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CAPÍTULO III CAMINHANDO EM BUSCA DO KATA PESSOAL

3.4. COMPOSIÇÃO DO TREINAMENTO KATA PESSOAL

3.4.2. Técnicas corporais codificados do judô

3.4.2.5. Sequência de entradas para arremesso sem quedas

Entrada de golpes sem o kake (finalização). O ator/bailarino executa várias entradas da mesma técnica sem arremessar o uke (aquele que recebe a ação), pois as fases de uma projeção são as seguintes: kuzushi, tsukuri e kake, respectivamente: desequilíbrio, preparação e arremesso. Neste segmento do treinamento não é realizado o kake, isto é, só há entradas sem arremessos; gerando retenções e oposições de ações que exigem do praticante um gasto máximo de energia e de impulsos externos e principalmente internos, além de utilizar inúmeros movimentos do torso.

Para ser eficiente, a prática do uchi-komi (repetição de entradas de golpes) faz necessária exploração superlativa do estado psicofísico, onde o corpo e a mente precisam estar conectados. Na prática do uchi-komi é imprescindível que estas partes estejam conectadas para que o objetivo do exercício seja alcançado, que é o aprimoramento da técnica.

O uchi-komi faz parte do treinamento para se obter êxito na aplicação do nage-

waza, ou melhor, em todo o treinamento. Para que o uke (atacado) seja derrubado é necessário que todas as partes do corpo sejam mobilizadas de forma controlada, todos os movimentos, por menor que sejam só serão eficientes se estiverem imersos num trabalho psicofísico. Esta prática tem como objetivo o aprimoramento técnico, fundamentado nos princípios desenvolvidos pelo mestre Jigoro Kano: o melhor uso da energia, o bem estar mútuo, a flexibilidade diante de fatos novos, a persistência depois da queda e ceder para vencer.

Para alcançar este objetivo, é exigida a prática constante. A não utilização da força muscular para a derrubada do atacante e, consequentemente, a utilização de todo o sistema corporal como unidade, conduz o praticante de judô à autoconscientização corporal e a um estado de prontidão. Isso porque o corpo todo trabalha, sendo que o resultado dessa parte do treinamento é a ampliação da percepção do próprio corpo, já que os automatismos cotidianos são afastados em prol de uma prática atenta e concentrados.

Ao iniciar a prática, um dos focos principais é o desenvolvimento da percepção de que esta deve ser rápida o suficiente para que seja possível a execução de uma defesa sutil e refinada, aproveitando-se da energia contrária, tais como esquivar e bloquear um ataque, imediatamente após seu início, a fim de aproveitar a intensidade da energia desse momento.

Em uma situação de perigo, de ataque real, quando se precisa agir e não pensar, o corpo deve estar preparado para agir de forma mais eficiente, conforme as exigências do

momento. O que se pretende conquistar com este treinamento é a harmonia do corpo e da mente, é o autoconhecimento, a disciplina, o treinamento adequado e regular, o controle da respiração e as flexibilidades física e mental.

Agora é essencial estabelecer as conexões entre as características do treinamento de judô abordadas e o trabalho do ator, revelando de qual forma esta arte marcial pode ser aproveitada como ferramenta tanto para o aprimoramento corporal do ator como para a construção das ações físicas.

Primeiramente, é fundamental que o ator/bailarino tenha consciência do seu corpo, do corpo em relação ao espaço e domínio técnico de seus movimentos. No entanto, o que se percebe é que ainda há atores que atuam instintivamente, sem nenhum tipo de consciência corporal, o que dificulta e até impossibilita o aprofundamento das ações, isto é, realiza-se um trabalho confuso, onde não se consegue comunicar o que se pretendia originalmente. No treinamento psicofísico com o judô, a busca está no desenvolvimento da sensibilidade e não a habilidade de um judoca. Em relação a isto, o diretor inglês, radicado na França, Peter Brook (1925) assinala que:

Quando nossos atores fazem exercícios de acrobacia, é para desenvolver a sensibilidade e não a habilidade acrobática. Um ator que nunca faz exercícios só interpreta dos ombros para cima... De fato, é muito fácil ser sensível na fala, no rosto, ou nos dedos, mas o que a natureza não nos deu, e precisa ser desenvolvido através de exercício, é a mesma sensibilidade no resto do corpo: nas costas, nas pernas, no traseiro. Ser sensível, para um ator, significa estar permanentemente em contato com a totalidade de seu corpo. Quando iniciar um movimento, ele deve saber exatamente a posição de cada membro. (2002, p. 17).

O uchi-komi tem como centro de energia o koshi, região do quadril, onde essa energia é despertada e ampliada de forma a atingir as extremidades, pois os membros da periferia do corpo devem ser tão expressivos quanto o tronco. Nele, a energia trabalhada parece sair do centro do quadril para todo o corpo. Este exercício ainda aumenta a qualidade de equilíbrio, visto que o ator deve ser capaz de atingi-lo em cada movimento que faz e assim perceber, de forma minuciosa; por exemplo, em que perna está apoiado, em que base ocorre a transferência de peso e onde está seu centro. A partir desta conquista, o ator poderá se permitir oscilar entre o equilíbrio e o desequilíbrio, sem prejudicar suas ações, ampliando cada vez mais seus limites corporais e com isso obter a dilatação corporal.

O ato de repetir no fazer teatral contemporâneo pode ser descrito como sendo o

uchi-komi, pois ele precisa ser executado de uma forma consciente para poder buscar o aprimoramento no que diz respeito à consciência de si mesmo, por meio da segurança e

confiança, pois é a partir da experiência vivida e sentida que se constrói confiança no praticante.

Ainda no que concerne à repetição, é importante esclarecê-la a fim de compreender sua relevância para o aprimoramento de uma partitura física. Ao se executar uma ação vez por outra, não se está, na verdade, executando a mesma ação igual, pois, cada vez que se executa algo em sua essência, este algo é modificado e há um avanço em termos de qualidade, ou seja, a ação vai sendo lapidada. Muitas vezes estas mudanças parecem imperceptíveis, embora este aprimoramento seja percebido ao final de um período.

É salutar apontar que a repetição mecânica, além de não ser benéfica ao ator, prejudica-o, na medida em que substitui hábitos antigos e nocivos por outros igualmente nocivos. Nesse sentido, Peter Brook critica a palavra francesa “répétition” para designar “ensaio”, afirmando que evocaria um trabalho quase mecânico, ao passo que os ensaios se desenvolvessem a cada vez de maneira diferente, e são, às vezes, criativos. Caso não o fossem ou se prolongassem na repetição infinita da mesma peça, a morte do teatro seria rapidamente perceptível (BROOK apud PAVIS, 1996, p. 129).

Essa crítica de Brook é que se quer evitar durante o andamento desta pesquisa. O que se buscou durante o treinamento foi a repetição, promovedora do aprimoramento das ações instigadora da criatividade do ator toda vez que ele repete.