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O realismo estrutural no pós-guerra fria: o paradoxo do contrabalanceamento da

2 AS PERSPECTIVAS TEÓRICAS EM TORNO DA FORMAÇÃO DE

2.2 A VISÃO TRADICIONAL DA TEORIA DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS: DO

2.2.3 O realismo estrutural no pós-guerra fria: o paradoxo do contrabalanceamento da

O pensamento realista estrutural não acredita que a unipolaridade seja duradoura, já que o resultado principal da teoria de Waltz postula que devido ao papel proeminente da anarquia sistêmica há uma tendência que sobrepuja os Estados ao retorno da formação de política de equilíbrios de poder o que, consequentemente, ativa restauração do sistema ao seu estado “natural” de bipolaridade ou multipolaridade. Assim, na visão dos neorrealistas, o “momento” unipolar norte-americano gerado a partir da nova realidade sistêmica nos anos 1990 não passaria de um “interlúdio geopolítico” fadado ao equilíbrio e à formação de potências revisionistas (KRAUTHAMMER, 1990; LAYNE, 1993, 2006; WALTZ, 2000).

Dentro do escopo da teoria realista as definições sobre polaridade são inúmeras e, por vezes, contraditórias, principalmente no que tange à definição de um sistema uni, bi ou multipolar. De acordo com Ikenberry, Mastanduno e Wohlforth (2009) a polaridade é definida pelo número de pólos de poder no sistema; o que constitui um pólo, ou como diferenciá-lo de uma grande potência, no entanto, permanece vago. A polaridade é, sobretudo, uma construção teórica; para verificá-la geralmente se utiliza como critério de validação a distribuição de capacidades militares no sistema (IKENBERRY; MASTANDUNO; WOHLFORTH, 2009).

Ainda que o debate sobre a unipolaridade norte-americana encontre ampla literatura13 na disciplina de Relações Internacionais, ao analisarmos os critérios bases da teoria

13 Para uma discussão mais aprofundada sobre a “hegemonia” ou “unipolaridade” norte-americana sugere-se

neorrealista sobre a definição de distribuição de capacidades militares, tem-se que, até o momento, não houve qualquer mudança significativa capaz de subverter a estrutura de poder verificada no pós-Guerra Fria; pelo contrário, os Estados Unidos continuaram com um hiato militar significativamente superior ao da Rússia (ver gráfico 1). Ainda nesse contexto, percebe-se poucas evidências de contrabalanceamento empreendidas pelas demais potências do sistema no intuito de formar alianças militares concorrentes a OTAN (IKENBERRY, 1998/99; POSEN, 2003). No que tange à Rússia, o que se observou nas últimas décadas foram tentativas de reforma, modernização das forças armadas e de manutenção mínima de sua influência em seus países limítrofes, não se vislumbrando, porém, em aspectos materiais, movimentos sólidos capazes de alterar a distribuição de poder global (TSYGANKOV, 2005). Ainda que se possa inferir que a doutrina Primakov14 é um mecanismo ideacional da política externa russa que visa reivindicar o reconhecimento de outros pólos de poder no mundo para além dos Estados Unidos, não se pode afirmar que tal política visa transformar a Rússia em um “poder global”, mas, sobretudo, em se manter como uma “grande potência normal”15 (TSYGANKOV, 2005). Mesmo que aceitássemos a intenção russa de se tornar uma potência global com a doutrina Primakov, os termos estabelecidos pela teoria realista como capazes de subverter a ordem unipolar não pairam sobre a análise de critérios ideacionais, mas, apenas, em termos materiais (WOHLFORTH, 1999). A unipolaridade norte-americana, aceita de modo unanime entre os teóricos realistas nos anos 1990 (MASTANDUNO, 1997), que era interpretada como um “momento” (KRAUTHAMMER, 1990) ou como uma “ilusão” passageira (LAYNE, 1993), hoje é vista como “finalmente chegando ao seu fim” (ZAKARIA, 2008; KUPCHAN, 2013; LAYNE, 2006). No entanto, ao analisarmos a distribuição de capacidades materiais entre os Estados Unidos e Rússia, neste caso utilizando as despesas militares totais16 como base de análise, percebe-se que ao longo das últimas décadas a

14 O movimento na política externa russa que convencionou-se chamar na literatura de RI como “Doutrina

Primakov” procurava a diversificação de parceiros comerciais e a aproximação da Rússia principalmente com potências emergentes como a China e a Índia, cujo pilar visava deslocar o paradigma ocidentalista na diplomacia russa para uma visão mais pragmática e autônoma de inserção internacional. Ideacionalmente, tal política procurou contestar a condição unipolar do sistema internacional e defender a projeção de um mundo multipolar, no qual a Rússia se colocava como um dos pólos de poder do sistema (KUCHINS, 2002).

15 Para Tsygankov (2005), a Rússia não pleiteia uma posição isolacionista e assertiva semelhante àquela

exercida pela sua antecessora socialista, pois isto levaria indubitavelmente a desintegração russa. A estratégia de Vladimir Putin, não busca contrabalançar o Ocidente ou o revisionismo, mas sobretudo a modernização econômica e o pragmatismo político. Este é sobretudo um projeto de inserção e não de contestação, pois busca garantir a sua segurança nacional e a integração territorial, no intuito de incluir a Rússia como membro de pleno direito na comunidade internacional.

16 Ainda que se reconheça que as despesas militares não sejam o critério ideal para se verificar a polaridade no

sistema, assume-se com base na teoria realista, que este é um ponto de verificação importante na análise da polaridade do sistema em cada período. Wolforth (1999), por exemplo, utiliza os gastos militares dos Estados Unidos como instrumento para comprovar a tese da durabilidade da unipolaridade norte-americana. Pela

diferença entre os Estados Unidos e a Rússia permanece incontestavelmente alta (ver gráfico 1).

Fonte: SIPRI (2018) - Gráfico elaborado pelo autor, a partir de dados extraídos17 do SIPRI Military Expenditure Database (2018).

Com base em cálculos derivados das cifras obtidas pelo gráfico acima, em uma situação de análise que se verificaria apenas os números dos Estados Unidos comparando-os com o orçamento militar da Rússia, percebe-se que o total de gastos militares norte- americanos em 1992 correspondia a 92,75%. Naquele período a Rússia detinha uma parcela de 7,25% de participação. A análise mostra que em 2000, apesar de Washington ter registrado uma queda nominal em seus gastos militares, os Estados Unidos aumentaram proporcionalmente sua participação em relação aos gastos russos subindo de 92,75%, em 1992, para 95,37%, em 2000. Nesse mesmo período, a Rússia diminuiu sua participação nos gastos de 7,25 para 4,63%. Na avaliação do período posterior ao avanço da OTAN,

verificação dos gastos militares pode-se identificar pelo menos dois elementos relevantes: a capacidade de projeção militar do país analisado e os padrões de crescimento econômico de cada Estado, visto que geralmente a parcela de gastos em defesa aumentam simultaneamente com o crescimento do PIB. De acordo com a análise de Mearsheimer (2001) o índice de desenvolvimento da economia é um dos critérios mais importantes para a materialização de um pólo de poder, pois é um requisito básico para o aperfeiçoamento das capacidades militares de cada país.

17 Valores e taxas de câmbio expostos foram atualizados proporcionalmente ao índice de preços praticados em

2016. 0 100000 200000 300000 400000 500000 600000 700000 800000 1 9 9 2 2 0 0 0 2 0 0 8 2 0 1 6

GRÁFICO 1: HISTÓRICO DAS DESPESAS

MILITARES DOS ESTADOS UNIDOS E RÚSSIA (DE

1992 A 2016) EM US$ MILHÕES:

precisamente em 2016, nota-se um decréscimo de cerca de 5% na participação dos gastos militares dos Estados Unidos.

A partir dos dados apresentados é possível inferir que os gastos militares norte- americanos, embora tenham registrado um declínio de 2000 para 2016, permanecem cerca de 9 vezes superior aos gastos da Rússia. No entanto, a queda registrada não revela um desengajamento norte-americano, per se; ao revés, a divisão da responsabilidade pela segurança coletiva para mais países proporcionada pela expansão da OTAN para o Leste Europeu, resultou na diminuição da demanda por gastos militares nos Estados Unidos (GEORGE; SANDLER, 2018). Portanto, se adicionarmos as potências da OTAN, o hiato militar entre a Rússia e os Estados Unidos tende a ser ainda maior. Nessa lógica, os critérios de validação para a formação de um novo pólo de poder baseados em termos estritamente materiais não se verificam a ponto de contestar a unipolaridade norte-americana, tampouco se verifica a formação de uma política concreta de contrabalanceamento externo18 que subverta a distribuição de poder global.

Conforme elucidado acima, Krauthammer (1990) caracterizou o período imediato pós- Guerra-Fria como um “momento” nitidamente unipolar “o centro do poder mundial é a superpotência incontestada, os Estados Unidos.” Embora naquele estágio as disputas militares e ideológicas entre Estados Unidos e União Soviética tivessem atingido o menor patamar desde o início da Guerra Fria, em 1990 a URSS continuava existindo e, ainda que tivesse reduzido consideravelmente seu arsenal dissuasório, continuava com uma significativa presença e relevância militar no mundo, bem como não se imaginava a sua dissolução no ano seguinte. No entanto, para os realistas de modo geral, o mundo já era caracterizado como, então, unipolar. De acordo com o SIPRI (2018), em 1990 o orçamento em defesa dos Estados Unidos, em índices atualizados, era em torno de 562 bilhões de dólares, ao passo que os gastos militares soviéticos somavam um montante aproximado de 190 bilhões de dólares. Desse modo, a análise proporcional destes dados indica que em 1990 o orçamento militar

18 Recentemente, grande parte da literatura de relações internacionais têm dedicado bastante interesse na análise

do potencial das interações sino-russas e nas capacidades contra-hegemônicas desta “relação estratégica”. Bobo Lo (2008) argumenta que embora haja uma sinergia substancial entre os dois países demonstrada pelo aumento significativo de trocas comerciais e acordos diplomáticos, esta é uma aproximação em grande parte derivada de condicionantes externas, internas e conjunturais. Além disso, é uma relação baseada em uma “conveniência”, resultado de um contexto específico que colocava o grande mercado russo produtor de hidrocarbonetos e a demanda chinesa por recursos energéticos em uma sintonia. No aspecto militar- securitário, Lo (2008) aponta que apesar de existir uma reciprocidade discursiva na defesa da multipolaridade, ainda há uma desconfiança mútua bastante elevada, e ambos países esperam contar com a manutenção das relações com o Ocidente. No que tange à cooperação em defesa, o autor pondera que grande parte dos exercícios militares conjuntos não foram missões de interoperabilidade militar, mas sim exercícios independentes conduzidos lado a lado (LO, 2008).

norte-americano correspondia a 74,86% em um cenário de comparação com o soviético. Estes dados assinalam patamares de participação dos Estados Unidos inferiores aos de 2016, conforme apresentado acima. Portanto, ancorados na mesma linha de raciocínio usada pelos realistas para justificar a unipolaridade em 1990, por que no mundo atual a definição seria diferente?

A partir desta lógica, situa-se outra incoerência encontrada nas fundamentações que, segundo Waltz, movem a formação de alianças militares. Conforme explicitado, as alianças são movidas a partir da distribuição assimétrica de capacidades no sistema, mecanismo este que ativa a balança de poder e, consequentemente, a criação de coalizões militares para se opor a um Estados mais forte. Nesse aspecto, as imprecisões da teoria neorrealista residem na própria materialização da expansão da OTAN até as fronteiras russas em um período cuja diferença militar entre os Estados Unidos e a Rússia era ainda maior.

A realidade é que, no início dos anos 1990, a OTAN já havia dado sinais claros de que não desapareceria, mas, ao contrário, expandir-se-ia. Já em 1993 se iniciaram as negociações para o ingresso dos países do Leste Europeu na aliança e, em 1999, os países do Grupo de Visegrad já estavam inclusos na organização e as negociações para o ingresso do Grupo de Vilnius já se encontravam em níveis avançados. Nesse contexto, o que se observou foi que Moscou foi gradualmente se desmilitarizando, ao passo que o processo de alargamento da organização foi sendo potencializado. Conforme demonstra o gráfico acima, a Rússia somente atingiu os patamares dos gastos em defesa proporcionais ao ano de 1992 a partir de 2008, ou seja, quando o processo de extensão da OTAN já havia incluído a maior parte dos países do Leste Europeu (SIPRI, 2018).

Segundo as previsões de Waltz (1993, p. 76), a OTAN após o fim da Guerra Fria acabaria por se dissolver, pois sem a existência de uma ameaça militar como a soviética não haveria o que ser contrabalançado, de forma que, segundo o autor, “os dias da OTAN não estão contados, mas os seus anos estão.” Ainda nesse aspecto, Waltz argumenta que os prováveis candidatos a rivalizar a unipolaridade norte-americana e a aliança militar euro- atlântica seriam o Japão e a Alemanha. O Japão por possuir uma economia pujante e competitiva tende a acirrar as disputas com os Estados Unidos e, por outro lado, potências como a Alemanha não tolerariam na Europa Ocidental os constrangimentos impostos por uma instituição dominada pelos Estados Unidos, como a OTAN (WALTZ, 1993). No entanto, no período recente não se observou nenhum movimento de Washington no intuito de limitar o crescimento japonês ou um provável revisionismo alemão, tampouco qualquer lampejo de enfraquecimento da OTAN.

No que concerne a tese de Walt (1987) sobre os fatores que orientam a balança de ameaças e a constituição de alianças para se entender o avanço da OTAN, as quatro fontes de ameaça identificadas pelo autor não poderiam ser aplicadas ao caso da Rússia no pós-Guerra Fria enquanto a ameaça crível de contrabalanceamento. Verifica-se que este período se configurou para Moscou como um retrocesso econômico e político e a perda de seu status de superpotência representado pelo declínio significativo de suas forças armadas (ARBATOV, 1993). Ainda nesse contexto, a Rússia perdeu um sexto do seu território e a sua economia encolheu cerca de 50% resultando assim em uma redução drástica de suas forças agregadas e capacidades ofensivas (TSYGANKOV, 2013). Por outro lado, a adoção do neoliberalismo enquanto mote econômico e de um paradigma pró-ocidental na agenda da política externa russa durante os anos 1990 tampouco ajudam a explicar quais seriam as “intenções ofensivas” que Moscou representava para justificar o avanço da OTAN neste período.

Mesmo diante deste contexto Waltz (2000) resgata as previsões dos neorrealistas de que a OTAN iria desaparecer após a Guerra Fria. Nesse quesito, o autor se ancora no pressuposto teórico de que as organizações internacionais servem acima de tudo para atender aos interesses das grandes potências. De acordo com a visão de Waltz, a história recente da aliança militar ilustra a subordinação desta instituição aos interesses nacionais norte- americanos. Portanto, a organização sobrevive, exclusivamente, para “manter o controle dos EUA sobre as políticas externas e militares dos Estados europeus” (WALTZ, 2000, p. 29). O autor percebe a manutenção da OTAN como um elemento que busca principalmente preservar a unipolaridade norte-americana, inferindo, por outro lado, que este movimento está condenado ao fracasso, pois a tarefa de preservação hegemônica demanda significativos esforços econômicos, militares e políticos dos Estados Unidos. A expansão da aliança militar, ao fim, acabaria por minar, e não por preservar, a preponderância norte-americana (WALTZ, 2000).

Nesse aspecto, Waltz (2000) indica que a manutenção da OTAN poderia acelerar os mecanismos de balanceamento de poder no intuito de contestar a presença hegemônica dos Estados Unidos. Assim, Waltz (2000, p. 30) aponta que “os candidatos para se tornarem as próximas grandes potências e, assim, restabelecer o equilíbrio, são a União Europeia ou a Alemanha liderando uma coalizão, a China, o Japão e, num futuro mais distante, a Rússia.” A partir desses pressupostos o autor afirma que prosseguir com o avanço da OTAN seria um equívoco grave dos Estados Unidos, pois seguramente produziria políticas de contrabalanceamento. No que tange ao caso europeu, a presença norte-americana poderia funcionar como um mecanismo catalizador que incentivaria a adoção de uma política externa

europeia mais autônoma e aglutinaria uma frente liderada pela Alemanha no sentido de contestar a influência de Washington nos assuntos internos europeus. Nessa lógica, Waltz argumenta que suas predileções relacionadas ao fim OTAN nos anos 1990 não surgem das inconsistências teóricas do realismo estrutural, mas sobretudo da desconsideração da “tolice norte-americana” (WALTZ, 2000).

A realidade é que o processo de expansão da aliança militar não pode ser reduzido a um erro de cálculo da política externa norte-americana, pois seria uma “tolice” que necessariamente levaria a uma política de contrabalanceamento e ao enfraquecimento de Washington. A insuficiência da teoria elucidada reside, sobretudo, a partir da predileção tautológica de um movimento de contestação que nunca se materializou na Europa, mormente diante de que a OTAN continuou existindo sem haver outra aliança formalizada em torno de um outro pólo de poder.

Portanto, tal realidade não pode ser entendida a partir de uma ontologia essencialmente materialista de projeção de poder e de dominação militar, especialmente à luz de que a teoria falha em explicar um cenário em que, mesmo havendo a unipolaridade e a ausência de inimigos equiparáveis, a OTAN manteve sua expansão. É preciso interpretar o processo de expansionismo da aliança militar ocidental não a partir de uma lógica instrumental de custo-benefício, mas sobretudo a partir de uma perspectiva ideacional e identitária de modo a entender a coesão interna da organização como resultante de um exercício discursivamente construído de oposição do “eu” em relação ao “outro.”

2.3 DISCURSO, IDENTIDADE E SEGURANÇA: A DIMENSÃO INESCAPÁVEL DA