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A CÚPULA DE LISBOA EM 2010: ENTRE O PASSADO, O PRESENTE E O

4 PERDIDA NA TRANSIÇÃO: A RÚSSIA, TÃO LONGE DO OCIDENTE, TÃO

4.5 A CÚPULA DE LISBOA EM 2010: ENTRE O PASSADO, O PRESENTE E O

Embora os efeitos da guerra na Geórgia tenham reforçado as diferenças entre a Rússia e o Ocidente, a mudança de governo nos Estados Unidos encetou uma parceria condicional entre os dois atores a partir de 2009 que, por sua vez, ficou evidenciada na cúpula de Lisboa em 2010. Ao longo dos anos 1990 e 2000 as relações entre a Rússia e a OTAN foram marcadas por períodos de aproximação e afastamento. De acordo com Sperling e Webber (2016, p. 15), a ruptura ocasionada pela intervenção ocidental no Kosovo em 1999 foi deixada de lado devido ao advento do terrorismo global em 2001, ao passo em que a ruptura ocorrida a partir da guerra na Geórgia foi reparada na cúpula de Lisboa, em 2010, a partir da compreensão ocidental de que ambos atores partilham de uma série de ameaças comuns.

Os principais tópicos debatidos na cúpula de Lisboa foram em torno da adoção do novo conceito estratégico da OTAN, o combate ao terrorismo e o acordo para estabelecer um escudo antimísseis na Europa. Esta nova fase de reaproximação entre os dois atores ficou ainda mais evidenciada a partir da adoção do novo conceito estratégico da OTAN que colocava a cooperação com a Rússia como sendo de “importância estratégica.” Além disso, o novo conceito atualizado em relação ao seu homólogo de 1999 destacava a necessidade de: “melhorar as consultas políticas e a cooperação prática com a Rússia em áreas de interesses comuns, incluindo defesa de mísseis” (NATO, 2010a, p. 29-30).

A proposta de desenvolvimento conjunto do sistema antimíssil se tornou um tema central no relacionamento entre Moscou e a aliança. De acordo com o documento final de 2010, a Rússia foi “convidada para a aprofundar a sua cooperação em áreas de interesses comuns [...] estamos ativamente buscando a cooperação com a Rússia na defesa de mísseis” (NATO, 2010b).

Conforme consta na declaração de Lisboa, a Rússia e o Ocidente possuem uma série de “ameaças e desafios comuns” como o “narcotráfico, proliferação de armas de destruição em massa e seus meios de entrega; pirataria e terrorismo” (NATO, 2010b). Apesar da aposta ocidental em investir no relacionamento com Moscou classificando as ameaças detectadas pela aliança como sendo mútuas, as respostas e ações da OTAN para a contenção destas, não foram necessariamente pensadas com a Rússia em mente (SPERLING, WEBBER, 2016).

O otimismo retórico em relação à Moscou se desenvolve a partir de certas condicionantes, principalmente no que tange ao principal ponto desta parceira - a questão antimísseis. A proposta de cooperação neste caso, não é derivada de uma lógica ampla avaliada mutuamente, mas sobretudo a partir de uma imposição ocidental sobre a construção da infraestrutura antimíssil. Nesse sentido, a Rússia é convidada a participar deste projeto por “cortesia” e não por “direito” já que as condicionantes para tal parceria são tomadas em caráter unilateral e refletem, sobretudo, a natureza restritiva desta colaboração. Conforme o trecho: “Decidimos desenvolver uma capacidade de defesa contra mísseis para proteger todas as populações, territórios e forças da OTAN na Europa, e convidamos a Rússia a cooperar conosco” (NATO, 2010b).64

Neste caso, tal reaproximação entre os dois atores se desenvolve a partir de um senso hierárquico que, embora haja uma reaproximação, ainda atribui a identidade da OTAN como superior a da Rússia e não como uma parceria “entre iguais.” Este sentido é perceptível nos termos em que esta cooperação é colocada, conforme frisou o porta-voz da aliança: “nós não estamos falando de um sistema integrado. Estamos falando de dois sistemas (independentes) que estão ligados” (NATO, 2010c). Neste caso, não se trata de uma parceria de desenvolvimento conjunto desta infraestrutura, mas sim projetos independentes com uma proposta comum. Nesse sentido, tal projeto de colaboração, em verdade, reforça o descolamento ontológico de Moscou como um outsider em um inside, em uma situação de perene limbo, não suficientemente “digno” de ser um “igual” por completo.

64 Do original em inglês: “We decided to develop a missile defence capability to protect all NATO European

Nesta lógica, o secretário geral da OTAN, Anders Rassmussen, ao se referir sobre as motivações de convidar a Rússia a cooperar afirmou o seguinte:

[...] não faz sentido que a Rússia fale sobre o gastar de bilhões de rublos em um novo sistema ofensivo voltado para o Ocidente. Esse tipo de retórica é desnecessária. Esse tipo de pensamento está desatualizado. Esse tipo de investimento é um desperdício de dinheiro. Porque não somos uma ameaça para a Rússia. Nós não atacaremos a Rússia. Nós não iremos minar a segurança da Rússia. As ameaças à Rússia vêm de outros lugares. E o nosso convite para cooperar na defesa antimíssil é prova disso (NATO, 2010d).65

Em algumas ocasiões, como o caso da citação ilustrada acima, a organização denota de modo mais evidente o caráter temporalmente superior da OTAN em relação à inferioridade da Rússia. Moscou, nesta perspectiva, é vista como um ator irracional que se projeta de modo arcaico cuja política securitária e seu orçamento é conduzido de modo equivocado e passional para a direção errada. Sob esta perspectiva, quando os gastos em defesa da Rússia aumentam (ver gráfico 1) a OTAN a constrói como irracional, ao passo em que quando a aliança amplia sua presença militar na Europa ela é retratada como pacífica e defensiva, movida pela responsabilidade em proteger seus aliados.

Ademais, na cúpula de Lisboa não se observou nenhuma inflexão no discurso da aliança em torno da inclusão de outros países na organização, especialmente a Ucrânia e Geórgia, classificada no documento de 2010 como uma medida “em curso.” A OTAN continua a “reafirmar todos os elementos” estabelecidos na cúpula de Bucareste e a “encorajar reformas política e econômicas” democráticas nestes países, estendendo, portanto, os valores ocidentais a eles (NATO, 2010b). Nesse sentido, apesar do quadro de relativa colaboração entre Moscou e Bruxelas tal posição revela profundas discordâncias entre as partes em um tópico essencial para se lograr sucesso na parceria entre Rússia e OTAN.

Além disso, percebe-se que há uma articulação mais firme no discurso da OTAN em torno da “ameaça” de proliferação de mísseis. O trecho abaixo evidencia que a detecção desta ameaça é derivada de seus Estados membros, a indicar que os critérios para a espacialização da segurança permanecem primordialmente em sua comunidade política:

A ameaça às populações, territórios e forças europeias da OTAN decorrentes da proliferação de mísseis balísticos está aumentando. Como a defesa antimísseis faz

65 Do original em inglês: “[…] not make sense, is for Russia to talk about spending billions of roubles on a new

offensive system to target the West. This type of rhetoric is unnecessary. This type of thinking is out of date. This type of investment is a waste of money. Because, we are not a threat to Russia. We will not attack Russia. We will not undermine the security of Russia. The threats to Russia come from elsewhere. And our invitation to cooperate on missile defence is proof of that (NATO, 2010, tradução nossa).

parte de uma resposta mais ampla para combater essa ameaça, decidimos que a Aliança desenvolverá uma capacidade de defesa antimísseis para cumprir sua tarefa principal de defesa coletiva (NATO, 2010b).66

Nesta lógica, se antes havia a necessidade da OTAN justificar sua política de expansão como crucial para se atingir a “paz e a estabilização” na Europa, a nova postura da aliança buscava em perigos externos justificativa para a manutenção de sua relevância. Neste enquadramento, a partir de um senso de responsabilidade ocidental em se proteger da “ameaça” que os mísseis representam, a OTAN legitima o desenvolvimento desta estrutura de defesa na Europa como “tarefa principal de sua defesa coletiva.” Tal política se torna central nesta “nova” fase da OTAN, embora não fique claro em nenhuma parte da declaração as origens destes mísseis e não haja qualquer menção a um Estado ou organização ameaçadora. Nesse sentido, a aliança utiliza-se da espacialização de “ameaças” em um sentido amplo, cujo seu reconhecimento é incerto e onipresente, sem uma orientação clara como e porquê tais ameaças afetam a OTAN, a ponto de justificar a defesa contra mísseis como “parte integral de (sua) postura geral de defesa” (NATO, 2010b).

A promessa de uma “Europa plena, livre e pacífica,” explicitada nas narrativas anteriores sobre a política de “alargamento” da aliança, é igualmente transposta para definir o novo posicionamento do Ocidente. Em um cenário de ausência de ameaças espacialmente concretas que, por sua vez, poderiam questionar a necessidade de existência da OTAN, a aliança utiliza-se da dimensão temporal – o futuro, como parte de sua estratégia para legitimar suas políticas no presente. A constante preocupação em se adaptar ao “futuro” e a indispensabilidade de reformas na organização é disposta na declaração com bastante ênfase: “[...] nos reunimos em Lisboa para traçar o futuro curso da OTAN” buscando fortalecer um “processo de reforma em todas as áreas necessárias sem demora [...] um esforço de reforma focado para tornar nosso diálogo e cooperação mais significativos, e para melhorar a orientação estratégica de nossa cooperação” (NATO, 2010b).

Este discurso demonstra uma preocupação crescente sobre o papel da OTAN e como a organização deve se adaptar a realidade do século XXI. As afirmações repetitivas sobre a eficácia e a força da OTAN denotam uma necessidade de autoafirmação. Nessa linha, o documento é finalizado com a presunção de que a “OTAN será mais eficaz, mais engajada,

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Do original em inglês: “The threat to NATO European populations, territory and forces posed by the proliferation of ballistic missiles is increasing. As missile defence forms part of a broader response to counter this threat, we have decided that the Alliance will develop a missile defence capability to pursue its core task of collective defence” (NATO, 2010, tradução nossa).

mais eficiente e mais capaz de enfrentar os desafios de segurança do século XXI” (NATO, 2010b). No entanto, ao mesmo tempo que tais declarações geram uma imagem de assertividade da aliança elas revelam em essência incertezas e desconfiança. Quando o objetivo da “promessa de um futuro melhor” se torna um objeto “a ser alcançado”, a aliança confere à temporalidade uma noção ideacional que se configura como uma ferramenta discursiva para superar o presente focando no futuro no sentido de assegurar a manutenção da relevância da aliança hoje.

4.6 A CÚPULA DE CHICAGO EM 2012: RÚSSIA E OTAN, UMA PARCERIA