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Conforme sustenta Cappelletti, todas as decisões emanadas do órgão estatal têm função pública, verbis:

“(...) o processo civil, mesmo sendo um instrumento dirigido à tutela de direitos (normalmente) privados, representa, contudo, ao mesmo tempo, também uma função pública do Estado. Tratando-se de uma função pública – da mesma forma que as funções legislativas e administrativas – tem de ser considerar que o próprio Estado, não apenas as partes

207 Para Dinamarco, constituem características publicistas as garantias constitucionalmente outorgadas a princípios inerentes à ordem processual, tais como o contraditório e ampla defesa, o devido processo legal, o juiz natural, a publicidade, a motivação das decisões judiciais e a isonomia. Todos esses princípios se entrelaçam com vistas a proporcionar um processo justo e democrático, o que reveste com caráter público a função estatal da jurisdição (A instrumentalidade do processo, cit., p. 64-65).

208 DINAMARCO, Candido Rangel, A instrumentalidade do processo, cit., p. 58-59. Para o autor, essa tendência é universal e restou alimentada por influência do constitucionalismo que se projeta sobre os processualistas contemporâneos (Ibidem, p. 65-66).

209 Essa é a síntese traçada por Carlos Alberto Alvaro de Oliveira, ao constatar que a mudança de paradigma decorrente da passagem do normativismo legalista para o direito fundamental principiológico afeta a segurança jurídica, o que traz a lume a convivência de um direito mais flexível e menos rígido. Tal assertiva deflui no declínio da concepção inerte do Estado Liberal, que passa a ser substituída pela postura do aplicador do direito que deva ficar atento às peculiaridades do caso, “(…) pois, às vezes, mesmo atendido o formalismo estabelecido pelo sistema, em face das circunstâncias da espécie, o processo pode se apresentar injusto ou conduzir a um resultado injusto” (Os direitos fundamentais à efetividade e à segurança em perspectiva dinâmica. In: SALLES, Carlos Alberto de (Coord.). As grandes transformações

do processo civil brasileiro: homenagem ao professor Kazuo Watanabe. São Paulo: Quartier Latin, 2009. p.

privadas, está interessado em um ordenamento, rápido, orgânico e imparcial, exercício daquela função; que está interessado, em suma, em realizar o melhor possível entre os modos de levar a termo aquela função.”210

Sendo o processo concebido como função pública do Estado, a esse interesse público são assegurados poderes do juiz necessários a garantir o seu legítimo exercício. Dinamarco elucida diversos pontos consistentes na preponderância do interesse público sobre o privado que, por vezes, se confundem com princípios constitucionais211 do processo, concluindo, ao final, que:

“A publicização do direito processual é, pois, forte tendência metodológica da atualidade, alimentada pelo constitucionalismo que se implantou a fundo entre os processualistas contemporâneos; tanto quanto esse método, que em si constitui também uma tendência universal, ela remonta à firme tendência central no sentido de entender e tratar o processo como instrumento a serviço dos valores que são objeto das atenções da ordem jurídico-substancial.”212

Nesse contexto, no que toca aos poderes instrutórios, as iniciativas probatórias de ofício pelo magistrado bem refletem a perspectiva publicista, porquanto ao juiz contemporâneo cabe a busca da verdade necessária à formação do livre convencimento.213 Dinamarco tece as advertências necessárias no que tange ao juiz “Pilatos” que “em face de uma instrução mal feita, resigna-se a fazer injustiça atribuindo a falha aos litigantes”.214

210

CAPPELLETTI, Mauro. O processo civil no direito comparado. Tradução de Hiltomar Martins Oliveira. Belo Horizonte; Líder, 2001. p. 38.

211 Nesse sentido, Cândido Rangel Dinamarco elucida diversas situações em que a ordem pública prepondera sobre interesses privados no plano processual, tais como a inafastabilidade do controle jurisdicional, a garantia do juiz natural, o impulso oficial, a livre investigação das provas e liberdade de convencimento, o dever de fundamentação das sentenças, conhecimento de ofício de determinadas matérias, as nulidades absolutas, o contraditório, a ampla defesa e a tutela penal do processo (A instrumentalidade do processo, cit., p. 59). Ao final, conclui que: “Esses e outros sinais tornam sem dúvida que o sistema processual da atualidade é voltado à tutela de uma ordem superior de princípios e valores que se situam fora e acima do âmbito estrito dos interesses controvertidos entre as partes (ordem pública) e que, em seu conjunto, dirigem-se ao bem comum, como objetivo-síntese do Estado moderno.” (Ibidem, p. 59).

212 DINAMARCO, Candido Rangel, A instrumentalidade do processo, cit., p. 65. 213

Dinamarco bem assevera as razões que impõe maior intervenção do juiz na iniciativa da produção das provas, de sorte que deve repelir-se a ideia de que “só as partes provariam e o juiz permaneceria sempre au-

dessus de la mêlée, simplesmente recebendo as provas que elas trouxessem, para ao final examiná-las e

valorá-las. A vocação solidarista do Estado moderno, no entanto, que não permanece naquele laissez faire,

laissez passer da filosofia liberal, exige que o juiz seja personagem participativa e responsável, não mero

figurante de uma comédia. Afinal, o processo é hoje encarado como um instrumento público que não pode ser regido exclusivamente pelos interesses, condutas e omissões dos litigantes – ele é uma instituição do Estado, não um negócio em família (Liebman). (Fundamentos do processo civil moderno, cit., v. 1, p. 133). Portanto, hoje prevalece forte tendência de mitigação do princípio dispositivo para assim o juiz suprir deficiências probatórias no processo.

Assim, o julgador moderno pode determinar a produção das provas que julgar necessárias à formação de seu livre convencimento,215 porquanto o que se busca é atender à finalidade pública da jurisdição, dentre as inúmeras funções estatais.

Vale dizer, como reflexo de uma visão publicista, a iniciativa probatória do magistrado perfilha-se inerente à função do órgão judicial, de modo que, consoante adverte Barbosa Moreira: “Confiar ao juiz papel mais ativo na direção e na instrução do feito, ao contrário do que parecem recear alguns, não implica forçosamente instaurar no processo civil o domínio do „autoritarismo‟ ou do „paternalismo‟.”216

Portanto, a publicização do processo se impõe, em determinadas circunstâncias, à indisponibilidade de direitos, cuja premissa fundamental reside, em síntese, na supremacia do interesse estatal e da sociedade, conforme pondera Dinamarco:

“A nota de publicidade do processo tem como causa imediata, resumidamente, a indisponibilidade de direitos; e, como reflexo funcional no processo, a sua inquisitividade. O interesse público transcendente aos limites objetivos e subjetivos do litígio é que fada à ineficácia a inércia das partes ou ato dispositivo de situações jurídico-processuais, pois do contrário esses comportamentos conduziriam indiretamente ao sacrifício da sociedade interessada no resultado do pleito.”217

E esse interesse estatal goza de contornos de inquisitividade do Estado-juiz destinados à certeza relativa à obtenção da verdade dos fatos necessária à entrega da tutela jurisdicional justa. Se assim não fosse, esvair-se-ia por inteiro a ideologia lastreada na pacificação social, nos contornos arduamente defendidos pela doutrina contemporânea de que a jurisdição, acima de tudo, deve resolver conflitos com justiça e, nas palavras de Chiovenda retrocitadas, “dare per quanto è possibile praticamente a chi há um diritto tutto

quello e proprio quello ch‟egli há diritto di conseguire”.218

215 O tema será tratado com maior profundidade no Capítulo 3. 216

BARBOSA MOREIRA, José Carlos. A função social do processo civil moderno e o papel do juiz e das partes na direção e na instrução do processo, cit., p. 147. O autor ainda complementa: “A ampliação dos poderes do órgão judicial não tem como contrapartida necessária o amesquinhamento do papel das partes, nem a eliminação, ou sequer a redução, das garantidas a que fazem juiz, e tampouco da responsabilidade que sobre elas pesa.” (Ibidem, mesma página).

217 DINAMARCO, Candido Rangel, A instrumentalidade do processo, cit., p. 65. 218 CHIOVENDA, Giuzeppe, Instituizioni di diritto processuale civile, cit., v. 1. p. 42.

Afinal, se o juiz é o destinatário da prova,219 a sua correta análise e esgotamento de todos os elementos probatórios necessários à formação do livre convencimento do magistrado se fazem imperiosos para pacificar conflitos com justiça. Sem a aproximação de certeza da verdade não se pode aplicar o direito material pretendido. E para se obter essa certeza, ou aproximar-se ao máximo dela, necessária uma postura mais ativa do juiz, que se alinhe a contornos publicistas que não se prendam exclusivamente à vontade das partes dentro do processo. Logo, a própria entrega da tutela jurisdicional se materializa mediante a atuação do Estado-juiz, cujo interesse maior é o de aplicar a lei com justiça. Nesse contexto são os ensinamentos de Bedaque:

“Se o objetivo da atividade jurisdicional é a manutenção da integridade do ordenamento jurídico, deve o magistrado desenvolver todos os esforços para alcançá-lo, pois somente se tal ocorrer, a jurisdição terá cumprido sua função social. E, como o resultado da prova é, na grande maioria dos casos, fator decisivo para a conclusão do órgão jurisdicional, deve ele assumir posição ativa na fase investigatória, não se limitando a analisar os elementos fornecidos pelas partes, mas procurá-los, quando entender necessário. Ninguém melhor do que o juiz, a quem está afeto o julgamento, para decidir sobre a necessidade de produzir determinada prova. A colheita de elementos probatórios é ato privativo do julgador.”220

Essa iniciativa probatória pode ser ampla, até a formação do convencimento do juízo. Caberá ao magistrado, portanto, ponderar a dosimetria de suas iniciativas quanto à produção de provas, de sorte a amealhar elementos aos autos que lhe permitam proferir uma sentença segura e fundamentada, seja no campo probatório, seja justificando os alicerces de seu convencimento, quando se tratar de matéria exclusivamente de direito.

219 BEDAQUE, José Roberto dos Santos, Poderes instrutórios do juiz, cit., p. 15. Em igual sentido: BUENO, Cassio Scarpinella. Curso sistematizado de direito processual civil: procedimento comum, ordinário e sumário. São Paulo: Saraiva, 2007, v. 2, t. 1. p. 103 e 234 e ss.; e SANTOS, Moacyr Amaral. Primeiras

linhas de direito processual civil. 17. ed. São Paulo: Saraiva, 2004. v. 2, p. 338. Semelhante entendimento

também já restou sedimentado pelo Superior Tribunal de Justiça (AgR AI n. 771.335/SC, rel. Min. Sidnei Beneti, 3ª Turma, DJe, de 23.09.2008; REsp n. 670.126/RS, rel. Min. Humberto Martins, 2ª Turma, DJe, de 08.08.2008; AgR AI n. 1.009.348/SP, rel. Min. Massami Uyeda, 3ª Turma, DJe, de 01.08.2008; AgR REsp n. 809.788/RS, rel. Humberto Gomes de Barros, 3ª Turma, DJe, de 12.12.2007).

2.6 Conclusões parciais: os poderes instrutórios não beiram o