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A CARACTERIZAÇÃO CONTEMPORÂNEA DOS CONTRATOS

DE IDENTIFICAÇÃO DOS CONTRATOS PÚBLICOS.

“Nosso Produto Interno Bruto agora ultrapassa 800 bilhões de dólares por ano. Mas nesse PIB estão embutidos a poluição do ar, os comerciais de cigarros e as ambulâncias para limpar nossas carnificinas. Ele inclui fechaduras especiais para nossas portas e prisões para as pessoas que as arrombam. Inclui a destruição de nossas sequoias e a perda de nossas maravilhas naturais em acumulações caóticas de lucro. Inclui as bombas napalm e as ogivas nucleares e os veículos blindados da polícia para combater os tumultos em nossas cidades.

Inclui (…) os programas de televisão que estimulam a violência com a finalidade de vender brinquedos a nossas crianças. Entretanto, o PIB não garante a saúde de nossas crianças, a qualidade de sua educação ou alegria de suas brincadeiras. Não inclui a beleza de nossa poesia ou a solidez de nossos casamentos, a inteligência de nossos debates públicos ou a integridade das autoridades de nosso governo. Ele não mensura nosso talento ou nossa coragem, nossa sabedoria ou nosso aprendizado, nossa compaixão ou nossa devoção a nosso país. Ele tem a ver com tudo, em suma, exceto com aquilo que faz com que a vida valha a pena. E ele pode nos dizer tudo sobre os Estados Unidos, exceto o motivo pelo qual temos orgulho de ser americanos”.471

Como visto no capítulo anterior, há um movimento crescente no mundo em geral e no Brasil em particular – aqui unificado em torno da inserção do desenvolvimento nacional sustentável como finalidade da contratação pública – do emprego do contrato público como

471 Trata-se de trecho de discurso proferido por Robert F. Kennedy em 1968. In: SANDEL, Michael J. Justiça:

O que é fazer a coisa certa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011, p. 323.

veículo de políticas públicas voltadas à satisfação de direitos fundamentais e de valores morais consagrados pela sociedade.

Nesse contexto, visualiza-se que a contratação pública deixa de funcionar exclusivamente como instrumento técnico-administrativo de provisão de bens, serviços e de delegação de serviços públicos para figurar como uma das atividades-fim mais relevantes para o Estado dar conta de suas atribuições constitucionais.472

Trata-se, nesse sentido, de uma perspectiva atual, plenamente verificável na atuação dos mais diversos Estados e do Brasil, como corrobora a ideia antes explicitada de governo por contrato(s). Dito de outro modo, o contrato público incumbido de uma finalidade estatal mediata constitui uma prática atual comum, quase uma “moda”, no sentido de um tema bastante reiterado na esfera do direito da contratação pública. Como qualquer prática social humana, também os ramos do direito possuem suas “modas”.

Como exemplos, a aceitação doutrinária do contrato administrativo como efetivo contrato, a sua utilização como via técnica-jurídica de ação administrativa, a sua submissão ao direito público e a garantia da intangibilidade da equação econômico-financeira configuram exemplos de “modas” ou temáticas reiteradas mais ou menos duradouras neste âmbito do conhecimento. Algumas perduram até hoje, outras passaram.

Estar atento a elas e, mais do que isso, “andar na moda”, pode significar uma forma privilegiada de visualização das transformações pelas quais passa a contratação pública contemporânea. Possivelmente, enquanto este trabalho é escrito, novas “modas” estão sendo lançadas, em especial, no Brasil, provavelmente relacionadas ao accountability e à responsabilização de agentes públicos ou privados que se utilizam da contratação pública para objetivos ilícitos.473

472 Tradicionalmente, ao lado do contrato, o regulamento, o ato administrativo, a licitação, o procedimento (ou processo administrativo), são considerados vias técnico-jurídicas de ação administrativa, vale dizer, funcionam como instrumento para que o Estado realize as suas atividades administrativas propriamente ditas, tais como os serviços públicos e as obras públicas, o fomento, o poder de polícia, dentre outros. Cfr.: BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. 30ª ed., São Paulo: Malheiros, 2013, p. 341.

473 Em março de 2014 foi deflagrada pela Polícia Federal brasileira, a Operação Lava Jato, com dezenas de fases e desdobramentos. Ela é considerada a maior investigação de corrupção da história do país, envolvendo grande número de agentes públicos e privados, aos quais são imputados atos ilícitos relacionados à contratação pública de obras de grande porte. Há a esperança de que, após a operação supra, ocorra o aperfeiçoamento de mecanismos jurídicos no sentido de se inibir práticas delituosas no relacionamento público-privado. Cfr.:

http://www1.folha.uol.com.br/poder/2014/11/1548049-entenda-a-operacao-lava-jato-da-policia-federal.shtml. Acesso em 15 de abril de 2015.

O foco na finalidade da contratação pública, porém, não parece se constituir numa

“moda” temporária. Mutáveis tem sido os nomes atribuídos às suas finalidades (bem como as suas críticas): interesse público, interesse coletivo, finalidade pública, interesse social etc., mas a finalidade, em si, não tem sofrido maiores alterações. Trata-se da busca de valores e interesses, direitos e necessidades indisponíveis e que, por conseguinte, são de persecução atribuída, em maior ou menor grau, direta ou diretamente, ao Estado.

A indisponibilidade da finalidade contratual pública, como de todas as demais tarefas estatais, é que torna obrigatória a sua prossecução. Isso porque a disponibilidade é atributo dos interesses, valores e vontades dos particulares. Por exemplo, caso não seja realizada uma vontade individual, em princípio, tal fato não gera per se prejuízo a valor ou direito fundamental, pois se encontra na esfera individual da autonomia da vontade.474

Por sua vez, os interesses, valores, direitos e necessidades indisponíveis, pela sua natureza, são de prossecução obrigatória pelo Estado, porque, caso não sejam efetivados, ensejam afronta a valores e direitos fundamentais, consagrados pelo ordenamento jurídico.475

Ao se aludir, por ora, à ideia de uma justiça contratual distributiva não se está a querer indicar mais um conceito semanticamente aberto, indeterminado, como escopo do contrato público atual. Não se busca aqui se inserir em (ou lançar) mais uma “moda”. Antes disso, pretende-se revelar que a contratação pública possui múltiplos elementos a caracterizá-la e que, ao lado da ideia de comutatividade (e, por consequência, de justiça comutativa) que fundamenta, v.g., a manutenção do equilíbrio econômico-financeiro, há a noção de distributividade (justiça distributiva) contratual, que se apresenta como elemento essencial e, portanto, não acessório na contratação pública contemporânea.

De partida, isso ocorre porque a contratação pública – de qualquer natureza e/ou abrangência - não consegue fugir de uma de suas características genéticas, que influenciam todo o seu regime jurídico: quando o Estado contrata, ele procede, como inerente à ideia do contrato como instrumento de trânsito econômico, a uma distribuição de riqueza476 ou, na

474 Cfr.: JUSTEN FILHO, Marçal. Conceito de Interesse público e a Personalização do Direito Administrativo. In: Revista Trimestral de Direito Público. nº 26. São Paulo: Malheiros, 1999, p. 133.

475 Cfr.: BREUS, Thiago Lima. Políticas Públicas no Estado Constitucional: Problemática da Concretização dos Direitos Fundamentais pela Administração Pública Brasileira Contemporânea. Belo Horizonte: Fórum, 2007, p. 149 e seguintes.

476 ROPPO, Enzo. O Contrato. Almedina: Coimbra, 2009, p. 341.

forma de conceitos econômicos, ele cria necessariamente externalidades positivas e negativas.477 Por natureza, portanto, a contratação pública, ao realizar externalidades positivas, promove uma forma de intervenção na vida econômica, política e social da comunidade.478

De outro lado, grande parte da literatura nacional aplicável aos contratos públicos não dá maior atenção a essas questões. A doutrina, em sua maioria, promove uma hermenêutica da legislação aplicável, sanando as incongruências legais e elucidando eventuais divergências interpretativas. Trata-se de uma tarefa que ela não pode se escusar.479 Contudo, diante da atual relevância dos contratos públicos e da sua repercussão em termos econômicos, sociais e de justiça, a sua atuação de cariz distributivo não pode ser considerada secundária.

As considerações levadas a efeito acima constituem, para muitos, uma abordagem de cunho filosófico ou sociológico, que escapariam à dignidade científica do direito. Todavia, dada a sua importância, inclusive como fonte de elaboração legislativa e de ação administrativa, entende-se pertinente o exame desses elementos subjacentes à atividade contratual do Estado.480

O objetivo do presente capítulo, por conseguinte, dirige-se a apontar que a prossecução de uma justiça de caráter distributivo se constitui em elemento indissociável da contratação pública contemporânea, de modo que ela (a justiça contratual distributiva) pode se constituir em um elemento contemporâneo de caracterização do contrato público.

4.1. A controvérsia a propósito da caracterização do contrato público e de seus elementos essenciais.

477 Cfr.: ARAÚJO, Fernando. Introdução à Economia. 3ª ed., Coimbra: Almedina, 2006, p. 569 e seguintes.

478 RAIMUNDO, Miguel Assis. A Formação dos Contratos Públicos: Uma concorrência ajustada ao interesse público. Lisboa: AAFDL, 2013, p. 394

479 Cfr.: SUNDFELD, Carlos Ari. Direito Administrativo para Céticos. São Paulo: Malheiros, 2012, p. 36 e seguintes.

480 Em certo sentido, esse é o argumento levado a efeito por Marçal Justen Filho para expor as “ideologias”

subjacentes ao sistema constitucional tributário, que, geralmente não explicitadas pela doutrina, conduzem à conformação de um sistema tributário desigual. JUSTEN FILHO, Marçal. Sistema Constitucional Tributário: Uma Aproximação Ideológica. In: Revista da Faculdade de Direito da UFPR. Curitiba, ano 30, nº 30, p. 215-233. 1998.