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3 DA PARCERIA AO LIMBO: O DISCURSO CIVILIZACIONAL NA

3.3 UMA VOLTA PARA O MUNDO OCIDENTAL? A SEGUNDA ONDA DA

3.3.1 A cúpula de Praga em 2002: terrorismo e civilização

O efeito da intervenção ocidental na Crise no Kosovo elevou as tensões entre Moscou e Bruxelas que levaram o Kremlin a se retirar do Conselho Conjunto Permanente Rússia- OTAN firmado em 1997. No entanto, a partir do advento do terrorismo global ilustrado pelos ataques terroristas de 11 de setembro a OTAN e a Rússia ensaiaram uma reaproximação a partir da percepção dos dois atores de um inimigo comum: o terrorismo. Em julho de 2002, na cúpula ministerial de Roma, poucos meses antes da Cúpula de Praga, foi reestabelecido o Conselho Rússia-OTAN como substituto daquele firmado em 1997. O novo formato deste conselho adotaria um fórum mútuo para a coordenação de questões securitárias, caracterizando-se como um passo importante em relação à fragilidade institucional do homólogo anterior. Apesar disso, frise-se, reiteradamente não concedia ao Kremlin direito a veto as deliberações da organização ou a garantia de, em um futuro próximo, tornar a Rússia membro efetiva da aliança. Tal adensamento do conselho outorgaria à Moscou o atendimento de parte de suas demandas e reivindicações em relação às políticas adotadas pela OTAN em seu passado recente. No entanto, a facultativa opinião russa estabelecida pela ausência de veto obstruía e limitava a capacidade de barganha e a sua posição na organização.

A proposição central deste novo mecanismo concedia o direito de co-decisão sobre determinados tópicos como gestão militar de crises, não-proliferação de armas de destruição em massa, combate ao terrorismo e a defesa antimísseis, indicando um gesto de boa vontade entre Moscou e Bruxelas. Todavia, o conselho não propõe nenhuma diretriz significativa caso haja dissonâncias de visão nestes temas entre as partes ou quando o diálogo não for suficiente para solucionar disputas de interesse (NATO, 2002; SMITH, 2010).

Apesar do novo recurso institucional fica evidenciado que a visão da OTAN no tocante à Rússia permaneceu inalterada em relação à década anterior, mimetizando o arranjo securitário de 1997, mas com um novo verniz. Moscou permanece com seu status espacial de “outsider” em um “inside,” um agente exógeno “não-ocidental” em um uma organização

definida e pensada pelo Ocidente. Ao renegar o veto russo tal posição condiciona Moscou à boa-vontade dos membros da OTAN no que tange à sua política de expansão. Igualmente, este “novo” mecanismo solidifica a percepção ocidental do caráter temporalmente inferior da Rússia enquanto um ente ainda não “digno” de associação plena.

Apesar do estreitamento estabelecido entre a OTAN e a Rússia, evidenciado entre a cúpula de Roma e a cúpula de Praga, o fator principal que os aglutinou, a partir de 2001, foi utilizado pela aliança como uma via de mão de dupla em 2002. Embora o combate ao terrorismo internacional por um lado tenha aproximado Moscou e Bruxelas em um primeiro momento, por outro foi aplicado com vistas a impulsionar a continuidade do processo de extensão da OTAN - dessa vez para a maior expansão desde o fim da Guerra-Fria. O proselitismo discursivo moral a partir de um senso de responsabilidade pela “manutenção da segurança e da paz” na Europa é igualmente retomado em relação aos textos anteriores no sentido de assegurar a licitude do processo de expansão. Logo nos primeiros parágrafos da declaração da cúpula de Praga o documento já deixa claro esta intenção:

Vinculados pela nossa visão comum incorporada no Tratado de Washington, comprometemo-nos a transformar a OTAN com novos membros, novas capacidades e novas relações com os nossos parceiros. Estamos firmes no nosso compromisso com o elo transatlântico; às tarefas fundamentais de segurança da OTAN, incluindo a defesa coletiva; aos nossos valores democráticos compartilhados; e à Carta das Nações Unidas. Hoje decidimos convidar a Bulgária, a Estônia, a Letônia, a Lituânia, a Romênia, a Eslováquia e a Eslovênia a iniciar conversações de adesão para se juntarem à nossa Aliança. [...] A adesão destes novos membros reforçará a segurança de todos na área euro-atlântica e contribuirá para alcançar o nosso objetivo comum de uma Europa inteira e livre, unida em paz e por valores comuns (NATO, 2002).42

A adoção, em 1999, do Novo Conceito de Segurança da OTAN designa fundamento para a transformação de uma agenda reformista baseada em um esforço para “transformar e adaptar a OTAN” que busca em “novos membros, novas capacidades e novas relações com os nossos parceiros” meios para o combate ao terrorismo. Neste sentido, a utilização da ameaça terrorista é colocada como anteparo de validação de um “pacote abrangente de medidas

42 Do original em inglês: “Bound by our common vision embodied in the Washington Treaty, we commit

ourselves to transforming NATO with new members, new capabilities and new relationships with our partners. We are steadfast in our commitment to the transatlantic link; to NATO's fundamental security tasks including collective defence; to our shared democratic values; and to the United Nations Charter. Today, we have decided to invite Bulgaria, Estonia, Latvia, Lithuania, Romania, Slovakia and Slovenia to begin accession talks to join our Alliance. [...] The accession of these new members will strengthen security for all in the Euro-Atlantic area, and help achieve our common goal of a Europe whole and free, united in peace and by common values” (NATO, 2002, tradução nossa).

baseadas no Conceito Estratégico da OTAN,” conforme expresso no trecho conseguinte da declaração:

Relembrando os trágicos acontecimentos de 11 de Setembro de 2001 e a nossa subsequente decisão de invocar o Artigo 5 do Tratado de Washington, aprovamos um pacote abrangente de medidas, baseadas no Conceito Estratégico da OTAN, para reforçar a nossa capacidade de enfrentar os desafios à segurança das nossas forças, populações e territórios, de onde quer que venham. As decisões de hoje permitirão capacidades equilibradas e eficazes dentro da Aliança, para que a OTAN possa melhor desempenhar todas as suas missões e responder coletivamente a esses desafios, incluindo a ameaça representada pelo terrorismo e pela proliferação de armas de destruição em massa e seus meios de entrega. [...] O terrorismo, que categoricamente rejeitamos e condenamos em todas as suas formas e manifestações, representa uma ameaça grave e crescente às populações, forças e território da Aliança, bem como à segurança internacional. Estamos determinados a combater esse flagelo pelo tempo que for necessário. Para combater efetivamente o terrorismo, nossa resposta deve ser multifacetada e abrangente (NATO, 2002)43.

Nessa lógica, o emprego do discurso que se referencia aos atentados terroristas às torres gêmeas foi aplicado não somente como justificativa para a expansão da OTAN mas também para a alteração e desenvolvimento de uma série de mecanismo de coerção militar a nível tático e estratégico. Neste contexto, o documento destaca a criação de uma Força de Resposta da OTAN (NRF) “uma força tecnologicamente avançada, flexível, destacável, interoperável e sustentável, incluindo elementos terrestres, marítimos e aéreos prontos para avançar rapidamente para onde for necessário, conforme decidido pelo Conselho” (NATO, 1999).44 Segundo Pouliot (2010, p. 217) tal mecanismo instaurava no cenário europeu até 2006 “um corpo de aproximadamente 20.000 soldados disponíveis a curto prazo para serem implantados em todo o mundo e em todo o espectro de operações militares.”

Neste contexto, a articulação discursiva de um nexo identitário a partir de noções espaciais e morais é revisitada no documento como fonte de legitimação de uma série de políticas securitárias e de aumento das capacidades militares da organização. A tônica

43 Do original em inglês: “Recalling the tragic events of 11 September 2001 and our subsequent decision to

invoke Article 5 of the Washington Treaty, we have approved a comprehensive package of measures, based on NATO's Strategic Concept, to strengthen our ability to meet the challenges to the security of our forces, populations and territory, from wherever they may come. Today's decisions will provide for balanced and effective capabilities within the Alliance so that NATO can better carry out the full range of its missions and respond collectively to those challenges, including the threat posed by terrorism and by the proliferation of weapons of mass destruction and their means of delivery. [...] Terrorism, which we categorically reject and condemn in all its forms and manifestations, poses a grave and growing threat to Alliance populations, forces and territory, as well as to international security. We are determined to combat this scourge for as long as necessary. To combat terrorism effectively, our response must be multi-faceted and comprehensive” (NATO, 2002, tradução nossa).

44

Do original em inglês: “[…] consisting of a technologically advanced, flexible, deployable, interoperable and sustainable force including land, sea, and air elements ready to move quickly to wherever needed, as decided by the Council” (NATO, 2002, tradução nossa).

concentrada na espacialização da “ameaça terrorista,” atrelada a um senso de superioridade moral da aliança, ratifica a responsabilidade ocidental em proteger seus participes o que cria condições para que tais medidas “defensivas” sejam postas em prática. O discurso benevolente da OTAN sobre este tema é retomado atribuindo tal decisão como parte de um conjunto de esforços “para transformar e adaptar a OTAN, [que] não devem ser vistos como uma ameaça por nenhum país ou organização, mas como uma demonstração de nossa determinação em proteger nossas populações, territórios” (NATO, 2002).

Concomitante ao processo de expansão militar ocorreu o início de mais um processo de expansão institucional e geográfica da OTAN, adotando-se como justificativa oficial explicitada no documento para a admissão dos sete novos membros, in verbis:

[...] os novos membros aumentarão a capacidade da OTAN para enfrentar os desafios de hoje e de amanhã. Eles demonstraram seu compromisso com os princípios e valores básicos estabelecidos no Tratado de Washington, a capacidade de contribuir para toda a gama de missões da Aliança, incluindo a defesa coletiva, e um firme compromisso de contribuir para a estabilidade e segurança, especialmente em regiões de crise e conflito (NATO, 2002).

A segunda onda de admissões é ainda mais controversa do que a anterior. Embora a retórica oficial em torno da ameaça terrorista se fizesse bastante presente na intensidade e rapidez da adesão desses países, a OTAN não reconheceu que grande parte destes aspirantes não atendiam os requisitos para a sua admissibilidade na aliança. A maior parte destes sete países, na época, enfrentavam uma série de problemas de ordem política e econômica e um conjunto de desafios em relação ao tratamento das minorias étnicas e desrespeito aos princípios básicos dos direitos humanos (RAUCHHAUS, 2001; KRAMER, 2002).

Mais uma vez, o reconhecimento em torno dos “compromissos com os princípios e valores básicos” da aliança se territorializa em um grupo de países específicos beneméritos de participação na organização excluindo outros. Neste caso, é possível inferir que a agilidade desta admissão se desenvolve não a partir dos seus “avanços democráticos,” de facto, mas, sobretudo, a partir de um discurso que vincula diametralmente a temporalidade da identidade destes com a temporalidade da OTAN. Ao fazê-lo, a aliança os equaliza conferindo a este conjunto de países as mesmas atribuições morais de sua identidade para “enfrentar os desafios de hoje e de amanhã” afim de se atingir uma “Europa plena, livre e pacífica.” Por outro lado, o caráter contraditório do movimento expansionista da aliança representa uma preocupação legitima para segurança da Rússia, pois esta se amplia até as fronteiras russas diante do desprezo e da falta de comprometimento com Moscou.