• Nenhum resultado encontrado

3.1 Prova e cognição judicial

3.2.3 A carga dinâmica da prova

A regra de distribuição do ônus da prova prevista no art. 333 do Código de Processo Civil pode por vezes ser insuficiente para auxiliar o juiz no descobrimento da verdade ou sua aproximação necessária para decidir a demanda. A despeito do próprio dispositivo retrocitado servir como fundamento para que o juiz decida a demanda sem saber qual parte tenha razão, ganhou espaço na doutrina a teoria da chamada carga ou distribuição dinâmica do ônus da prova. Em síntese, por ser diâmica a distribuição do ônus probatório, cabe ao juiz, verificando qual parte teria melhores condições de produzir determinada prova necessária para o julgamento da demanda (conhecimentos técnicos, informações específicas e relevantes para o julgamento ou até mesmo melhor facilidade na demonstração de determinado fato), impor que uma das partes o faça, a fim de facilitar o conhecimento de um fato necessário para o julgamento.373

373 THEODORO JÚNIOR, Humberto, Curso de direito processual civil, cit., v. 1, p. 422. No mesmo sentido, CARVALHO FILHO, Milton Paulo de, Ainda a inversão do ônus da prova no código de defesa do consumidor, cit., p. 62. Consoante leciona Antônio Janyr Dall‟Agnol Junior, “deve provar quem tem melhores condições para tal. É logicamente insustentável que aquele dotado de melhores condições de demonstrar os fatos deixe de fazê-lo, agarrando-se em formais distribuições do ônus de demonstração. O processo moderno não se compactua com táticas ou espertezas procedimentais e busca, cada vez mais, a verdade” (Distribuição dinâmica dos ônus probatórios. Revista dos Tribunais, São Paulo, ano 90, n. 788, p. 102, jun. 2001). Para maiores aprofundamentos sobre o tema, ver: CREMASCO, Suzana Santi. A

Os principais fundamentos dessa teoria residem no princípio da comunhão da prova já comentado neste trabalho (art. 131 do CPC), em que pouco importa qual parte trouxe aos autos determinada prova, mas sim a ideia de que a prova produzida pertence aos autos e, portanto, se presta a auxiliar na formação do livre convencimento do magistrado. Paralelamente, o princípio da boa-fé e da cooperação, notadamente a redação dos arts. 125, I, e 339 do Código de Processo Civil, assim como a aplicação analógica dos arts. 355 e 359 do mesmo diploma, serve de fundamento para impor a distribuição dinâmica do ônus probatório.374 Por sua vez, não se trata de negar as regras existentes sobre distribuição do ônus probatório, mas é um meio adicional para que a inversão dinâmica se imponha, quando verificada a maior facilidade de produção de uma prova por um dos litigantes.375

Em contrapartida, consoante leciona Humberto Theodoro Júnior, a distribuição dinâmica deve ocorrer com parcimônia, em situações em que: (i) reputam-se verossímeis os fatos alegados por uma das partes; (ii) seja possível aferir a maior facilidade de produção da prova pela parte sobre a qual recai a distribuição dinâmica do ônus; (iii) a prova redirecionada seja possível e não constitua prova diabólica a ser suportada pela parte sobre a qual recai a distribuição dinâmica, (iv) a redistribuição não cause surpresa, franqueando-se oportunidade de produção de prova apta à parte que desincumbir-se do encargo, permitindo-se, portanto, o contraditório; e, por fim:

Formação da convicção e inversão do ônus da prova segundo as peculiaridades do caso concreto. Revista

dos Tribunais, São Paulo, ano 96, n. 862, p. 11-21, ago. 2007; PEYRANO, Jorge W. Nuevos lineamientos

de las cargas probatórias dinâmicas. In. PEYRANO, Jorge W.; WHITE, Inês Lépori (Coords.). Cargas

probatórias dinâmicas. Santa Fé: Rubinzal-Culzoni, 2004. p. 19-24; e KNIJNIK, Danilo. As

(perigosíssimas) doutrinas do „ônus dinâmico da prova‟ e da „situação de senso comum‟ como instrumentos para assegurar o acesso à justiça e superar a probatio diabólica. In: FUX, Luiz et al (org.). Processo e

Constituição: estudos em homenagem ao prof. José Carlos Barbosa Moreira. São Paulo: Revista dos

Tribunais, 2006. p. 942-952.

374 “Art. 339 - Ninguém se exime do dever de colaborar com o Poder Judiciário para o descobrimento da verdade. (...) Art. 355 - O juiz pode ordenar que a parte exiba documento ou coisa, que se ache em seu poder. (...) Art. 359 - Ao decidir o pedido, o juiz admitirá como verdadeiros os fatos que, por meio do documento ou da coisa, a parte pretendia provar: I - se o requerido não efetuar a exibição, nem fizer qualquer declaração no prazo do art. 357; II - se a recusa for havida por ilegítima.”

375 Para Suzana Santi Cremasco, outros fundamentos abarcam a distribuição dinâmica do ônus da prova, tais como: (i) a busca pela verdade real no processo e a obtenção de um resultado justo, a evitar a aplicação da regra de distribuição do ônus probatório em decisão em que o juiz decida desprovido de conhecer qual parte tinha razão na demanda; (ii) os poderes instrutórios do juiz, a evitar a postura de um juiz indiferente que se veja forçado a julgar consoante a disponibilidade exclusiva das partes na produção da prova e ao final decida sem saber a qual parte assistia razão; (iii) as mesmas doutrinas publicistas que servem de fundamento para o exercício dos poderes instrutórios (A distribuição dinâmica do ônus da prova, cit., p. 79 e ss). Por sua vez, a ideia da carga dinâmica do ônus da prova constitui uma extensão mais ampla da exibição de documento ou coisa estatuída nos arts. 355 e 363 do Código de Processo Civil, porquanto não se limita apenas à exibição de coisa ou documento, mas comporta abrangência em relação à parte que tiver melhor condição de produzir a prova, de modo a não se restringir, portanto, somente ao “requerido” ou “terceiro”, tal qual previsto nos arts. 357 e seguintes do Código de Processo Civil.

“(...) a parte que suporta o redirecionamento não fica encarregada de provar o fato constitutivo do direito do adversário; sua missão é a de esclarecer o fato controvertido apontado pelo juiz, o qual já deve achar- se parcial ou indiciariamente demonstrado nos autos, de modo que a diligência ordenada tanto pode confirmar a tese de um como de outro dos litigantes; mas se o novo encarregado do ônus da prova não se desempenhar a contento da tarefa esclarecedora, sairá vitorioso aquele que foi aliviado, pelo juiz, da prova completa do fato controvertido.”376

Na jurisprudência, o Superior Tribunal de Justiça já reconheceu a aplicação da teoria dinâmica, conforme se depreende de voto da lavra do Ministro Ruy Rosado de Aguiar, ao reconhecer que, em ação de adquirente de cartela de “telebingo” que alega haver sido contemplado, caberia à organizadora do certame provar que os números sorteados não correspondem à cartela adquirida pelo autor:

“A teoria da dinâmica da prova transfere o ônus para a parte que melhores condições tenha de demonstrar os fatos e esclarecer o juízo sobre as circunstâncias da causa. Na hipótese dos autos, encontramos um bom exemplo para a aplicação dessa regra probatória, pois apenas a organizadora do certame televisionado poderia fornecer os elementos esclarecedores do ato que promoveu, porquanto não seria razoável exigir que o concorrente gravasse o programa a fim de eventualmente produzir prova em juízo. Não lhe cabe fazer essa demonstração apenas com os recursos do telemática, mas também com a simples juntada do registro constante da ata exigida na legislação pertinente. O argumento de que a ré encaminhou o feito para o julgamento antecipado não pode ser acolhido porque com aquela manifestação não estava ela renunciando a algum direito seu; significou apenas que, sem a prova dos fatos alegados pelo réu, poderia o feito ser julgado a favor da requerente, não contra.”377

No âmbito legislativo, há expressa previsão da chamada carga dinâmica da prova tanto no Projeto de Lei da Nova Lei da Ação Civil Pública (PL n. 5.139/2009,378 quanto no Projeto de Lei n. 3.015/2008, de autoria do deputado Manoel Junior.379 No que toca ao

376 THEODORO JÚNIOR, Humberto, Curso de direito processual civil, cit., v. 1, p. 422-423.

377 STJ  REsp n. 316.316/PR, 3ª Turma, rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar, DJU, de 12.11.2001, p. 156. Outros precedentes também já acolheram o entendimento da aplicação da carga dinâmica da prova: STJ  REsp n. 69.309/SC, 4ª Turma, rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar, DJU, de 26.08.1996, p. 2; TJRS  AC n. 597083534, 1ª Câmara Cível, rel. Des. Armínio José Abreu Lima da Rosa, j. 03.12.1997; TJMG  AI n. 1.0702.06.289.424-2/002, 18ª Câmara Cível, rel. Des. Fábio Maia Viani, DJMG, de 20.07.2007; TJRJ  AC n. 2008.001.08926, 9ª Câmara Cível, rel. Des. Carlos Santos de Oliveira, j. 07.03.2008; TRF 2ª Região  REO n. 326.858 (1997.51.01.000967-7/RJ), 6ª Turma, rel. Juiz André Fontes, j. 20.08.2003, DJU, de 16.04.2004.

378 Disponível em: <http://www.camara.gov.br/sileg/integras/651669.pdf>. Acesso em: 30 nov. 2009. 379

Disponível em: <http://www.camara.gov.br/sileg/integras/544501.pdf>. Acesso em: 05 dez. 2009.

Ao que consta em informações obtidas no site da Câmara dos Deputados, os projetos citados aguardam manifestação da Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania.

objetivo desta dissertação, o primeiro projeto prevê, no art. 20, incs. IV a VIII, procedimento semelhante ao da carga dinâmica da prova,380 e o segundo propõe acréscimo de um parágrafo ao art. 333 do Código de Processo Civil: “§ 2º - É facultado ao juiz, diante da complexidade do caso, estabelecer a incumbência do ônus da prova de acordo com o caso concreto”. Embora não seja objeto deste estudo o exame mais aprofundado da carga dinâmica do ônus da prova, não pode passar despercebido que este tema pode dar margem a uma tendência no sistema processual brasileiro, o que reflete, sem dúvida, no aumento dos poderes do juiz e reclama, em contrapartida, observância à garantia dos princípios constitucionais e processuais.

Parece-nos que a regra da distribuição dinâmica do ônus da prova se aproxima da inversão do ônus no Código de Defesa do Consumidor tratada no intem anterior, com a ressalva de que para a aplicação dinâmica pelo magistrado, prescinde-se que haja uma relação de consumo entre os litigantes,381 sendo suficientes, portanto, os requisitos citados neste tópico.

Feito breve exame das principais regras de distribuição do ônus probatório, cumpre analisar a projeção de cada um desses regramentos nos poderes instrutórios do juiz.

380 “Art. 20 - Não obtida a conciliação ou quando, por qualquer motivo, não for utilizado outro meio de solução do conflito, o juiz, fundamentadamente: I - decidirá se o processo tem condições de prosseguir na forma coletiva; II - poderá separar os pedidos em ações coletivas distintas, voltadas à tutela dos interesses ou direitos difusos e coletivos, de um lado, e dos individuais homogêneos, do outro, desde que a separação represente economia processual ou facilite a condução do processo; III - fixará os pontos controvertidos, decidirá as questões processuais pendentes e determinará as provas a serem produzidas; IV - distribuirá a responsabilidade pela produção da prova, levando em conta os conhecimentos técnicos ou informações específicas sobre os fatos detidos pelas partes ou segundo a maior facilidade em sua demonstração; V - poderá ainda distribuir essa responsabilidade segundo os critérios previamente ajustados pelas partes, desde que esse acordo não torne excessivamente difícil a defesa do direito de uma delas; VI - poderá, a todo momento, rever o critério de distribuição da responsabilidade da produção da prova, diante de fatos novos, observado o contraditório e a ampla defesa; VII - esclarecerá as partes sobre a distribuição do ônus da prova; e VIII - poderá determinar de ofício a produção de provas, observado o contraditório.”

381 Nesse sentido, Bento Herculano Duarte sustenta que o magistrado pode ter ampla liverdade para inverter a regra central do onus probandi, de modo a não restringir essa hipótese apenas à citada no art. 6º, VIII, do Código de Defesa do Consumidor (Elementos de teoria geral da prova, in Processo civil: aspectos relevantes, cit., p. 30).

3.2.4 A distribuição do ônus da prova: reflexos nos poderes