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A cúpula de Washington em 1999: a vitória dos valores ocidentais

3 DA PARCERIA AO LIMBO: O DISCURSO CIVILIZACIONAL NA

3.2 A DEMOCRACIA COMO SEGURANÇA NO PROCESSO EVOLUTIVO DA OTAN:

3.2.3 A cúpula de Washington em 1999: a vitória dos valores ocidentais

A cúpula de 1999 é carregada de conteúdo simbólico por se tratar da primeira década posterior a queda do muro de Berlim e dos 50 anos da fundação da OTAN. Este conjunto, associado à realização do evento em Washington, cidade em que foi celebrada a fundação da OTAN em 1949, manifestam o simbolismo do triunfo dos ideais ocidentais e da própria aliança militar perante ao bloco socialista. O comunicado final da cúpula, intitulado “Uma

36 Do original em inglês: We will review the process at our next meeting in 1999. With regard to the aspiring

members, we recognise with great interest and take account of the positive developments towards democracy and the rule of law in a number of southeastern European countries, especially Romania and Slovenia. The Alliance recognises the need to build greater stability, security and regional cooperation in the countries of southeast Europe, and in promoting their increasing integration into the Euro-Atlantic community. At the same time, we recognise the progress achieved towards greater stability and cooperation by the states in the Baltic region which are also aspiring members. As we look to the future of the Alliance, progress towards these objectives will be important for our overall goal of a free, prosperous and undivided Europe at Peace (NATO, 1997, tradução nossa).

aliança para o século 21,” buscou a exaltar os 50 anos da instituição que segundo a declaração: “garantiram a liberdade e salvaguardaram a segurança transatlântica.” O documento evoca um signo de resiliência e de vigor da organização do passado “para enfrentar os desafios do futuro” pois resistiu “ao teste de cinco décadas e permitiu que os cidadãos dos países aliados desfrutassem de um período sem precedentes de paz, liberdade e prosperidade” (NATO, 1999).

Segundo o documento, o tratado fundacional da OTAN foi orientado seguindo os “princípios da democracia, liberdade individual e do Estado de direito, e [isto] continua a ser a base de nossa defesa coletiva; [pois] incorpora o elo transatlântico que une a América do Norte e a Europa em uma parceria única de defesa e segurança.”37 A exaltação dos aliados e da superação de “sacrifícios e desafios” passados são uma constante no documento que, por sua vez, legitima a continuidade da aliança e propicia o voluntarismo da sua expansão conforme demonstrado abaixo:

Aqui em Washington, prestamos homenagem às conquistas do passado e formamos uma nova Aliança para enfrentar os desafios do futuro. Essa nova Aliança será maior, mais capaz e mais flexível, comprometida com a defesa coletiva e capaz de empreender novas missões, inclusive contribuindo para uma prevenção eficaz de conflitos e engajando-se ativamente no gerenciamento de crises, incluindo operações de resposta a crises. A Aliança trabalhará com outras nações e organizações para promover a segurança, a prosperidade e a democracia em toda a região euro-atlântica. A presença hoje de três novos Aliados - a República Checa, a Hungria e a Polônia - demonstra que superamos a divisão da Europa. A Aliança aproveita a oportunidade deste 50º aniversário para reconhecer e expressar a sua sincera gratidão pelo compromisso, sacrifício, determinação e lealdade dos militares e mulheres de todos os Aliados à causa da liberdade. A Aliança saúda as contribuições essenciais dessas forças ativas e de reserva, que por 50 anos garantiram a liberdade e salvaguardaram a segurança transatlântica. Nossas nações e nossa Aliança estão em dívida com elas e agradecem profundamente. (NATO, 1999)38.

37 Do original em inglês: “The North Atlantic Alliance, founded on the principles of democracy, individual

liberty and the rule of law, remains the basis of our collective defence; it embodies the transatlantic link that binds North America and Europe in a unique defence and security partnership.” (NATO, 1999, tradução nossa).

38 Do original em inglês: “Here in Washington, we have paid tribute to the achievements of the past and we

have shaped a new Alliance to meet the challenges of the future. This new Alliance will be larger, more capable and more flexible, committed to collective defence and able to undertake new missions including contributing to effective conflict prevention and engaging actively in crisis management, including crisis response operations. The Alliance will work with other nations and organisations to advance security, prosperity and democracy throughout the Euro-Atlantic region. The presence today of three new Allies - the Czech Republic, Hungary and Poland - demonstrates that we have overcome the division of Europe. The Alliance takes the opportunity of this 50th anniversary to recognise and express its heartfelt appreciation for the commitment, sacrifice, resolve and loyalty of the servicemen and women of all Allies to the cause of freedom. The Alliance salutes these active and reserve forces' essential contributions, which for 50 years have guaranteed freedom and safeguarded trans-Atlantic security. Our nations and our Alliance are in their debt and offer them profound thanks.” (NATO, 1999, tradução nossa).

Na cúpula de 1999 a Aliança aprovou a adoção do novo Conceito Estratégico que consagra formalmente missões da organização para além dos países membros. A evocação do aperfeiçoamento da instituição pela definição da “nova OTAN” e o uso repetitivo das palavras “mais” e “melhor” se referenciam a este novo conceito estratégico, apresentando a organização como uma instituição que superou os desafios e continuará exercendo um papel fundamental na segurança europeia. Ainda, a alusão aos novos membros da OTAN no documento é utilizado como forma de demonstrar a benevolência da organização que superou a divisão da Guerra Fria e “incluiu” voluntariamente ao seu escopo antigos países rivais.

Ainda neste contexto o documento define esta “nova OTAN” como a “OTAN do século XXI [...] - uma OTAN que retém as forças do passado e tem novas missões, novos membros e novas parcerias.”39 Em seguida, deixa claro a necessidade do adensamento da expansão da instituição pela afirmação do “nosso compromisso com o processo de ampliação da Aliança, aprovamos um Plano de Ação para a Afiliação dos países que desejam participar” (NATO, 1999).

A cúpula de 1999 também foi marcada pelos eventos relacionados a intervenção da OTAN na crise no Kosovo que, por sua vez, também são utilizados pela aliança ocidental como um critério para a validação da admissão de novos membros. O apoio explícito ao envolvimento ocidental nesta crise dado pelos nove aspirantes a membros citados no fragmento da declaração de Washington é notadamente reconhecido no documento, não somente pelos “avanços democráticos,” mas também pela a intenção de incluí-los na organização.

Nesse sentido, os noves países referidos são saudados mais uma vez pelo progresso em torno das “reformas liberais e democráticas” empreendidas e pela cooperação na crise do Kosovo naquele ano:

Hoje reconhecemos e saudamos os contínuos esforços e progressos tanto na Romênia quanto na Eslovênia. Também reconhecemos e saudamos os esforços e progressos contínuos na Estônia, Letônia e Lituânia. Desde a Cúpula de Madrid, notamos e saudamos os desenvolvimentos positivos na Bulgária. Registamos também e congratulamo-nos com os recentes desenvolvimentos positivos na Eslováquia. Estamos gratos pela cooperação da antiga República Iugoslava da Macedônia com a OTAN na crise atual e congratulamo-nos com o seu progresso nas reformas. Congratulamo-nos com a cooperação da Albânia com a Aliança na presente crise e incentivamos os seus esforços de reforma. [...] Tomamos em consideração os esforços destes aspirantes a membros, juntamente com vários outros países Parceiros, para melhorar as relações com os vizinhos e contribuir para a segurança e estabilidade da região euro-atlântica. Estamos ansiosos para aprofundar

39 Do original em inglês: “The NATO of the 21st century [...] - a NATO which retains the strengths of the past

ainda mais a nossa cooperação com os países em vias de adesão e aumentar o seu envolvimento político e militar no trabalho da Aliança (NATO, 1999)40.

A justificativa oficial ilustrada na declaração final em 1999 se utiliza da retórica de um potencial alastramento desta crise para outras regiões, de forma a apresentar que o Ocidente tem a responsabilidade moral de agir no conflito para defender sua própria segurança. Ainda, o trecho do documento explicita a adoção de um “novo nível de envolvimento” para garantir a segurança regional e a democracia revisitando o Novo Conceito Estratégico, adotado, naquele ano, como forma de condução de uma integração da “família europeia alargada” (NATO, 1999).

O discurso de responsabilidade ocidental em agir na crise para evitar que esta se espalhe denota ao caso em tela a inferioridade temporal daquela região como presa ao conflito e reifica a superioridade moral ocidental pela preposição que a superação desta crise só seria possível a partir da ação OTAN. Conforme pondera Hansen (2006) a construção da narrativa baseada nas dimensões identitária temporais e éticas está fundada no objetivo de “criar segurança, prosperidade e uma sociedade civil democrática.” Neste caso se outorga ao papel da OTAN, no conflito no Kosovo, a característica de “intervenção humanitária,” bem como legitima a própria existência da aliança e a sua expansão.

A continuação da crise no Kosovo e nos seus arredores ameaça desestabilizar ainda mais as áreas além da República Federativa da Iugoslávia (RFJ). O potencial para uma instabilidade mais ampla sublinha a necessidade de uma abordagem abrangente para a estabilização da região em crise no Sudeste da Europa. Reconhecemos e endossamos a importância crucial de tornar a Europa do Sudeste uma região livre de violência e instabilidade. Por conseguinte, é necessário um novo nível de envolvimento internacional para criar segurança, prosperidade e sociedade civil democrática, conduzindo a tempo à plena integração na família europeia alargada (NATO, 1999).41

40 Do original em inglês: “Today we recognise and welcome the continuing efforts and progress in both

Romania and Slovenia. We also recognise and welcome continuing efforts and progress in Estonia, Latvia and Lithuania. Since the Madrid Summit, we note and welcome positive developments in Bulgaria. We also note and welcome recent positive developments in Slovakia. We are grateful for the co-operation of the former Yugoslav Republic of Macedonia (1) with NATO in the present crisis and welcome its progress on reforms. We welcome Albania's co-operation with the Alliance in the present crisis and encourage its reform efforts” [...] “We take account of the efforts of these aspiring members, together with a number of other Partner countries, to improve relations with neighbours and contribute to security and stability of the Euro- Atlantic region. We look forward to further deepening our co-operation with aspiring countries and to increasing their political and military involvement in the work of the Alliance.” (NATO, 1999, tradução nossa).

41

Do original em inglês: “The continuing crisis in and around Kosovo threatens to further destabilise areas beyond the Federal Republic of Yugoslavia (FRY). The potential for wider instability underscores the need for a comprehensive approach to the stabilization of the crisis region in South-Eastern Europe. We recognise and endorse the crucial importance of making South-Eastern Europe a region free from violence and instability. A new level of international engagement is thus needed to build security, prosperity and democratic civil society, leading in time to full integration into the wider European family.” (NATO, 1999, tradução nossa)

3.3 UMA VOLTA PARA O MUNDO OCIDENTAL? A SEGUNDA ONDA DA