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CAPÍTULO III CAMINHANDO EM BUSCA DO KATA PESSOAL

3.3. A BASE PARA A ESTRUTURAÇÃO DO TREINAMENTO KATA PESSOAL

No teatro Nô53, os atores se submetem a um treinamento para aprimorar sua arte, para trabalhar a semente, que representa a técnica. No treinamento Kata Pessoal se procurou o aprimoramento em busca da técnica; o ator criou por meio de exercícios e técnicas extraídas do judô, específicos para a condução por este caminho de refinamento de sua arte.

Os princípios desenvolvidos no treinamento do Odin Teatret são tomados como referência em nossa pesquisa, justamente por tratarem de um treinamento em nível “pré- expressivo”, que tem como alicerce os “princípios que retornam” (BARBA, 2009, p.30). Este

53 ”Nō, Nô, Nou ou Noh (能) ou ainda Nogaku (能 楽) é uma forma clássica de teatro profissional japonês, que combina canto, pantomima, música e poesia. Executado desde o século XIV é uma das formas mais importantes do drama musical clássico japonês. Origem: Wikipédia, a enciclopédia livre”.

é o ponto de interseção entre o treinamento da pesquisa e a Antropologia Teatral. Contudo, mesmo fazendo referência aos princípios como tendo sido pesquisados por Eugenio Barba e sendo constituintes do campo da Antropologia Teatral, dentro da pesquisa foi feito de forma diferenciada das encontradas nos textos de Barba: “Equilíbrio de luxo”, “Oposição”, “Energia” e “Corpo decidido” ( id.ibid.).

Os princípios são separados por uma necessidade didática, mas na prática não há essa divisão, visto que estão intrinsecamente ligados. Por vezes, um pode ser o aspecto mais minucioso ou mais específico do que o outro. Por exemplo, o “equilíbrio de luxo” pode relacionar-se com a “oposição”, deixando-a prevalecer durante a partitura de ações.

O destaque no treinamento do Quintessência é dado ao “equilíbrio de luxo”, pois o elemento primordial é a base de quadril na realização de qualquer exercício. Este princípio é importante no treinamento e sua significação necessária à construção da presença do ator em cena. Verificou-se esse fato durante o treinamento quando os atores realizaram exercícios de formas variadas de deslocamento no espaço; quadris fixos, pernas dobradas, foco direcionado, porém olhos em constante movimento. Barba nos diz:

Normalmente olhamos para a frente e cerca de trinta graus para baixo. Se mantemos a cabeça na mesma posição e elevamos os olhos trinta graus, uma tensão muscular será criada no pescoço e no tronco, o que alterará nosso equilíbrio. O ator Kathakali segue suas mãos que compõem os mudras, com os olhos ligeiramente acima do seu campo normal de visão. O ator-dançarino balinês olha para cima. Em todos os liau

shau (‘posições estáticas’ do ator) da Ópera de Pequim, os olhos estão dirigidos para cima. Os atores de Nô descrevem como perdem todo o sentido de espaço e como eles têm dificuldade em manter seu equilíbrio, porque os buracos dos olhos em suas máscaras são muito pequenos. Isto é uma explicação para seu escorregadio modo de andar, no qual os pés nunca deixam o chão – algo como homens cegos que vão tateando, sentindo seu caminho, sempre prontos a parar em caso de obstáculos imprevistos. Todos esses atores usam um campo de visão, quando representam, diferente do usado na vida cotidiana. Sua atitude física total é mudada: o tônus muscular do tronco, a pressão dos pés, o equilíbrio. Uma mudança na maneira normal de olhar determina uma mudança qualitativa de energia. Por uma simples mudança na maneira cotidiana de olhar, esses atores são capazes de dar ímpeto a todo um novo patamar de energia (1995).

Logo, dirigir os olhos não é mais um ato mecânico, mas passou a ser transformado pelo ator numa ação, a “ação de ver” (id.ibid.). Outro princípio pontuado é a “dilatação”, que Barba explica a partir do “equilíbrio” e da “oposição”, os quais estão “intimamente relacionada com a organicidade e manipulação das energias potenciais e pessoais do ator em relação às ações ou sequência de ações” (FERRACINI, 2003, p. 147). Ao falar de “dilatação” o autor já se relaciona com outro princípio, o da “manipulação de energia”, sendo esta relacionada às oscilações de densidades musculares. Consideramos que, mesmo oscilando

entre grandes e pequenas quantidades de energia, esse manipular deve estar presente, e que o centro de irradiação da mesma está localizado na região do abdômen. No treinamento do

Quintessência, optou-se chamar essa manipulação de Koshi, o qual, de acordo com Barba é o

termo que denota a presença, ou a vida do ator no Japão.

A “intenção”, “impulso” e o “corpo decidido” serão focados como elemento da ação física compreende-se estes princípios segundo FERRACINI (2003) estão na base da “pré-expressividade” à expressividade, intensificando a ideia da ação física como parte entre ambos os níveis.

O treinamento fundamentado nesses princípios foi um espaço para desenvolver o próprio caminho suave. Por isto, não é algo acabado, mas contínuo, pois o princípio base do judô é justamente essa busca do conhecer-se e dominar-se e dominar-se é triunfar.

A seleção das técnicas (waza) foi realizada levando-se em consideração os seguintes critérios: grau de dificuldade em equilíbrio, plasticidade; envolvimento do corpo e adequação ao foco pretendido. Os waza foram escolhidos de acordo com partes do corpo a serem focadas, conforme os exemplos: no princípio do movimento circular, preferiram-se os rolamentos (ukemi) e giro do corpo (tai-sabaki), pois neste o movimento esférico é foco principal; quando se buscava os movimentos com o quadril (koshi), preferiam-se técnicas de quadril (koshi-waza), quando o foco era a prontidão, optou-se pelos ataques livres (randori). O objetivo durante a prática era observar como o corpo se comportava em cada momento e perceber, a partir dessas movimentações a amplitude das possibilidades corporais que eram geradas.

As técnicas selecionadas eram repetidas até adquirirem fluência. O objetivo das repetições era aprender as técnicas a partir do domínio do psicofísico, não somente da parte em destaque, despertando a consciência dos atores para a utilização dos músculos e articulações não utilizadas cotidianamente. Nesta prática, assim como em todas, foi fundamental a concentração. Corroborando com Eugenio Barba os objetivos das artes marciais é aprender a estar presente no exato momento da ação. Este tipo de presença é de suma importância para atores que almejam ser capazes de recriar toda noite, esta qualidade de energia que os torna vivos aos olhos do espectador (BARBA, 1995, p. 197).

E ainda segundo Eugenio Barba “é talvez esse objetivo comum, apesar dos resultados diferentes, que explica a influência que as artes marciais tiveram sobre a maioria das formas teatrais do oriente” (id.ibid.)