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4 PERDIDA NA TRANSIÇÃO: A RÚSSIA, TÃO LONGE DO OCIDENTE, TÃO

4.2 A CÚPULA DE RIGA EM 2006: REPRESENTANDO O OCIDENTE

Nunca antes nos mais de 50 anos da OTAN uma cúpula da aliança militar Ocidental aconteceu tão próxima das fronteiras russas, e a menos de 900 quilômetros de Moscou. A representatividade da realização deste evento na Letônia, na capital Riga, é bastante simbólica, pois denota não apenas a natureza célere de seu expansionismo, mas sobretudo a adesão plena e indiscutível dos mais novos membros da aliança, chegando pela primeira vez em um país que fazia parte da URSS. Do mesmo modo, a OTAN manifesta a grande valia que

estes recentes integrantes tiveram e terão nas decisões da organização, pelo destaque atribuído a um recém-chegado, já presidindo a cúpula daquele ano.

O encetamento da identidade coletiva da OTAN é reforçado na cúpula de Riga, seguindo a lógica explorada de construções espaciais e éticas esboçada nas narrativas anteriores, conforme exposto no primeiro parágrafo da declaração de Riga:

Nós, [...] reafirmamos hoje em Riga nossa determinação de enfrentar os desafios de segurança do século XXI e defender nossas populações e valores comuns, mantendo uma forte defesa coletiva como núcleo objetivo de nossa aliança. Nossas 26 nações estão unidas em democracia, liberdade individual e no estado de direito, e fiéis aos propósitos e princípios da Carta das Nações Unidas. O princípio da indivisibilidade da segurança aliada é fundamental, e nossa solidariedade nos dá força para enfrentar juntos novos desafios (NATO, 2006).52

Novamente, a tônica da responsabilidade ocidental é presente no documento no intuito de atender seus propósitos civilizacionais para juntos “enfrentar os desafios de segurança do século XXI.” A construção da lógica dentro/fora é igualmente retomada a partir da espacialização de um senso de união interna, solidariedade e comprometimento entre os seus pares, “unidos em democracia,” “fiéis aos propósitos” e pelo “princípio da indivisibilidade.” A dialética da construção da identidade se estabelece a partir da narrativa do que o que está “dentro” da aliança é moralmente aceito, seguro e pacífico, por outro lado, o que esta “fora” deste espaço são os “novos” desafios e ameaças à esta segurança coletiva e à defesa de suas nações e povos.

Estas predileções são ilustradas na declaração de Riga pelo caráter global das “missões civilizacionais” em torno dos valores da aliança:

Do Afeganistão aos Bálcãs e do Mar Mediterrâneo a Darfur, em seis missões desafiadoras e operações em três regiões geográficas, estamos promovendo a paz e a segurança e ficando lado a lado com aqueles que defendem nossos valores comuns de democracia e liberdade como incorporado no Tratado de Washington (NATO, 2006).53

Ao expor suas “seis missões desafiadoras” em três continentes diferentes, “do Afeganistão aos Bálcãs e do Mar Mediterrâneo a Darfur” a organização denota a

52 Do original em inglês: “We, […] reaffirm today in Riga our resolve to meet the security challenges of the

21st century and defend our populations and common values, while maintaining a strong collective defence as the core purpose of our Alliance. Our 26 nations are united in democracy, individual liberty and the rule of law, and faithful to the purposes and principles of the United Nations Charter. The principle of the indivisibility of Allied security is fundamental, and our solidarity gives us the strength to meet new challenges together.” (NATO, 2006, tradução nossa).

53 Do original em inglês: “From Afghanistan to the Balkans and from the Mediterranean Sea to Darfur, in six

challenging missions and operations in three geographic regions, we are advancing peace and security and standing shoulder-to-shoulder with those who defend our common values of democracy and freedom as embodied in the Washington Treaty” (NATO, 2006, tradução nossa).

grandiosidade de sua atuação em prol dos seus “valores comuns” e das prioridades do centro euro-atlântico. As intervenções nestas regiões são legitimadas pelo senso de superioridade moral que o uso da narrativa de responsabilidade ocidental comporta. Desse modo, a lógica da missão civilizacional envolve um sentido temporal de transposição dos valores e da identidade “superior” preterida pelo Ocidente para outras regiões “inferiores” que estão em situação de crise ou com necessidade de ajuda.

Esta mesma lógica é deslocada para o discurso em torno do processo de expansão da aliança, definido como um projeto “em curso” que “tem sido um sucesso histórico no avanço da estabilidade, paz e cooperação na Europa e na visão de uma Europa completa, livre e em paz” (NATO, 2006).54 A narrativa em torno da responsabilidade ocidental aplicada para definir e legitimar a adesão dos novos membros à aliança e a necessidade da continuidade deste processo é a mesma desde de 1994 ininterruptamente. Tal justificativa é transposta para propor a adesão da Ucrânia e da Geórgia na aliança:

Reafirmamos que a Aliança continuará seus diálogos intensificados com a Geórgia e a Ucrânia, que abrangem toda a gama de questões políticas, militares, financeiras e de segurança relativas às aspirações de adesão desses países na Aliança. [...] Todos os países democráticos europeus podem ser considerados para Plano de Ação para a Adesão (MAP) (NATO, 2004).55

Ao “reafirmar” os compromissos com Ucrânia e Geórgia a OTAN sinaliza a sua intenção de incluí-los na aliança, tentativa já esboçada nas cúpulas anteriores pelas duas partes. Com efeito, a aliança territorializa a sua expansão para os países que de acordo com a visão da OTAN se encaixam na categoria temporal de “democrático,” no caso, Ucrânia e Geórgia, transformando-os discursivamente em “iguais” ao “eu.”

Por outro lado, o Ocidente despreza, mais uma vez, os apelos russos para barrar este processo e, igualmente, ignora as ações políticas e econômicas de Moscou no cenário ilustrado nas chamadas “revoluções coloridas” experienciadas na Geórgia, em 2003, e na Ucrânia, em 2005. No entanto, embora referido contexto de 2003-2005 o debate sobre possíveis adesões da Ucrânia e da Geórgia obteve grande atenção em 2006 por outras causas. A cúpula de Riga se realizou após o cenário ilustrado a partir das disputas sobre o preço do

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Do original em inglês: “NATO’s ongoing enlargement process has been an historic success in advancing stability, peace and cooperation in Europe and the vision of a Europe whole, free, and at peace” (NATO, 2006, tradução nossa).

55 Do original em inglês: “We reaffirm that the Alliance will continue with Georgia and Ukraine its Intensified

Dialogues which cover the full range of political, military, financial, and security issues relating to those countries’ aspirations to (alliance) membership […] All European democratic countries may be considered for MAP” (NATO, 2006, tradução nossa).

gás entre Rússia e Ucrânia, entre 2005 e 2006, o que, por sua vez, comprometeu parcialmente o fornecimento de gás russo para alguns países da OTAN e da Europa. Tal conjuntura levou a aliança a incluir na agenda dos debates, a questão relativa à segurança energética:

Conforme sublinhado no Conceito Estratégico da OTAN, os interesses de segurança da Aliança também podem ser afetados pela interrupção do fluxo de recursos vitais. Apoiamos um esforço internacional coordenado para avaliar os riscos para as infraestruturas energéticas e para promover a segurança da infraestrutura energética. Com isto em mente, orientamos o Conselho em Sessão Permanente a consultar sobre os riscos mais imediatos no campo da segurança energética, a fim de definir as áreas onde a OTAN pode agregar valor para salvaguardar os interesses de segurança dos Aliados e, mediante solicitação, auxiliar os esforços nacionais e internacionais (NATO, 2006).

A condenação indireta do comportamento russo por parte da OTAN, no contexto relacionado a crise do gás é evidenciada no documento pela sugestão de que os “interesses de segurança da Aliança” foram afetados. Nesse sentido, o senso de responsabilidade pela evocação do interesse nacional é transposto para legitimar um conjunto de ações que visam avaliar os “riscos” à segurança energética de seus aliados. Por outro lado, nota-se a ausência de condenação do Ocidente à Kiev pelo descumprimento dos compromissos assumidos em relação ao pagamento do gás russo e ao fornecimento deste gás aos compradores europeus. A conjuntura demonstra que a OTAN se utilizou desta crise como uma tentativa de se aproximar da Ucrânia pela intenção de incluí-la na organização e simultaneamente articular a identidade temporal da Rússia como um país que não cumpre seus compromissos internacionais, portanto culpada da situação. Além disso, percebe-se a desmoralização discursiva de Moscou pela referência de violação da segurança energética da comunidade europeia, cujo ato “interrompeu fluxos vitais” para aliança.

4.3 A CÚPULA DE BUCARESTE EM 2008: UMA EUROPA (QUASE) LIVRE,