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No decorrer da evolução do direito processual como ciência, houve três fases distintas, a saber: a fase sincrética, a fase autonomista e a fase instrumentalista.150

O direito processual ainda não era reconhecido como ciência autônoma até meados do século XIX. A fase sincrética, também conhecida por imanentista ou civilista, caracterizou-se pela confusão entre os planos substancial e processual do ordenamento jurídico, sendo o processo tratado como mero apêndice do direito material. Os civilistas ou imanentistas consideravam fundamental o direito material, tanto que o denominaram direito substantivo, de sorte que o processo, visto como simples conjunto de formalidades (mero procedimento) para sua atuação prática, era chamado de direito adjetivo, inexistindo, portanto, noção alguma do próprio direito processual como ramo autônomo, sobretudo carentes elementos para a sua autonomia científica.

Tal definição começou a se fragilizar por conta das inquietações levantadas em torno do instituto da ação, ressaltando sua autonomia em relação ao direito material, e não mais como algo agregado ao direito substancial. Essas afirmações inovadoras provocaram reações em cadeia, que chegaram até a plena consciência da autonomia, não só da ação, mas também dos demais institutos processuais.

Foi então formulada a teoria da autonomia da relação jurídica processual em face da relação jurídica de natureza substancial, eventualmente ligando os sujeitos do processo, e houve uma nova conceituação do direito de ação pelos alemães, sob influência do direito italiano, que foram decisivas para a dissociação do direito processual frente ao direito material ou substancial.

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CINTRA, Antonio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel,

Teoria geral do processo, cit., p. 48-51. No mesmo sentido: DINAMARCO, Cândido Rangel, A instrumentalidade do processo, cit., p. 17 e ss.

O ano de 1868 simbolizou o marco de início da autonomia científica151 do direito processual, com a publicação da obra do jurista alemão Oskar Von Bulow denominada Die

Lehre von den Prozesseinreden und die Prozessvoraussetzungen (Teoria das exceções e

dos pressupostos processuais), quando se iniciou o desenvolvimento da teoria do processo como relação jurídica. O estudo desse processualista traçou os princípios fundamentais que deram contornos de ciência ao direito processual, criando bases sólidas para a fase autônoma do processo. Em síntese, houve a segmentação dos dois planos do ordenamento jurídico, a partir da visão da relação processual e da relação de direito privado como duas realidades distintas, conforme já comentado no item 1.3.

Durante a fase autonomista, não obstante afirmar-se a existência de uma relação jurídica deduzida no processo distinta da travada pelos indivíduos no plano material, inovou-se, outrossim, pela enumeração das premissas metodológicas do processo como ciência, de sorte a desenvolver a definição das grandes teorias processuais, notadamente sobre a natureza jurídica da ação e do processo, as condições daquela e os pressupostos processuais, para assim sedimentar raízes que serviram como base para a afirmação do direito processual como ciência autônoma,152 cujo período perdurou por praticamente um século.153

Nesse contexto, merece destaque a crítica tecida por Grinover, Cintra e Dinamarco:

“Faltou, na segunda fase, uma postura crítica. O sistema processual era estudado mediante uma visão puramente introspectiva, no exame de seus institutos, de suas categorias e conceitos fundamentais; e visto o processo costumeiramente como mero instrumento técnico predisposto à realização da ordem jurídica material, sem o reconhecimento de suas conotações

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Dinamarco bem assevera que o sincretismo que misturava os planos substancial e processual principiou a ruir no século XIX. A começar pela crítica ao tradicional conceito civilista da ação, de sorte a diferenciá-la como instituto de direito processual dirigido ao juiz, em que se reclama a prestação jurisdicional Ao final, conclui que: “A celeuma provocada por essas afirmações revolucionárias (hoje, tão naturais aos olhos do jurista moderno) acabou gerando reações em cadeia, que chegaram até à plena consciência da autonomia não só da ação, mas dela e dos demais institutos processuais.” (A instrumentalidade do processo, cit., p. 18- 19).

152 A autonomia da ação e do processo, segundo Dinamarco, trouxe a renovação dos estudos de direito processual, para consagrá-lo como ciência em si mesmo, revestido de objeto próprio e definido em seu próprio método (A instrumentalidade do processo, cit., p. 19-20).

153 CINTRA, Antonio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel,

Teoria geral do processo, cit., p. 48. Este trabalho não tem o condão de analisar, tampouco confrontar todas

as teorias que circundam a fase autonomista. O que se pretende neste tópico é tão somente apresentar breves contribuições sobre as três fases metodológicas fundamentais do direito processual, cujo resultado da pesquisa se presta a delimitar e desenvolver estudos voltados à perspectiva instrumentalista do processo.

deontológicas e sem a análise dos seus resultados na vida das pessoas ou preocupação pela justiça que ele fosse capaz de fazer.”154

Essa preocupação com um processo de resultados desencadeou novos estudos ligados à fase instrumentalista do processo, ou seja, ao desenvolvimento da ciência processual voltada à busca de um processo que traga resultados céleres, práticos e efetivos, quanto à obtenção da tutela jurisdicional.155

Portanto, o processo passou a ser visto a partir de ângulos externos, visando a cumprir seus escopos sociais, políticos e jurídicos supracitados, ou seja, deve-se levar em conta os resultados que ele proporciona para os destinatários dos provimentos jurisdicionais.

Assim, a realidade sociojurídica não é compatível com a preocupação voltada ao estudo do tecnicismo exacerbado que imperou durante a fase científica, época que teve por intuito caracterizar o direito processual, criando institutos solenes, de forma a ratificar sua autonomia. Superada a afirmação do direito processual como ciência autônoma e definidos seus institutos fundamentais, voltou-se o processualista moderno ao estudo dos resultados do processo perante os consumidores do serviço processual.

E esses resultados destinados a trazer efetividade na prestação da tutela jurisdicional se aproximam do interesse do próprio Estado-juiz, cujo ambiente, dessa perspectiva metodológica, também está ligado com a visão publicista do processo, na medida que para se atingir o escopo maior voltado à ordem jurídica justa,156 necessária a

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CINTRA, Antonio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel,

Teoria geral do processo, cit., p. 48-49.

155 Referências legislativas não faltam quanto à tentativa de se buscar um processo mais justo e de resultados, a exemplo da Lei dos Juizados Especiais (Lei n. 9.099/95), da Lei da Ação Civil Pública (Lei n. 7.347/85), do Código de Defesa do Consumidor (Lei n. 8.078/90) e do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n. 8.069/90). Todas essas leis, na maioria de seu conteúdo, se destinavam à oferta de tutela jurisdicional coletiva.

156 Na definição de Ada Pellegrini Grinover, “(...) o acesso à ordem jurídica justa pressupõe um corpo adequado de juízes, com sensibilidade para captar a realidade social e suas vertiginosas transformações. E que isso postula exigência da mudança da mentalidade do juiz, inserido que há de ser no corpo social e comprometido com o objetivo de realização da justiça material. A aderência do juiz à realidade demanda, por sua vez, um constante aprimoramento, inclusive por intermédio de estudos interdisciplinares permanentes e, antes ainda, exige critérios de seleção e métodos de recrutamento que transcendam a avaliação de conhecimentos puramente técnicos” (Processo em evolução. Rio de Janeiro: Forense, 1996. p. 25).

intervenção e participação mais ativa do juiz. Daí porque José Carlos Baptista Puoli, após analisar as tendências instrumentalistas difundidas pela doutrina, conclui que:

“(...) se por um lado é certo que a tendência para incremento dos poderes do juiz não pode ser definida como um processo novo de restauração de nossa ciência, por outro pode-se afirmar, sem medo, que ela agora tomou novo rumo e uma mais alta relevância, na medida que, seja por intermédio do estudo da doutrina que vem sendo produzida neste final de século, seja pelo exame das alterações legislativas recentemente introduzidas em nosso sistema legal, tudo tem colocado o aumento dos poderes do juiz em lugar de destaque entre as várias propostas de alternativas para obtenção dos resultados queridos pelo sistema instrumental do processo.”157

Portanto, a atual preocupação do estudo da ciência processual apresenta contornos voltados à visão do processo como um instrumento público.158 Sob a ótica do processo como instrumento público e ainda restrita à análise dos poderes instrutórios como meio de participação ativa do juiz, com vistas a atender o interesse do Estado na pacificação de conflitos com justiça, será examinado o duplo sentido da instrumentalidade.