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A tutela jurisdicional é instrumentalizada pelo processo. Por sua vez, muitas teorias discorreram acerca da natureza jurídica do processo.75 Desenvolvida nos séculos XVIII e XIX e sob forte influência privatista e do liberalismo francês, Pothier defendia a ideia do processo visto como um contrato, colocado o pacto para o processo (litiscontestatio), valendo-se do mesmo raciocínio calcado na doutrina política do contrato social de Jean Jacques Rousseau.76

Essa teoria, que partia do pressuposto do processo como um verdadeiro negócio jurídico de direito privado (litiscontestação), restou rechaçada diante da concepção atual, porquanto a jurisdição impõe a inevitável sujeição das partes, independentemente de voluntária aceitação. De igual modo, não se pode admitir a concepção do processo como quase contrato (Arnault de Guényvau e Savigny, no século XIX), na medida que resta omitida uma outra fonte de obrigações, à época já prevista no Código Napoleônico de 1804: a lei.77 Ou seja, a concepção do processo como quase contrato (o que por sua vez remete a determinada fonte de obrigação) não é adequada à melhor premissa metodológica, porquanto o processo em si já decorre de previsão legal. Ademais, conforme dito anteriormente, a inevitabilidade do jurisdição prescinde a manifestação volitiva das partes, o que afasta qualquer feição do processo como contrato ou quase contrato.

75 Cintra, Grinover e Dinamarco informam que a noção de processo é esencialmente teleológica, por se caracterizar por sua finalidade de exercício do poder (jurisdiccional), ao passo em que a noção de procedimento é meramente formal, ligada aos atos que se sucedem, de sorte que em um proceso podem haver mais de um procedimento. Por sua vez, os autos são a materialidade dos documentos que se corporificam nos atos do procedimento. (Teoria geral do processo, cit., p. 297-298).

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CINTRA, Antonio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel,

Teoria geral do processo, cit., p. 299.

Oskar Von Bulow expôs em 1868 sua obra “Teoria dos pressupostos processuais e das exceções dilatórias”, que constitui um divisor de águas e fio condutor de uma verdadeira escola sistemática processual civil. Bulow segmentou em planos distintos as relações de direito material e processual a serem discutidas no processo, distinguindo, esta última, em três aspectos: a) por seus sujeitos (autor, réu e Estado-juiz),78 b) por seu objeto (a prestação jurisdicional, declaração do direito),79 e, por fim, por seus pressupostos80. Dessas premissas nasceu a teoria do processo como relação jurídica, primeiramente formada entre autor e juiz, quando aquele exerce o direito de ação; a partir do conhecimento da demanda por parte do réu, este passará também a fazer parte da relação jurídica. A despeito dessa teoria ser aceita pela maioria da doutrina nacional, duas objeções pontuais, à guisa de contraponto, merecem ser comentadas: a teoria do processo como situação jurídica, de James Goldschmidt, e a teoria do processo como procedimento em contraditório, de Elio Fazzalari.81

78 “La relación jurídica procesal se distingue de las demás relaciones de derecho por outra singular

característica, que puede haber contribuido, en gran parte, a desconocer su naturaleza de relación jurídica continua. El proceso es una relación jurídica que avanza gradualmente y que se desarrolla paso a paso. Mientras que las relaciones jurídicas privadas que constituyen la materia del debate judicial, se presentan como totalmente concluidas, la relación jurídica procesal se encuentra en embrión. Esta se prepara por medio de actos particulares. Solo se perfecciona com la litiscontestación, el contrato de derecho público, por el cual, de una parte, el tribunal asume la concreta obligación de decidir y realizar el derecho deducido en juicio, y de otra, las partes quedan obligadas, para ello, a prestar una colaboración indispensable y a someterse a los resultados de esta actividad común. Y también esta ulterior actividad discurre en una serie de actos separados, independientes y resultantes unos de otros. La relación jurídica procesal está en un constante movimiento y transformación.” (BÜLOW, Oskar Von. La teoria de las excepciones procesales y los presupuestos procesales. Traducción de Miguel Angel Rosas Lichtschein.

Buenos Aires: EJEA, 1964. p. 2).

79 Para Oskar Von Bülow, o tribunal não deve decidir apenas sobre a existencia da pretensão jurídica, mas antes fazer o exame acerca da presença das condições de existencia do proceso, sendo a decisão daquela o direito da relação jurídica privada litigiosa (judicium deducta) (La teoria de las excepciones procesales y

los presupuestos procesales, cit. p. 6-7).

80 Os pressupostos apontados por Bülow estariam divididos, em síntese, na existência de um pedido, na capacidade de quem formula o pedido e na investidura do destinatário do pedido, o juiz: “Estos problemas

deben plantearse también en la relación jurídica procesal y no se muestran a su respecto menos apropiados y fecundos que lo que se mostraron ya en las relaciones jurídicas privadas. También aqui ellos dirigen sua atención a una serie de importantes preceptos legales estrechamente unidos. En particular, a las prescripciones sobre: 1) la competencia, capacidad e insospechabilidad del tribunal; la capacidad procesal de las partes (persona legitima standi in iudicio (persona legítima para estar em juicio)) y la legitimación de su representante, 2) las cualidades proprias e imprescindibles de una materia litigiosa civil, 3) la redacción y comunicación (o notificación) de la demanda y la obligación del actor por las cauciones procesales, 4) el orden entre varios procesos. (...) En suma, en esos princípios están contenidos los elementos constitutivos de la relación jurídica procesal; idea tan poco tenida em cuenta hasta hoy, que ni uma vez há sido designada con un nombre definido. Proponemos, como tal, la expresión „presupuestos procesales‟.” (La teoria de las excepciones procesales y los presupuestos procesales, cit., p. 5-6).

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Além das críticas que serão comentadas a seguir, outras merecem ser citadas e que se contrapõe à concepção do processo como relação jurídica. É o que sustentam Cintra, Grinover e Dinamarco ao criticarem: a) a divisão do processo em duas fases (in jure e apud judicem), a primeira, ligada à análise dos pressupostos processuais, ao passo em que na segunda se examina o mérito, o que nem seria verdadeiro para o direito romano; b) o juiz teria obrigações no processo, carecendo-lhe sanções por descumprimento; e c) as partes não têm obrigações no processo, mas sujeitam-se à autoridade do órgão juridicional. (Teoria

James Goldschmidt critica a ideia de que o processo seja uma relação jurídica,82 afirmando que é uma situação jurídica. Para sua teoria, as partes do processo estão sujeitas à jurisdição e o juiz se apresenta no processo por dever funcional. Logo, o direito subjetivo do autor se converte em meras chances dentro do processo, que se desdobram em

possibilidades (de praticar atos para que o direito seja reconhecido),83 expectativas (de obter esse reconhecimento),84 perspectivas (de uma sentença favorável)85 e ônus (encargo de praticar certos atos, cedendo a imperativos ou impulsos do próprio interesse, para evitar a sentença desfavorável).86 Os estudos de Goldschmidt merecem admiração por traçarem as primeiras definições de conceitos até então mal compreendidos, como o significado de sujeição, ônus e a relação funcional do juiz com o Estado. A teoria do processo como relação jurídica não passou incólume a diversas críticas, a saber: a) ela argumenta pela exceção, tomando como regras as deformações do processo; b) não se pode falar de uma situação, mas de um complexo de situações no processo; c) é exatamente o conjunto de situações jurídicas que recebe o nome de relação jurídica. Por fim, a crítica mais contundente é que toda a situação de incerteza expressa nos ônus, perspectivas, expectativas e possibilidades refere-se à res in judicium deducta, não ao judicium em si mesmo. Ou seja, o que se coloca em dúvida é o direito subjetivo material, não o processo.87

Por sua vez, Elio Fazzalari define o processo como procedimento em contraditório, repudiando a concepção de Oskar Von Bulow. Para Fazzalari,88 necessária a distinção entre processo e procedimento, de sorte que neste último se aperfeiçoe o contraditório entre as partes, calcado na oportunidade de informação e participação garantida pela Constituição. Isso porque, sendo o procedimento uma série de atos realizados no processo, imperiosa a observância do contraditório em todos os atos para que seja legítima a preparação do provimento final. Todavia, a concepção de Fazzalari em verdade não é incompatível com a definição de Bulow do processo como relação jurídica. É certo que, de um lado, as partes têm deveres, ônus, sujeição dentro do processo, o que constitui uma

82 GOLDSCHMIDT, James. Teoria general del processo. Tradução de Leonardo Prieto Castro. Barcelona: Labor, 1936. p. 16-23. 83 Ibidem, p. 189. 84 Ibidem, p. 189-191. 85 Ibidem, p. 192. 86 Ibidem, p. 191.

87 CINTRA, Antonio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel,

Teoria geral do processo, cit., p. 302.

88 FAZZALARI, Elio. Processo (Teoria generale). In: NOVISSIMO digesto italiano. Turim: Utet, 1966. v. 13, p. 1.067-1.076.

relação jurídica. De outra banda, o processo deve ser realizado em contraditório. Ambas as assertivas retrocitadas não se chocam, mas convergem à ideia de um processo como relação jurídica e, ao mesmo tempo, atento à observância de garantias constitucionais.

De todas as teorias acima expostas, soa interessante a concepção de Oskar Von Bulow, porquanto o processo, em linhas gerais, se afeiçoa a uma relação jurídica tripartite (autor, juiz e réu),89 em que as partes se imbuem poderes, faculdades, direitos, deveres, obrigações, sujeições e ônus, de sorte que a interligação constitui mera relação jurídica.90

Por outro lado, a ideia do processo como procedimento realizado em contraditório também não pode ser esquecida, de sorte que a legitimidade do provimento resultante do processo depende da efetiva participação das partes na sua formação, ou pelo menos na oportunidade de reação/participação, além de estender a ideia de processo para toda atividade realizada em contraditório, da qual resulte um provimento.91

E nessa relação jurídica entre autor, juiz e réu, é certo que o processo materializa o instrumento para alcance da tutela jurisdicional. Vale dizer, é através do processo como instrumento que se desenvolve toda a atividade voltada a atingir os escopos da jurisdição, notadamente o escopo jurídico.92

Nessa linha de raciocínio, Bedaque conclui:

“(…) a relação processual tem seu próprio objeto, que jamais é o mesmo da relação de direito material. Pode esta pertencer ao direito público ou privado, não importa. O processo, entendido como relação processual mais procedimento, ou como procedimento realizado em contraditório, tem sempre a mesma finalidade a ser atingida: a manutenção do ordenamento jurídico, do que advém a afirmação da autoridade do Estado

89 Excluindo-se algumas hipóteses de jurisdição voluntária em que o Ministério Público não é parte que contrapõe o pedido do autor, mas tão-somente fiscal da lei em relação à viabilidade do provimento jurisdicional pretendido.

90 “São relações jurídicas, por exemplo, o nexo existente entre credor e devedor e também o que interliga os membros de uma sociedade. O processo também, como complexa ligação jurídica entre os sujeitos que nele desenvolvem atividades, é em si mesmo uma relação jurídica (relação jurídica processual), a qual, vista em seu conjunto, apresenta-se composta de inúmeras posições jurídicas ativas e passivas de cada um dos seus sujeitos: poderes, faculdades, deveres, sujeição, ônus.” (CINTRA, Antonio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel, Teoria geral do processo, cit., p. 302).

91 BEDAQUE, José Roberto dos Santos, Poderes instrutórios do juiz, cit., p. 67. 92

O processo, na visão de Giuseppe Chiovenda, é instrumento necessário para atuação da jurisdição, com a função de “dare per quanto è possibile praticamente a chi ha um diritto tutto quello e proprio quello

e a paz social. A relação processual é, portanto, completamente independente da de direito material. O que existe é uma relação de instrumentalidade entre o processo e o direito objetivo material, pois aquele visa à atuação deste. E essa finalidade satisfaz não apenas o interesse das partes cujas relações são reguladas pelas normas de direito material, mas, principalmente, o interesse público na obediência à ordem jurídica estabelecida. Aliás, este último se sobrepõe ao primeiro. Conclui- se, portanto, que o processo jurisdicional é instrumento de uma função do Estado que, para manter a paz e a harmonia social, tem a atribuição específica de promover a atuação do ordenamento jurídico.”93

Sendo o processo composto de uma relação tripartite e alinhado a servir como instrumento através do qual se atinge os escopos da jurisdição, resta clara a natureza pública da relação processual. O juiz não é parte no processo, mas agente, através do qual age o próprio Estado. Nesse contexto, a imparcialidade do juiz se sobrepõe ao interesse das partes, através de autoridade soberana, de modo a constituir o liame entre Estado-juiz e partes uma relação de direito público. No escólio de Grinover, Cintra e Dinamarco:

“A relação processual é de direito público, ainda que seja privada a relação substancial controvertida: assim, tanto é pública a relação processual penal como a trabalhista ou a civil, ainda que, com referência particular a esta, a pretensão deduzida seja de caráter privado (obrigações, coisas, etc.).”94

Diante da conclusão de que o processo é a relação jurídica que serve como instrumento para um provimento justo95 é que serão analisados alguns aspectos ligados à atividade exercida pelo juiz (personificação do Estado), o qual exerce o poder em benefício geral e no cumprimento de sua função para pacificar os sujeitos em conflito e realizar a paz social. Ou seja, por ser relação processual de direito público, o interesse na prestação da tutela jurisdicional de forma justa consoante o escopo jurídico passa a pertencer ao Estado- juiz. Logo, a esse Estado-juiz são imbuídos poderes outorgados ao magistrado para a aproximação de um juízo de certeza que reflita a correta e adequada aplicação da lei, razão pela qual o ativismo judicial (notadamente mediante exercício dos poderes instrutórios) se

93 BEDAQUE, José Roberto dos Santos, Poderes instrutórios do juiz, cit., p. 68-69.

94 CINTRA, Antonio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel,

Teoria geral do processo, cit., p. 311. No mesmo trecho, os autores complementam que o juiz não é sujeito

em nome próprio, porém órgão através do qual age o Estado. Portanto, o Estado-juiz não guarda interesse algum sobre o bem da vida objeto do litígio entre as partes, mas exerce sua função soberana, passando, portanto, a guardar feição de uma relação de direito público. Dentre as principais características da relação processual, destacam-se a complexidade, progressividade, unidade, estrutura tríplice e a natureza pública (Ibidem, p. 310-311).

impõe para determinar iniciativas probatórias que conduzam a uma cognição mais profunda, que possibilite um julgamento mais acertado, próximo da verdade e revestido da devida aplicação da lei.

Antes de analisar em maior profundidade os fundamentos dos poderes instrutórios, necessário, contudo, traçar breves apontamentos sobre dois institutos fundamentais, que em muito se aproximam: a ação e a defesa.