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3.1 Prova e cognição judicial

3.2.1 O ônus da prova (ônus objetivo e ônus subjetivo)

A palavra ônus significa “carga”, “fardo” “peso”, consistente, no que toca ao ônus probatório, em um “dever no sentido de interêsse, de necessidade, interêsse, necessidade de produzir a prova para formar-se a convicção do juiz a respeito dos fatos alegados”.345 Não se confunde com um dever jurídico, porquanto não há um direito que lhe seja correlato, tampouco qualquer sanção por seu não cumprimento, mas relaciona-se com a necessidade da prática de um ato para a assunção de uma específica posição de vantagem própria ao longo do processo, ao passo que, na hipótese oposta, o que pode ocorrer é um prejuízo para quem não praticou o ato ou o praticou insuficientemente.346 Portanto, o ônus de provar não

345 SANTOS, Moacyr Amaral. Prova judiciária no cível e comercial, cit., v. 1, p. 98. 346

BUENO, Cassio Scarpinella, Curso sistematizado de direito processual civil, cit., v. 2, t. 1, p. 246. Semelhante constatação é feita por Rui Manuel de Freitas Rangel, para quem o ônus corresponde ao exercício de uma faculdade colocada como condição para obter certa vantagem e realizar determinado interesse. Por sua vez, “a inobservância do ónus faz recair sobre a parte que tem esse encargo o risco do silêncio do seu comportamento, que lhe accarretará determinados efeitos negativos e desvantagens; o incumprimento da obrigação ocorre pela possibilidadade que assiste ao sujeito de não cumprir” (O ônus da

é um dever, mas é empregado em proveito próprio daquele sobre o qual recai o ônus de provar determinado fato, sob pena de suportar o risco de deixar de lhe ser entregue a tutela jurisdicional na forma pretendida.347

Na repartição desse ônus, costuma-se falar em ônus subjetivo e ônus objetivo. O primeiro está ligado à conduta processual exigida da parte para que a verdade dos fatos por ela arrolados seja admitida pelo juiz, de sorte que o litigante assuma o risco de perder a causa se não provar os fatos alegados, dos quais dependa a existência do direito subjetivo que pretende resguardar através da tutela jurisdicional.348 Vale dizer, se a parte deixar de produzir determinada prova cujo ônus lhe incumbia, isso não necessariamente conduz a um julgamento a ela desfavorável, porquanto, conforme visto acima, no ínterim de formação do livre convencimento do magistrado e valoração da prova, é feito o confronto de todas as provas produzidas nos autos, até que possa angariar elementos que fundamentem a decisão em favor de uma das partes. De todo modo, é franqueado à parte fazer prova de seu direito na forma da repartição do ônus probatório; em não o fazendo, assume o risco da demanda lhe ser julgada de forma desfavorável. Alfredo Buzaid conclui:

“O que entre em cogitação é a verdade dos fatos da causa a ser decidida. Só quando haja incerteza sôbre a questão de fato é que o juiz necessita de uma indicação, que há de orientar o conteúdo da sentença. Não surge, pois, o problema do ônus da prova, quando são pacíficas as afirmações das partes relativas às questões de fato, ou quando o juiz se convence da verdade ou não das afirmações discutidas, seja porque essa convicção nasce da prova produzida, seja porque resulta do conjunto dos debates.”349

Por outro lado, o ônus objetivo reflete a própria função jurisdicional inerente à atividade do juiz, sendo a ele vedado se abster de julgar (non liquet), sob a premissa de que os fatos trazidos aos autos não restaram comprovados. Consoante leciona João Batista Lopes:

347

Para estudo mais aprofundado do tema, ver: PACÍFICO, Luiz Eduardo Boaventura. Ônus da prova no

direito processual civil. 2. tiragem. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001; e MICHELI, Gian Antônio. L'onere della prova. Padova: Cedam, 1966; VERDE, Giovanni. L‟onere della prova nel processo civile.

Napoli]: Jovene, 1974; e DEVIS ECHANDIA, Hernando, Teoria general de la prueba judicial, cit., v. 1. 348

THEODORO JÚNIOR, Humberto, Curso de direito processual civil, cit., v. 1, p. 420.

349 BUZAID, Alfredo. Do ônus da prova. Revista de Direito Processual Civil, São Paulo, Saraiva, v. 4, p. 15, 1964.

“(...) há dois aspectos do ônus da prova, bem claros e definidos: a) o ônus subjetivo (a quem incumbe provar); b) o ônus objetivo (encerrada a prova, irrelevante é indagar se houve estrita observância das regras que regem o ônus subjetivo da prova, pois o juiz, destinatário dela, julgará a causa levando em consideração todos os elementos constantes dos autos.”350

Sob essa perspectiva, o que importa é o estabelecimento das bases para a formação da convicção juidicial, de modo que “não é tarefa exclusiva da parte a quem incumbe o ônus da prova; o que interessa é somente o demonstrado, não quem o demonstrou”.351 O aspecto objetivo do ônus da prova guarda ligação com o princípio da aquisição processual ou da comunhão nos resultados da prova,352 o qual preceitua que pouco importa qual parte tenha trazido a prova aos autos, porquanto ela pertence ao processo e se faz necessária para formar o livre convencimento do juiz.

Por outro lado, seja no aspecto subjetivo, seja no objetivo, a distribuição do ônus da prova tem por finalidade permitir ao juiz que aplique tal regra na ocasião de julgar a demanda, e assim evitar que deixe de julgar com base na falta de prova do direito das partes. Ou seja, é vedado ao juiz não proferir sentença edeixar de entregar a tutela jurisdicional, sob a assertiva de que, pela análise dos elementos probatórios trazidos aos autos, não conseguiu decidir ainda a qual parte assiste razão na demanda. Daí porque as regras de distribuição do ônus da prova guardam utilidade para se evitar o non liquet, porquanto, nessa hipótese, o juiz poderá decidir a demanda fundamentando sua decisão no desatendimento do ônus probatório que recaía sobre o litigante que deixou de produzir a prova acerca de determinado fato necessário para se prover o pedido.

Nesse caso, a decisão, embora fundamentada na falta de prova, será justificada no desatendimento do ônus que cumpria ao litigante comprovar determinado fato, de modo a salvaguardar um julgamento arbitrário. Essas regras de distribuição do ônus probatório

350 LOPES, João Batista, A prova no direito processual civil, cit., p. 46. 351 BUZAID, Alfredo, Do ônus da prova, cit., p. 17.

352 ARRUDA ALVIM, José Manoel, Manual de direito processual civil, cit., v. 2, p. 481. Pertinentes são as críticas desse autor em relação à infeliz concepção técnica de ônus objetivo, porquanto em verdade não há ônus algum que recaia sobre a conduta do magistrado. Aliás, “se há comunhão nos resultados da prova,

num caso concreto, não há que se falar em ônus. Demais disso, o ônus é por natureza, eminentemente

subjetivo e relacionado com o agir ou com o não agir bem ou mal sucedido de um litigante” (Ibidem, mesma página). Em semelhante sentido, Dinamarco é taxativo em lecionar que não há ônus processuais ao juiz, mas sim poderes que a lei lhe outorga e que são acompanhados do dever de exercê-los (DINAMARCO, Cândido Rangel, Instituições de direito processual civil, cit., v. 2, p. 213).

devem ser aplicadas somente quando ausentes provas sobre os fatos em que versa a ação, em hipóteses que o juiz não tem outros elementos para reconstruir a realidade, convencer- se e proferir uma decisão justa.353

Logo, a fim de coroar o escopo jurídico da jurisdição, deve-se evitar o julgamento sem saber quem tem razão e calcado na mera aplicação de regra de distribuição do ônus probatório. A distribuição do ônus da prova prevista no art. 333 do Código de Processo Civil354 é vista como uma regra de julgamento,355 ou seja, o juiz só deve aplicá-la na ocasião em que proferir sentença, e desde que não tenha elementos suficientes para a formação de seu livre convencimento, e assim decidir de forma justa.356 De igual sorte, a

353 CAMBI, Eduardo. A prova civil: admissibilidade e relevância. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. p. 316.

354 Ao autor cabe provar o fato constitutivo de seu direito, ao passo que ao réu incumbe demonstrar a existência de fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do autor. Em linhas gerais, consoante leciona Bedaque, fato constitutivo é aquele que dá vida a uma vontade concreta da lei, que tem essa função e normalmente produz efeito. O fato extintivo faz cessar essa vontade, ao passo que o fato impeditivo é a inexistência do fato que deve concorrer com o constitutivo para que ele produza efeitos; o fato constitutivo é causa eficiente, ao passo que o fato impeditivo é a ausência de uma causa concorrente (Poderes

instrutórios do juiz, cit., p. 117).

355 Vale lembrar que a regra constante no art. 333 do Código de Processo Civil não é a única em relação à distribuição do ônus da prova. Conforme pondera Dinamarco, há inúmeras situações regidas pelo direito processual e pelo direito material que distribuem o ônus da prova, a exemplo do art. 389, I, do Código de Processo Civil, ao impor o ônus de demonstrar a falsidade do documento que compete à parte que houver arguido, assim como o inc. II, que determina que na impugnação sobre a assinatura do documento, deve ser demonstrada a autenticidade da parte daquele que o assina. Outros exemplos também se encontram previstos no Código Civil, cabendo ao depositário o ônus de provar o caso fortuito ou a força maior, sempre que os alegue como fundamento para não respoder pelos danos sofridos pela coisa depositada (art. 642); àquele que pagou de forma indevida, incumbe o ônus de provar tê-lo feito por erro (art. 877); quem paga o incapaz e vindo a obrigação a ser anulada por isso, tem o ônus de provar que o pagamento reverteu em proveito dele, para assim obter a restituição do valor pago (arts. 181 e 310). Por sua vez, cabe ao fabricante, produtor, construtor ou importador o ônus de comprovar a alegação de não haver colocado o produto no mercado, ou de que ele não é defeituoso, ou que o dano decorreu de culpa exclusiva do consumidor (art. 12, § 3º, incs. I a III, do CDC – Lei n. 8.078/90), ao passo que a Lei do Inquilinato (Lei n. 8.245/91) prevê o ônus do locatário de provar a causa dirimente (caso fortuito ou de força-maior – art. 23, III, V e XI), a fim de exonerar-se da responsabilidade pelo incêndio do prédio locado (Instituições de direito processual civil, v. 3, cit., p. 73-75).

356 Nesse sentido: THEODORO JÚNIOR, Humberto. Prova – princípio da verdade real – poderes do juiz – ônus da prova e sua eventual inversão – provas ilícitas – prova e coisa julgada nas ações relativas à paternidade (DNA). Revista brasileira de direito de família, Porto Alegre, Síntese, v. 1, n. 3, p. 13, out./dez. 1999; LOPES, João Batista, A prova no direito processual civil, cit., p. 50; BRAGA, Sidney da Silva. Iniciativa probatória do juiz no processo civil. São Paulo: Saraiva, 2004. p. 131; NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código de Processo Civil comentado e legislação extravagante. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. p. 479; DALL‟AGNOL JUNIOR, Antônio Janyr. Comentários ao

Código de Processo Civil: arts. 102-242. Coordenação de Ovídio A. Baptista da Silva. São Paulo: Revista

dos Tribunais, 2000. v. 2, p. 132-133; MATTOS, Sérgio Luís Wetzel de. Da iniciativa probatória do juiz

no processo civil. Rio de Janeiro: Forense, 2001. p. 103-104; CAMPANELLI, Luciana Amicucci. Poderes instrutórios do juiz e a isonomia processual. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2006. p. 93; DIDIER JR.,

Fredie. Sobre a fundamentação da decisão judicial. In: CARVALHO, Milton Paulo de (Coord.). Direito

processual civil. São Paulo: Quartier Latin, 2007. p. 260; MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART,

Sérgio Cruz, Manual do processo de conhecimento, cit., p. 316; DINAMARCO, Cândido Rangel,

Instituições de direito processual civil, cit., v. 3, p. 81-82; e BEDAQUE, José Roberto dos Santos, Poderes instrutórios do juiz, cit., p. 124 e ss.

regra de julgamento também se aplica à inversão do ônus da prova, assim como na distribuição dinâmica do ônus da prova, porém com algumas ressalvas, conforme se verificará adiante.