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CAPÍTULO III CAMINHANDO EM BUSCA DO KATA PESSOAL

3.4. COMPOSIÇÃO DO TREINAMENTO KATA PESSOAL

3.4.2. Técnicas corporais codificados do judô

3.4.2.6. Relação tori e uke

O randori (exercícios livres, luta de treino) é uma forma de treinamento mental, nele você deve buscar as fraquezas do oponente e estar pronto para atacar com todos os recursos disponíveis no momento em que encontrar uma brecha, sem violar as regras do judô. A prática do randori faz com que os praticantes fiquem mais interessados, cuidadosos, cautelosos e determinados para o momento de agir. Ao mesmo tempo, eles aprendem a analisar, a tomar decisões rápidas e a agir imediatamente, pois, tanto no ataque quanto na defesa, no randori não há lugar para a indecisão.

No randori, nunca se sabe a técnica que virá do oponente, por isso precisa-se ficar sempre de prontidão. Segundo Jigoro Kano estar alerta se torna uma segunda natureza. O praticante também adquire boa postura e autoconfiança por saber que é capaz de lidar com qualquer eventualidade. O domínio da atenção, observação, imaginação, raciocínio e julgamento aumentam e estes são atributos úteis quanto na vida diária como no dojo ou no palco.

Quando se pratica randori investigam-se as relações complexas, psicofísicas, que existem entre os praticantes tori (que ataca) e uke (que defende). Neste treino livre aprendemos a usar o princípio da máxima eficiência mesmo quando podemos vencer facilmente o oponente. É muito mais saudável vencer o oponente com a técnica apropriada do que com a força bruta. Outro princípio desta prática é aplicar apenas a quantidade certa de força – nunca de mais, nunca de menos.

Os dois praticantes no randori exercem ora o papel de tori ora de uke. Entretanto, essa relação precisa ser uma, são dois corpos que se transformam em apenas um. O corpo age como se um fosse a sombra do outro. O mesmo deve se dá com o ator. É comum encontrar atores individualistas, que não conseguem ter uma conexão com seu colega de trabalho, o que muitas vezes acontece pela ansiedade ou insegurança ou pela falta de prática de trabalhar com o outro. Não conseguem ou desconhecem a energia que o outro lança em sua direção, permanecendo desligados do momento, do outro e talvez de si mesmo. O que é relevante para a pesquisa em questão é justamente a conexão tori e uke, i.e., dos atores em cena.

Em prol deste descaso nesta relação tori/uke, a falta de conexão interrompe o fluxo de energia que existe entre um e outro. A energia produzida por um não alimenta as ações do outro. Esta falta dificulta o ato criativo, justamente por não ser aproveitada a energia do colega. O ator em cena deve estar sempre conectado com o outro como se estivesse no movimento do octógono do happo-kuzushi, um espiral que se desenvolve a cada repetição.

É esse devir do happo-kuzushi que deixa torna o ator vivo em cena, onde ele dialoga, fisicamente ou não com seu parceiro, e quando isto acontece o público percebe esta conexão entre os atores; pois estão interagindo e não simplesmente repetindo marcações de forma mecânica.

A prática do judô sempre se fundamenta na relação tori/uke, mesmo que às vezes um seja imaginado pelo outro, pois nesta arte marcial existe o treinamento sombra, onde um praticante treina sozinho como se o outro estivesse treinando com ele. Esta relação dos praticantes faz a luta parecer um bailar, os movimentos fluem, mas é necessário manter sempre um alto grau de atenção e visão periférica. Quando estamos na posição de quem é atacado (uke), não sabemos como virá o ataque e, se estivermos atacando (tori), não sabemos qual a defesa escolhida pelo atacado. Este jogo é que estimula o momento certo, o início do movimento. Percebe-se, portanto, que ambos devem estar conectados todo o tempo.

O estado de alerta que foi citado no parágrafo anterior é um estado de energia, de prontidão que antecede a defesa. Considero-o semelhante à “pré-expressividade” do ator, postulada por Eugênio Barba, que diz que a mesma é “como o nível que se ocupa com o como

tornar a energia do ator cenicamente viva, isto é, com como o ator pode tornar-se uma presença que atrai imediatamente a atenção do espectador” (1995, p. 188). Assim como o judoca não conseguirá defender-se adequadamente, também não conseguirá corresponder à proposta do parceiro se estiver no momento anterior em um estado zero de energia e de atenção.

No randori, o foco central do corpo é o koshi, gerador de energia e a precisão com que se usa o mesmo, tornando-se possível caminhar sem a utilização de força excessiva. O

koshi, também desperta, a energia do centro, tornando os movimentos mais críveis. É salutar dizer que neste processo não somente o tori deve tomar consciência deste centro, mas o uke também, pois desta forma ele alcançará maior equilíbrio e maior flexibilidade corporal. Assim como existe a conexão tori/uke, o desafio maior é manter o foco nesse centro no momento da interação com o parceiro.

Na prática do randori inexiste o acaso, tudo deve ser feito conscientemente a partir do que foi aprendido no treinamento. Dentro dessa prática foi detectado o que Eugenio Barba chama de princípio de oposição que é a base do teatro oriental, descrito por ele da seguinte forma: “ de acordo com o princípio da oposição. Se se deseja ir para a esquerda, começa-se indo para a direita, então, para-se subitamente e volta-se para a esquerda. Se se deseja agachar, primeiro se levanta na ponta dos pés e então se agacha.” (id.ibid).

Isto na prática do randori nos lembra da oposição do corpo no próprio espaço, ou seja, quando nos deslocamos para a esquerda e atacamos para pela direita, estabelecendo uma movimentação oposta, esta cria uma tensão no corpo mobilizando, assim, um gasto muito maior de energia.

Ao fazer esse desequilíbrio, o olhar precisa estar focado, não estaticamente, mas no todo, permitindo o estado de prontidão, logo o olhar precisou ser focado para catar detalhes e atento para captar tudo o que se passava ao seu redor. Em virtude dos deslocamentos executados no tai-sabaki (giro do corpo) serem periféricos é necessário que neste momento o olhar acompanhe a trajetória do movimento.

Este exercício se fez eficiente, pois em dos objetivos desta prática era que este ator se tornar-se independente para se comunicar de forma mais ampla e criativa, foi alcançado; pois despertou este ator para novas possibilidades e limites corporais, preparando seu corpo para novas posturas possibilitando um processo criativo em seu Kata Pessoal.

Quando se treina judô se busca a técnica e nesse treinamento com os atores a busca é a mesma, é a busca da técnica, o aprimoramento desta, e esta tecnicidade se deve as experiências ao longo da vida e de seu treinamento. A técnica é a busca incessante do

treinamento psicofísico, pois é ela que nos fez percorrer o caminho suave, pois houve momentos em que as ações estavam vazias, sem qualidade, parávamos e voltávamos para as técnicas do judô, as que foram selecionadas para o treinamento, com o foco de reconectar-nos a raiz do processo, o judô.

Este trabalho de randori nos torna conscientes do funcionamento do corpo e percepção dele em relação ao espaço e ao outro. O ator em cena precisa ter a precisão como seu corpo deve se movimentar no espaço e consequentemente as partes do corpo, é necessário manter a relação corpo-espaço, corpo-corpo, e isto só foi possível com a constância da prática; quando se tem o domínio do movimentar-se ele se torna instintivo, logo a importância do domínio dessa prática busca um resultado com qualidade.

Para Yoshi Oida duas coisas concorrem para uma boa atuação: domínio técnico e fluidez mental. Ambas são resultantes de trabalho. Domínio técnico para que se possa explorar as ferramentas de que dispõe fluidez mental para compreender, apropriar-se e recriar com os instrumentos de que dispõe, ou seja, o ator precisa estar sempre pronto para atuar, pois este requer a utilização de uma série de ferramentas que precisam estar disponíveis quando requisitadas, quanto mais estes recursos estiverem disponíveis, melhores serão os resultados alcançados neste encontro do ator com a obra (2001, p. 171).

A cada dia de prática de randori e uchi-komi (repetição de entradas), um novo desafio era encontrado e com muito treino era superado. O treinamento com o randori começa a partir da conexão tori/uke, dentro dessa parte do treino foram realizados movimentos que focavam a variação de energia, a trajetória do movimento e as formas variadas de equilíbrio que o corpo proporcionava. Para tanto, primeiramente experimentou-se a execução dos movimentos da forma como eles são realizados nos treinos em dojos, ou seja, em dupla, observando-se o grau de energia utilizado e a movimentação corporal em cada situação. Observou-se que nesta prática havia uma enorme variação de energia quando se executava a técnica sem e com o uke. No primeiro caso, a energia gasta era tão intensa como no segundo caso, a energia gasta não era tão intensa como no segundo caso, já que não existia a resistência contrária. Observe o conjunto da figura 46:

Figura46: Ator Mailson executando seu treinamento sombra/solitário. Fotografia: Brida Carvalho

O objetivo desse treino era de que o ator conseguisse mobilizar um grau intenso de energia como se houvesse alguém propondo uma resistência, aumentando sua presença em cena. No início, a ausência do colega acarretava quebra da energia. Entretanto, com a evolução do treinamento, esta equalização de energia foi aos poucos sendo conquistada, chegando bem perto do que Barba chama de “corpo dilatado” (BARBA, 1995, p. 54)57. Como segundo momento experimentou-se improvisar a partir das sensações obtidas no exercício anterior, ora em dupla, ora individualmente. Notou-se assim, nesses experimentos a profunda conexão que precisa e deve existir entre os parceiros, que devem manter sempre a escuta, deixando-se sensibilizar pela energia irradiada pelo outro, de forma a agir em harmonia. Um é responsável pelo outro em todos os momentos do treinamento.

A variação de energia como recurso para a alteração dos estados emocionais também foi utilizada. A partir dos níveis de tensão utilizados em cada técnica, experimentaram-se como eles poderiam ser aproveitados nas improvisações, sem que estivessem necessariamente conectados ao seu uso original. Dessa forma, uma movimentação, independentemente de como ela é realizada no dojo, foi experimentada com a máxima tensão e o máximo de relaxamento. A partir disso, experimentou-se como esse estímulo externo transformava as movimentações e as ações e como afetava a parte emocional.

O randori foi ideal para desenvolver o cuidado com o físico, pois envolve todas as partes do corpo e, diferentemente das ginásticas, todos os seus movimentos têm um propósito e são executados com energia psicofísica, pois o objetivo desse treinamento físico organizado e constante é controlar com aprimoramento o psicofísico e preparar a pessoa para reagir em qualquer emergência acidental ou intencional.

57O corpo dilatado é um corpo quente, mas não no sentido emocional ou sentimental. Sentimento e emoção são apenas uma consequência, tanto para o ator como para o espectador. O corpo dilatado é acima de tudo um corpo incandescente, no sentido científico do termo: as partículas que compõem o comportamento cotidiano foram excitadas e produzem mais energia, sofreram um incremento de movimento, separam-se mais, atraem-se e opõem-se com mais força, num espaço mais amplo ou reduzido (BARBA, 1995, p. 54).