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CAPÍTULO II – ESPECIFICIDADES DE UM TREINAMENTO PSICOFÍSICO COM

2.1. TAMERU – EM BUSCA DE UM CAMINHO SUAVE PARA O TREINAMENTO

2.1.6. A essência do kiai

Faz-se necessário falar do kiai que, apesar de ser algo mais sentido e vivido do que escrito, é um assunto que entra na esfera filosófica do judô. O kiai é fundamental na arte marcial. A terminologia ki significa força, uma força universal, relativamente ao indivíduo, também dita força espiritual, ou simplesmente espírito. Ai – união; logo, temos como kiai, a união espiritual. O ki unido, concentrado, no indivíduo, constitui o kiai; estes dois termos designam a mesma coisa, seja no estado estático (latente), seja no dinâmico (em movimento). Todos os seres humanos possuem naturalmente o ki, em maior ou menor grau. O kiai-do é a arte de cultivar o kiai, isto é, a arte de acumulá-lo e de empregá-lo em combate.

Segundo a teoria marcial Japonesa, o kiai, alma de todas as artes marciais, deve concentrar-se no baixo ventre, no plexo solar, de onde explode toda a força e energia liberada pelo som do kiai, onde se encontra toda a fonte de ação marcial. O emprego do kiai constitui uma liberação de força que pode ser súbita, ou lenta.

Neste processo estabelece-se a união espiritual entre os oponentes. Os grandes mestres das artes marciais afirmam que as regras a seguir contem o segredo do ki:

Não tenho pais, faço do céu e da terra meus pais, Não tenho casa, faço do saika tandem, a minha casa;

Não tenho poder divino, faço da honestidade, o meu poder divino, Não tenho meios, faço da docilidade os meus meios;

Não tenho poder mágico, faço da personalidade o meu poder mágico; Não tenho corpo, faço do estoicismo o meu corpo,

Não tenho olhos, faço do clarão do relâmpago, os meus olhos; Não tenho orelhas, faço da sensibilidade as minhas orelhas, Não tenho membros, faço da prontidão os meus membros; Não tenho leis, faço da autoproteção, as minhas leis,

Não tenho desígnios, faço do oportunismo os meus desígnios; Não tenho milagres, faço da lei justa os meus milagres, Não tenho tática, faço da plenitude e vazio, a minha tática; Não tenho talento, faço do espírito pronto o meu talento, Não tenho amigos, faço do meu espírito o meu amigo;

Não tenho inimigos, faço de minha imprudência, o meu inimigo,

Não tenho armadura, faço da benevolência e honestidade, a minha armadura, Não tenho castelo, faço do espírito imóvel (fudo-shin) o meu castelo;

Não tenho espada, faço do espírito livre (um-shin) a minha espada. (GUIMARÃES, 2002).

Vemos, portanto, que o kiai não é simplesmente um grito, ou um som alto, mas uma liberação potente de energia, capaz de inibir estímulos e reações do adversário. No treinamento de judô, o kiai consiste em criar um estado psicológico tal que guarda a iniciativa. O judoca que utiliza o kiai descontrai-se primeiro de corpo e de espírito, o seu corpo deve ser leve, mas firme, o tronco firme, o queixo colocado para dentro, em uma força subjacente concentrada no baixo-ventre (tanden, koshi).

As deslocações são ligeiras e comandadas pelo tai-sabaki (esquiva do corpo dentro do tatame). Os nervos distendidos estão prontos a responder ao primeiro ataque do oponente. O espírito, como o corpo, está livre de toda a preocupação, distendido, mas vigilante. A cada instante, o judoca molda-se pelo seu adversário ao ponto de estar em comunicação total e perfeita com este. Os dois corpos, os dois espíritos, não formam mais que um. O adversário mais forte, isto é, o mais ligeiro, mais rápido e mais vigilante, conduz o combate; no momento em que o equilíbrio se rompe, tal como um relâmpago, sem o menor raciocínio, sem a menor hesitação, o movimento parte, a projeção irresistível executa-se. Esse devir é o processo entre o tori (atacante) e o uke (o atacado), mais adiante nos estendemos sobre a relação de ambos.

A respiração apresenta aqui um grande papel. Tori (quem faz o ataque) ataca no fim da sua inspiração/inicio da expiração, ou seja, no fim da expiração/inicio da inspiração do uke (quem faz a defesa). Este fato provoca por vezes uma descarga respiratória e nervosa, um grito seco, possante, que parece sair das entranhas do tori. A tensão nervosa descarrega- se, o ar é expelido dos pulmões, um grito estala. Um parceiro é vencido, o outro é vencedor. O kiai entrou em ação. É claro que o kiai nem sempre é expelido quando se tem êxito no

golpe, vale ressaltar que esse aparente grito é, na realidade, uma reunião de energia, é o estado psicofísico em harmonia.

De acordo com o Sensei Morihiro Saito35, o kiai é algo que vem com absoluta naturalidade, quando se tem ki ou energia. Ele vem por si mesmo. Quando estamos em treinamento buscamos o ensinamento do grande mestre Jigoro Kano, o qual nos ensinou que devemos gritar o kiai emitindo a voz a partir do abdômen. De fato, nas artes marciais, um

kiai forte é sinal de boa energia. Isso é importante para fazer o kiai. Treinar sem kiai não traz grandes progressos. Não é forte e não tem energia. Com um kiai forte, o treinamento é cheio de energia. Quando começamos o treinamento enfatizei a importância do kiai no trabalho psicofísico. Acreditamos que esta mesma importância do kiai deve ser dada no treinamento com outros atores que venham a treinar sua arte por meio do judô.

Na verdade, o kiai é o uso consciente de uma técnica que todos nós já usamos inconscientemente. Ele deve vir do fundo do koshi e não apenas da garganta. Por exemplo, quando você contrai o abdômen ao levantar algum peso e emite um grunhido, executa é uma forma rudimentar de kiai. Treinando o kiai, você estará aprendendo a usar de modo mais eficiente seu potencial de energia vital, que é o ki.

Primeiramente há uma preparação para a ação, psicofísica. Aqui, o kiai tem duas fases, o retesamento e o impulso. A fase de retesamento consiste na contração dos músculos abdominais e inspiração profunda; assim como o cérebro é o comandante das atividades mentais, o abdômen é o das atividades físicas. A contração dos músculos abdominais prepara o corpo para um surto de energia. A inspiração profunda enriquece a corrente sanguínea de oxigênio, indispensável para o organismo que vai depender dessa energia adicional. A segunda fase é o impulso: nesta fase a ação essencial é levada a termo (a ação de levantar, atirar, empurrar ou desferir o golpe), enquanto o ar é expirado bruscamente.

O som produz dois efeitos psicológicos: assusta o adversário, e aumenta a coragem do atacante. Qualquer som pode ser usado como kiai. Muitas vezes o som ki é usado durante a preparação para o golpe e o som ai durante a execução. Com o treinamento, é possível concentrar a energia onde ela é mais necessária, em vez de espalhá-la pelo corpo. Isto envolve concentração psicofísica que canaliza a energia para regiões definidas do corpo. O

35 Morihiro Saito, foi aluno do Fundador do aiki-do durante longo tempo e treinou muito diretamente sob sua supervisão, talvez o aikidoista que mais tempo treinou sobre o grande mestre.. Ele era uma pessoa sem grande cultura formal, como se pode observar neste entrevista, mas cheio de conhecimentos práticos. Ele viveu sua vida em Iwama, uma cidadezinha pequena, existente até hoje no Japão, e trabalhou durante sua vida na estrada de ferro, e um de seus trabalhos era mudar os trilhos para os comboios passarem. Foi um gigante na historia do

Aikido, e construiu um sistema de técnicas básicas mais sólidas em termos didáticos no aprendizado do Aikido. http://pt.wikipedia.org/wiki/Morihiro_Saito. Acesso aos 5/12/2011.

judoca novato, a princípio, não é capaz de conseguir isso, mas com o passar do tempo sua capacidade de concentração aumentará cada vez mais, permitindo a soltura de um kiai.

O kiai também é chamado, popularmente, entre os judocas japoneses, o grito que mata e existem inúmeras lendas que lhe atribuem estranhos poderes - segundo algumas seria possível, através dele, paralisar ou mesmo matar um adversário. Contam as lendas que o som produzido pelo kiai pode produzir efeitos psicológicos, desconcentrando o adversário. A parte não mítica será a de que, numa situação de combate, um simples piscar de olhos é o suficiente para criar uma abertura que possa ser utilizada em nosso favor - é o que alguns mestres japoneses costumam chamar de kiai ou kakeru – revelar o kiai - que significa surpreender o oponente com um grito acompanhado de uma concentração muscular no centro de gravidade ou hara (o que equivale a dizer que se vier apenas da garganta não tem utilidade) e que pode ser usado não só em situações de ataque, mas também de defesa.

Segundo a tradição, existem duas formas de kiai: grito sonoro que provém do

hara (centro de gravidade situado no baixo ventre, mais precisamente entre os ossos da bacia, e que condiciona a estabilidade do corpo e os seus movimentos) e que é simultâneo à expiração e à contração abdominal; e grito silencioso que projeta a energia e que se pode manifestar no olhar. Têm o mesmo objetivo que os anteriores, i.e., emitir vibrações susceptíveis de perturbar o adversário, mas também reanimar aqueles que perderam os sentidos graças ao choque produzido pela vibração.

2.2. O OUTRO OLHAR SOBRE O CAMINHO O YATA-NO-KAGAMI - O