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A “descoberta” da relevância socioeconômica da contratação pública e o

Como acima destacado, as concessões e permissões estão cada vez mais presentes na vida do cidadão, devido à indispensabilidade da prestação dos serviços públicos para a satisfação de necessidades humanas essenciais.

Se pequenas suspensões da prestação do serviço já acarretam danos incomensuráveis, a interrupção de determinados serviços públicos é capaz de inviabilizar a própria convivência humana em determinados espaços urbanos368.

A continuidade, a adequação do serviço e a satisfação dos direitos dos usuários perpassa pela garantia da boa execução do contrato público, o que torna o próprio instrumento contratual e os seus possíveis efeitos, tanto fáticos quanto jurídicos, objeto de atenção e controle coletivo.

368 Em 2014, o Estado de São Paulo passou por uma grave crise de abastecimento de água, o que levou a uma série de medidas de racionamento, que levou a uma série de pessoas a se mudar para outras cidades e empresas a modificar a sua sede. Sobre o tema: http://www1.folha.uol.com.br/especial/2014/crise-da-agua/#2646214282140136. Acesso em 10 de janeiro de 2015. O estado norte-americano da Califórnia vive também uma crise de água. Em 2014, o governo local declarou estado de emergência e começou a tomar medidas para preservar os recursos e evitar desperdício. Os cidadãos entraram num regime intenso de economia de água, com aplicação de elevadas multas para quem for flagrado em situações de desperdício, como lavar calçadas com mangueira ou deixar a irrigação do jardim ligada. Sobre o tema:

http://www.latimes.com/opinion/op-ed/la-oe-famiglietti-southern-california-drought-20140709-story.html.

Acesso em 10 de janeiro de 2015.

Não raro, os contratos de concessão e permissão de serviço público têm sido inseridos na pauta do debate político eleitoral. Seja em defesa da concessão do serviço, seja em oposição a ela, o instrumento contratual é colocado no epicentro da discussão.

No Brasil, também não tem sido incomum que a contratação pública estampe a capa de todos os periódicos. Costumeiramente relacionados com a malversação de recursos públicos, com o enriquecimento ilícito e lesão ao erário, além de taxados como fonte (ou duto) de corrupção, os contratos públicos (bem ou mal) representam assunto comum no dia-a-dia do brasileiro.

Ainda, a afirmação de um Estado social e intervencionista acarretou uma função promocional de satisfação de demandas morais da sociedade correspondentes a direitos constitucionalizados. Os entes públicos assumiram o dever de satisfação de uma vasta gama de necessidades coletivas e individuais, de modo que o Estado, individualmente considerado, tornou-se o maior contratante na economia, inclusive nos EUA, que é considerado o que apresenta menor grau de intervenção, dentre os países desenvolvidos.

Assim, a atividade contratual do Estado não pode mais ser compreendida exclusivamente como mero instrumento para atendimento de necessidades administrativas ou tão-só como meio para a delegação do exercício de atividades públicas para os particulares. É preciso considerá-la também como forma de satisfação de direitos e liberdades constitucionais.

A capacidade de compra dos entes públicos passa a funcionar, assim, como elemento de orientação do mercado e dos operadores econômicos no sentido de uma responsabilidade social inescusável, além de fomentar o desenvolvimento de novos produtos ou serviços inovadores, o que traz, por decorrência, a dinamização da atividade econômica e da competitividade.369

Se antes os contratos públicos poderiam (facultativamente) ser compreendidos como instrumentos de indução de comportamentos dos particulares em direção à satisfação de fins horizontais, agora, eles passam obrigatoriamente (incide o dever jurídico) a servir para estes fins. Isso se deve à ampliação da conscientização do poder de compra estatal e da sua repercussão no mercado.

369 PERNAS GARCÍA, J. José. (Direccíon) y otros. Contratación Pública Estratégica. Presentación.

Pamplona: Thomson Reuters – Aranzadi, 2013, p.17.

O aproveitamento econômico das externalidades positivas do contrato público, porém, não é tão recente. Há alusões de que esta dimensão instrumental da contratação pública sempre esteve presente. Ela pode ser revelada de forma muito evidente, pelas cláusulas de preferência por produtos nacionais ou de origem local, realizadas mesmo em Estados que alegam aversão ao protecionismo, como os EUA.

Lá, o Buy American Act, aprovado pelo Congresso em 1933, destinava-se a minimizar os efeitos da Depressão nos pós-1929 e se mantém vigente até os dias atuais, a despeito de todas as pressões internacionais e das organizações multilaterais370.

Em uma das primeiras tentativas de refrear a crise econômica deflagrada a partir de 2008, a União Europeia apresentou a contratação pública como estratégia de fomento ao investimento, de promoção do emprego e de estímulo à economia371. Isto é, mais do que, como é seu papel primário, satisfazer as necessidades típicas de aquisição dos órgãos públicos, v.g., suprir suas demandas de bens e serviços, a contratação pública exsurge no contexto de uma política pública macroeconômica de estímulo à economia. Trata-se, portanto, de aplicação da contratação pública para a realização da despesa pública estimuladora372, de modo a realizar objetivos políticos fundamentais por meio da inserção de critérios e/ou políticas públicas horizontais na esfera da contratação pública.

Mais recentemente, em 2009, o Congresso dos EUA aprovou pacote de estímulo à economia em que apresentam novas regras de preferência a produtos de origem norte-americana também em obras públicas.373

Na comunidade europeia, destaca-se o chamado Relatório Monti, editado em maio de 2010, o qual estabeleceu uma série de critérios para a revisão, pelos países da União Europeia, das diretivas sobre contratação pública, a partir, essencialmente, da necessidade de se permitir uma maior integração de objetivos de política horizontal na contratação pública.374

370TRIONFETTI, Frederico. Discriminatory Public Procurement and International Trade. In: The World Economy, 23, (1), 2000, p. 106.

371 GONÇALVES, Pedro Costa. Gestão de Contratos Públicos em Tempos de Crise. In: Pedro Gonçalves (Coord.) Estudos de Contratação Pública. Vol. III. Coimbra: Coimbra editora, 2010, p. 07.

372 GONÇALVES, Pedro Costa. Gestão..., p. 07

373 RAIMUNDO, Miguel Assis. A Formação dos Contratos Públicos: Uma concorrência ajustada ao interesse público. Lisboa: AAFDL, 2013, p. 394

374 Cfr.: RODRIGUES, Nuno Cunha. A Contratação Pública como instrumento de política econômica.

Coimbra: Almedina, 2013, p.197 e seguintes.

Em verdade, para além de se buscar estimular o desenvolvimento dos mercados locais, os governos sempre foram relutantes em comprar fora de seus domínios territoriais, seja por razões econômicas, como a fuga de divisas e a formação de déficit externo, seja por razões de segurança nacional e de independência econômica e tecnológica em setores estratégicos (manutenção de experiência e de capacidades industriais).375

É, portanto, com o crescente aproveitamento das externalidades positivas dos contratos públicos, tanto os de fornecimento (primeira geração), quanto os de delegação da prestação de serviços púbicos (segunda geração) que se passa a fazer referência à instrumentalização da contratação pública para o alcance de finalidades e/ou políticas horizontais, conforme se analisará a seguir.

3.5. A instrumentalização da contratação pública como re-funcionalização dos