e com a oportunidade do estágio em Lisboa-PT, na modalidade Doutorado Sanduíche, pude constatar um termo semelhante ao utilizado no hospital para atalhar, denominado “cunha”, a expressão cotidiana mais comum dos lisboetas, encontrada na pesquisa de campo, foi “dar uma cunha” ou “fazer uma cunha”.

O problema alicerçou-se na interpretação sobre o enfrentamento do usuário por meio do “atalho” à estrutura estatal brasileira centralizadora, injusta e desigual. O atalho aproximou-se da categoria “jeitinho”, como resistência “cultural” para resolver situações cotidianas, utilizando o relacional, a pessoalidade em contraste com o modelo de sistema com princípios racionais e impessoais, esperados nas instituições. A investigação da organização do atalho como um subsistema relacional no SUS, observado no HUJBB, mais especificamente no ambulatório das especialidades, nos trouxe algumas perguntas sobre a estrutura social e cultural da sociedade brasileira e a sua influência na instituição hospitalar, assim como sobre as relações sociais em redes construídas pelos sujeitos envolvidos - os usuários e os trabalhadores do Hospital.

O estudo revelou que o “atalho” apresentou-se como uma organização com suas redes sociais parciais e limitadas (BARNES, 1987). As redes envolveram laços fracos (GRANOVETTER, 1983) em sua maioria. Elas foram tecidas agregando o conhecimento dos usuários sobre as relações sociais e sua vizinhança, associado ao conhecimento da sua rede familiar e de amigos. Esse conhecimento aciona os laços, em sua maioria fracos, e penetra na estrutura institucional hospitalar, por meio dos trabalhadores e seus micropoderes.

As redes de relações sociais construídas no bairro do Guamá foram ocasionais, um bairro urbano que congrega tradição e modernidade, mantendo as relações da vizinhança solidárias, alimentando os laços e contrastando com a impessoalidade das grandes cidades (SIMMEL, 2005).

O hospital está contido na paisagem do bairro e foi representado como um lugar para “morrer” ou para “viver”. A paisagem do bairro incorpora para os seus moradores um complexo que inclui o hospital, o antigo Instituto Médico Legal (IML) e o cemitério de Santa Isabel. O complexo remeteu aos moradores um olhar para a morte, alimentado pela história do Hospital como um sanatório denominado Domingos Freire, que tratava dos doentes diagnosticados com tuberculose. Na época, a tuberculose era incurável, e o sanatório recebia pessoas para “morrer”. A imagem do hospital foi ao longo do tempo modificada pelas descobertas e incorporação de novas tecnologias, como o uso de antibióticos e do tratamento para a tuberculose na década de 1970 e a atualização do perfil epidemiológico da região. Ele foi aberto para o tratamento de doenças infectocontagiosas e iniciou o processo de ser um Hospital com características de formação de recursos humanos. A inauguração do Centro de Estudos foi um exemplo da sua vocação para estudos e produção de conhecimento. Na década de 1990, ele foi incorporado pela Universidade Federal do Pará (UFPA) para ser um Hospital Universitário. O seu caminho como hospital formador de recursos humanos para o Sistema Único de Saúde (SUS) continuou, e na década de 2000 foi certificado como Hospital de Ensino pelos Ministérios da Educação, da Saúde e do Planejamento. Atualmente, ano de 2015, a UFPA assinou contrato com a Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (EBSERH), que será a administradora dos Hospitais Bettina Ferro de Souza e João de Barros Barreto (HUBFS), o que ficou denominado como Complexo Hospitalar da UFPA.

Ao estudar a estrutura institucional hospitalar por meio do atalho, concluí que ela se apresenta como uma estrutura rizomática (DELEUZE; GUATARRI, 2000), aberta para diferentes entradas e acesso às redes sociais internas do hospital e também à rede formal do SUS. A estrutura rizomática diferencia-se da estrutura arbórea que se apresenta de uma forma verticalizada, com definição de entradas e saídas. Esta última assemelha-se à proposta formal do SUS, com as hierarquizações dos níveis de assistência (primário, secundário e terciário). O caminho do usuário na rede SUS é visualizado como uma pirâmide, do nível da base até o ápice. Ele deverá iniciar o caminho pela atenção primária com previsão de resolutividade em torno de 80% dos problemas de saúde; caso não consiga resolver, ele será encaminhado para as especialidades e, se houver agravamento, ele será referenciado para o atendimento terciário. Resolvido seu problema de saúde, ele

retornará (contrarreferência) para a atenção primária. No caminho, ele poderá percorrer outros serviços como o dos meios e diagnósticos, o que demonstra que o percurso poderá não seguir uma linha reta progressiva. O que estou demonstrando é que há um certo conflito ou pelo menos algumas incoerências na forma e organização da estrutura entre a rede SUS e a estrutura estudada na instituição hospitalar. A estrutura rizomática está aberta e permite as entradas numa relação horizontalizada. Permite o acesso das redes sociais e seus laços fracos adentrarem a estrutura hospitalar e formarem o subsistema relacional do SUS, o que denominei “atalhos”.

As relações sociais de sujeitos a sujeitos identificadas e analisadas no hospital penetram e interferem na lógica racional e impessoal do SUS, empoderando as relações humanas diante dos sistemas formais. A lógica do instituinte (CASTORIADIS, 1982) que por meio das ações simbólicas nas instituições cria novas ações, neste caso, uma organização social denominada “atalho” é a problematizadora constante da realidade social e propulsora do novo. O “atalho” neste estudo é fruto dos sujeitos usuários a partir das suas necessidades de saúde e de seu conhecimento e poder de lidar com as redes de relações sociais. O poder relacional externo ao hospital aciona as “pontes” de ligações entre a população e os trabalhadores que, intermediados pelas “brechas” que o próprio SUS possibilita, criam um processo instituinte com alta densidade relacional. A densidade nas suas tramas institucionais revelou o emaranhado dos poderes das profissões da área da saúde e aliado ao conceito hegemônico de saúde hospitalocêntrico e com viés filantrópico o ato do “atalho” foi interpretado como determinado pelos trabalhadores acionados pelos usuários numa instituição com um misto de organização gerencial envolvendo aparentemente uma administração pública impessoal e no seu cotidiano uma gerência institucional fortemente patrimonialista (HOLANDA, 1969).

A organização atalho formou-se no ambiente hospitalar e formatou critérios fluxos para o “atalho”. As categorias profissionais envolvidas nas adjacências são formadas pelos técnicos administrativos de nível médio e superior e até mesmo os que são de empresas terceirizadas. No entanto, o profissional concedente do atalho é o médico, influenciado pelos demais trabalhadores e pelos usuários que acionam as relações sociais e os conhecimentos acumulados sobre as regras, as leis e o sobre as “brechas” inerentes ao sistema SUS. O profissional médico ainda concentra o poder da concessão burocrática por pelo menos dois motivos: 1) o SUS só aceita

o cadastro/matrícula do usuário no ambulatório a partir de consulta médica, e todas as demais consultas multiprofissionais são demandadas a partir da consulta médica; e 2) na hierarquização das profissões no hospital, o médico ainda ocupa o lugar central.

A posição dos profissionais médicos aciona o que Carapinheiro (2005) denominou “ordem negociada”, estudada nos hospitais em Lisboa-PT. Por dentro da administração formal, o grupo de médicos negocia e cria arranjos para garantir os interesses corporativos e acadêmicos. Eles são regidos por uma medicina liberal, segundo a autora. A autora, no estudo acima citado, estudou as relações de trabalho na instituição hospitalar, ela não adentrou as relações usuários-profissionais. A abordagem sobre redes de relações informais denominadas “percursos terapêuticos” foi um estudo posterior (CARAPINHEIRO, 2001).

No estudo realizado no HUJBB, encontrei vestígios de uma formação e influência de uma medicina liberal, principalmente na gerência dos consultórios, com as vagas para consultas e a não subordinação ao gerente do ambulatório, um não médico. A diferença foi a de que os casos de atalhos não são escolhidos pelo caso clínico, o que repercute institucionalmente na pesquisa, por exemplo. No caso estudado, o profissional médico negocia com o sistema formal e com as relações sociais, reafirmando o seu poder diante dos trabalhadores e usuários, uma espécie de patrimônio relacional, reconhecimento público do seu poder institucional e de classe profissional ligado a uma ideologia da caridade cristã.

Ao aproximar-me da cultura relacional brasileira e lisboeta sobre as práticas estratégicas de enfrentamento das injustiças sociais e da concessão de favores criadas pelos cidadãos acionando as relações sociais, observei aproximações e afastamentos. As estruturas sociais institucionais, tanto brasileiras como lisboetas, foram idealizadas numa lógica racional e impessoal da administração dos hospitais, quebradas pelos micropoderes constituídos pelas relações sociais dos trabalhadores e usuários.

No caso do estudo da Profa. Graça Carapinheiro (2005), internamente o Hospital foi administrado pelos interesses corporativos dos médicos que administravam por meio de uma “ordem negociada”, eles estabeleciam relações com os administradores e com os demais profissionais. A autora acena na parte final do seu estudo sobre “as margens do poder médico: as possibilidades estratégicas de