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CAPÍTULO II – ESPECIFICIDADES DE UM TREINAMENTO PSICOFÍSICO COM

2.1. TAMERU – EM BUSCA DE UM CAMINHO SUAVE PARA O TREINAMENTO

2.1.3. Por uma prontidão às tarefas: domínio psicofísico

A continuidade do treinamento psicofísico com o judô permite ao artista adquirir a prontidão manifesta no seu domínio psicofísico. Contudo, esta prontidão difere do ato de decidir. Neste sentido, o artista já está decidido antes de executar o movimento. A energia desenvolvida durante o itinerário e a assiduidade do treinamento desenvolve habilidades físicas e mentais, além de permitir que ambas se produzam de acordo com a urgência do mesmo.

O professor Kano deixou como ensinamento que por meio do treinamento a pessoa deve se disciplinar, cultivando o seu corpo e espírito por meio das técnicas de ataque e defesa, fazendo engrandecer a essência do caminho rumo ao domínio do movimento e ao estado similar ao da árvore salgueiro, mencionada na lenda “As cerejeiras e o salgueiro” citada mais acima, à página 48. O melhor uso da energia e o bem estar mútuo é uma versão resumida dos ensinamentos de Jigoro Kano, que definiu como objetivo último do judô o apuro do ser humano em benefício do mundo.

O kata e o randori são ambos, formas de treinamento mental, sendo o randori (treino livre) mais eficaz, na medida em que, no mesmo, deve se identificar a fraqueza do adversário e estar sempre pronto para atacá-lo com todos os recursos disponíveis, quando a oportunidade surgir, sem violar as regras do judô.

A prática do randori torna o praticante disciplinado, solícito, cauteloso e deliberado em suas ações. Ao mesmo tempo leva-o ao aprendizado de tomar decisões rápidas e agir com presteza, tanto para atacar como para defender. No randori não há lugar para os indecisos. Nesta prática, nunca existe a certeza de qual técnica o oponente irá utilizar, assim, deve-se manter sempre a guarda, estando sempre de prontidão. A atenção, observação, imaginação e o julgamento são naturalmente desenvolvidos como atributos a serem utilizados não só no dojo (área de treinamento do judô) como no dia a dia.

Durante a prática do randori são verificadas as complexas relações físico-mentais existentes entre os dois praticantes. Com este treino aprendemos e compreendemos o princípio da máxima eficiência, mesmo quando somos fisicamente mais fortes. É muito mais difícil vencer utilizando técnica do que utilizando força bruta, pois para isso, se faz necessário a aplicação do princípio – também presente no Teatro Antropológico – de máximo de energia para um mínimo de movimento.

Este princípio pode ser aplicado à vida diária, quando os praticantes aprendem que a persuasão é em última análise mais eficiente que a coerção. O mesmo fundamento pode

ser aplicado no treinamento do ator. Outro aprendizado é a aplicação da quantidade correta de força, a qual precisa ser nunca superior e, ao mesmo tempo, nunca inferior, mas necessária à situação de combate. Neste patamar, inexiste a preocupação, do artista marcial, com o gasto de energia, desde que seja aplicada, ou seja, aplicada com propriedade em relação ao momento e à intensidade.

No randori ocasionalmente nos defrontamos com um oponente agressivo e que deseja vencer a qualquer custo. Aprendemos nos treinamentos que não devemos resistir diretamente com força, mas sim movimentar o oponente até que sua fúria e força sejam exauridas, para então atacar.

O treinamento de judô nos ensina a descobrir o melhor caminho para agir. Aprendemos que em qualquer circunstância, a preocupação é um desperdício de energia. O paradoxo é que o homem que falha e o que obtém sucesso, estão na mesma posição. Cada um necessita decidir a próxima ação, escolhendo o curso que o levará ao futuro, ao próximo momento (KANO, op.cit.).

No extremo oriente, existe a crença numa força que os japoneses chamam de ki e os chineses de ch'i. O ki pode ser descrito como a força propulsora básica do Universo, a energia universal da qual toda matéria e toda vida são feitas. Ela é também a força propulsora que se esconde por trás da consciência, sendo por esse motivo frequentemente chamado de energia psicofísica (energia mental, física e emocional).

Esse encontro corpo-mente é o estado da correta harmonia que forma uma tríade: respiração – postura – concentração, em acordo harmonioso. Essa harmonia permite que se obtenha contato com a força interior, com os impulsos que emergem de dentro de nós. Ela pode, ademais, ser percebida pelas outras pessoas. O termo kiai é usado frequentemente para designar essa força interior que surge a partir da serenidade do corpo e do espírito. Quando dizem que alguém tem um forte kiai significa que este alguém transmite essa força. O termo "energia espiritual" (id.ibid.) também pode ser usado para descrever o kiai.

O sentido de “aqui e agora” (NICHOLS, 1993), o estar pronto, tem como base a respiração. Em nosso treinamento percebemos que, quando respiramos com o diafragma (o que depende de nossa postura e concentração), sentimos mudanças nas propriedades de nossas vibrações. Por vibrações entendemos o alerta sinestésico (dos sentidos), da atenção (pensamento), foco (para onde o olhar aponta) e um domínio dos movimentos extraordinário. Nesse processo, deduzimos, ganhamos maior harmonia com o ki. A sede dessas vibrações é o

tanden (abdômen), o centro do hara (centro geométrico de cada corpo, chamado por nós de centro psicofísico), também conhecido, pelos judocas, como o centro do indivíduo atleta. Seja

no zazen (posição de concentração, pela qual as nádegas se apoiam nos calcanhares, estando o praticante literalmente sentado sobre as suas pernas dobradas) ou durante a execução das artes

Zen (ciência da meditação). A respiração Zen, ao convergir para o tanden, altera o ritmo de nossas vibrações e isso, por sua vez, gera o estado mental associado ao mushin, um estado de serenidade absoluta que se pode corresponder com o que é definido por Grotowski como “ato total”:

[...] Refiro-me ao ponto mais importante da arte do ator: que o ator deve atingir (não tenhamos medo do nome) um ato total, que faça qualquer coisa com todo o seu ser, e não apenas um gesto mecânico (e, portanto rígido) de braço ou de perna, sem uma expressão facial ajudada por uma inflexão e um pensamento lógico. Nenhum pensamento pode orientar todo o organismo de um ator de forma viva. Deve estimulá-lo, e isso é tudo o que um pensamento pode realmente fazer. Sem compromisso, seu organismo para de viver, seus impulsos crescem superficialmente. Entre uma reação total e uma reação dirigida por um pensamento, há a mesma diferença que entre uma árvore e uma planta. Como resultado final, estamos falando da impossibilidade de separar o físico do espiritual. O “ator não deve usar seu organismo para ilustrar “um movimento da alma”; deve realizar este movimento com o seu organismo” (op.cit. Ênfases originais).

Quando se está em um shiai, numa luta de competição, se age muitas vezes de forma instintiva. Alternativamente, há momentos em que o consciente nos trava e não agimos, pois perdemos o tempo da ação devido a pensarmos no que devemos fazer. Por conseguinte, procuramos estar instintivamente conscientes, pronto para agir e reagir durante o combate, correspondendo-nos ao “ato total” no qual fala Grotowski. Para isto, notamos, carecemos reunir o instinto e a consciência, em trabalho absolutamente à procura da criação de ações psicofísicas, nas quais, conforme tratamos mais acima, sanciona-se a união do corpo com a mente, vale dizer, na unidade de um organismo totalizado.