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A categoria linguística tempo

No documento O tempo no texto (páginas 149-168)

Capítulo 3 A localização temporal

3.2. A categoria linguística tempo

Ao longo desta secção, propomo-nos reflectir sobre conceitos relevantes para a definição da categoria linguística tempo, assumindo que uma análise da expressão do tempo deve contemplar, de forma integrada, o contributo dos tempos verbais, dos adverbiais temporais e das classes aspectuais.

Comecemos por explicitar algumas propriedades inerentes ao conceito de tempo cronológico, que são susceptíveis de enquadrar uma análise da categoria linguística tempo:

a) o tempo cronológico é unidimensional, ou seja, «il n’y a qu’un temps à la fois»178; a relação entre dois intervalos de tempo distintos (designados a e b) é necessariamente de precedência de um em relação ao outro (ou a precede b ou b precede a);

b) o tempo orienta-se numa direcção; o intervalo de tempo que designamos por presente, e que se desloca continuamente em direcção ao futuro, serve de

178 Klein (1995: 21). Fillmore (1997: 56) sublinhou, noutros termos, esta mesma

propriedade do tempo: «there is only one route between two time points: one cannot go from 1970 to 1971 by passing through 1929».

fronteira entre o passado e o futuro: é a sua localização no eixo do tempo que determina o que é passado e o que é futuro;

c) o tempo caracteriza-se pela transitividade, pela sucessão dos diferentes intervalos de tempo; um intervalo localizado no futuro (em relação ao intervalo de tempo em que se situa um determinado sujeito) tornar-se-á, num dado momento, presente e, imediatamente a seguir, passado;

d) o tempo é irreversível, porquanto a sucessão de intervalos de tempo e a sua orientação em direcção ao futuro nunca se invertem; esta propriedade é susceptível de ser comprovada através de situações como envelhecer e atirar uma pedra.

e) o tempo é contínuo: nada o pode parar ou suspender.

Com base neste conjunto de propriedades, podemos conceber o tempo cronológico como uma estrutura ordenada, e representá-lo geometricamente através de uma linha, orientada do passado em direcção ao futuro. Nessa linha, o presente ocupa um ponto indivisível e separa o passado (à sua esquerda) do futuro (à sua direita)179.

Existe uma assimetria entre o passado e o futuro, por um lado, e o presente, por outro: o carácter pontual e fugaz do presente contrasta com o carácter durativo do passado e do futuro.

O passado e o futuro, por sua vez, têm em comum o facto de constituírem domínios conceptuais. Divergem, todavia, no seu estatuto epistémico e ontológico: os estados de coisas que se inscrevem no passado sucederam de facto

179 Oliveira (1996: 363) sistematizou, do seguinte modo, as propriedades mais relevantes

do tempo: «o tempo é direccional, irreversível e uniforme e pode ser definido formalmente por um conjunto, T, de momentos de tempo e uma relação, <, de precedência, com algumas propriedades tais como irreflexibilidade (um momento de tempo não pode preceder-se a si próprio), transitividade (um momento de tempo que precede um outro, precede também todos os momentos que este último precede), assimetria (dois momentos de tempo não se podem preceder um ao outro), e densidade (não há momentos de tempo fora da série T, e cada momento precede ou segue um outro momento que não ele próprio)».

e são susceptíveis de ser conhecidos, ao contrário do que se verifica com as situações que se localizam na esfera do futuro.

Explicitadas as principais propriedades do tempo cronológico, orientamos, a seguir, a nossa reflexão para os mecanismos de que dispõe uma língua como o português para fazer referência ao tempo, concedendo particular destaque aos tempos verbais.

O tempo linguístico decorre do processo de localização, no tempo cronológico, das entidades referidas pelas línguas naturais. Para essa localização, concorrem unidades e mecanismos diversos.

Benveniste (1974) sublinhou o facto de os sistemas temporais das línguas naturais não serem meros decalques do tempo cronológico. A configuração dos sistemas de tempo constitui precisamente um dos pontos em que as línguas mais se diferenciam umas das outras.

Se o presente do tempo cronológico pode ser definido como o “momento em que se está”, o presente do tempo linguístico é determinado pelo ”momento em que se fala”. As reflexões de Benveniste (1966, 1974) evidenciaram a centralidade da enunciação na temporalidade linguística: de cada vez que um sujeito falante toma a palavra, ele institui o intervalo de tempo em que se insere a enunciação como a coordenada a partir da qual se definem quer o passado, quer o futuro.

No âmbito da temporalidade linguística, não é apropriado falar de um presente idêntico ao do tempo cronológico considerado numa acepção estrita. Segundo Serbat (1988), o tempo do discurso corresponde ao que ele designou por actual, conceito definível, não como instante fugaz, mas como intervalo de tempo durante o qual decorre o acto de enunciação. Ora, qualquer enunciação ocupa um intervalo de tempo de extensão variável, pelo que a dimensão do intervalo a que corresponde o presente linguístico é intrinsecamente vaga180.

180 Como referiu Carlson (1981: 42), «in practice, now means a time with appreciable

Numa perspectiva linguística, «o tempo é concebido como uma ordenação linear de unidades temporais atómicas (instantes) ou densas (intervalos) que se podem suceder ou sobrepor»181. Para melhor compreender a razão que subjaz a

esta duplicidade na concepção do tempo linguístico, recordemos algumas reflexões já explicitadas quando abordámos as tipologias de estados de coisas, no capítulo 2. À realização de certas situações − como a Ana piscou-me o olho e a Catarina acendeu a luz −, associamos instantes; à concretização de outras − como o António construiu a sua casa e a atleta correu muito rapidamente −, associamos sequências de instantes ou intervalos de tempo. Esta oposição entre situações pontuais e situações que envolvem duração tem como consequência que o tempo cronológico, no qual se localizam os estados de coisas referidos no discurso, seja perspectivado ora em termos de instantes (não divisíveis), ora em termos de intervalos (divisíveis em instantes)182. Vemos, portanto, que a extensão do intervalo de tempo em que se verifica uma dada situação é relevante para a localização dessa mesma situação no tempo cronológico.

A designação intervalo de tempo refere «um conjunto contínuo e ordenado de momentos de tempo. A ordenação entre os momentos de tempo de um intervalo estabelece-se através da relação de precedência: o momento ti precede o

momento ti+1 e é precedido pelo momento ti-1. Por outras palavras, o momento ti é

anterior ao momento ti+1 e posterior ao momento ti-1»183. Dois intervalos de tempo

podem manter entre si relações:

181 Oliveira (2003a: 129). Cf. também Fillmore (1997: 48) «We recognize time periods

and time points, and we recognize that a time period can be defined uniquely by identifying its beginning and ending time points. Time periods can be compared with one another, so that we can speak of one time period being longer or shorter than another».

182 Cf. Oliveira (1996: 364): «a concepção de instantes (ou momentos) de tempo não

parece adequada ao tratamento de acontecimentos ou situações que apresentam duração (“estar a comer uma maçã”) ou então casos de dois acontecimentos que ocorrem total ou parcialmente ao mesmo tempo (“comer uma maçã enquanto escreve uma carta”). Surge assim a ideia de intervalo de tempo […]».

a) de sobreposição total (quando a extensão dos dois intervalos coincide na totalidade);

b) de sobreposição parcial (quando a extensão dos dois intervalos coincide parcialmente);

c) de inclusão (quando um dos intervalos, o de menor extensão, se inclui no outro, o de maior extensão);

d) de precedência (quando um dos intervalos se localiza antes do outro). Em rigor, os três primeiros casos constituem variantes da relação de sobreposição temporal entre duas situações.

A categoria linguística tempo desempenha a função de localização, no tempo cronológico, das entidades referidas nos enunciados. Proceder à ancoragem dessas entidades no tempo cronológico equivale a estabelecer uma relação temporal entre os estados de coisas descritos e o lugar que eles ocupam no eixo ordenado do tempo relativamente a um intervalo que é tomado como ponto de perspectiva temporal184. Por conseguinte, a localização é efectuada tendo em consideração quer o intervalo de tempo correspondente à situação em causa, quer o ponto de perspectiva temporal que se institui como coordenada temporal com base na qual se procede ao cálculo da localização temporal. Este ponto de perspectiva temporal pode, ou não, coincidir com o intervalo de tempo da enunciação. No caso de não serem coincidentes, o ponto de perspectiva temporal é obrigatoriamente manifestado no discurso. Nas secções 3.3. e 3.4., explicitaremos as teorizações de Reichenbach (1947) e de Kamp e Reyle (1993). Definiremos os conceitos de ponto de referência e de ponto de perspectiva temporal e sublinharemos a sua relevância para o cálculo do valor de localização dos tempos verbais.

184 Não são só as situações que podem ser objecto de localização no tempo. Segundo

Móia (2003), também os seres, os objectos, os conceitos ou os intervalos de tempo referidos no discurso são susceptíveis de ser localizados no eixo temporal.

A localização temporal é manifestada, em línguas como o português, pelo uso de tempos verbais185 (associados ou não a perífrases verbais) e de adverbiais temporais186. A localização no tempo de um dado estado de coisas resulta,

frequentemente, da combinação de tempos verbais com adverbiais temporais. Todavia, para o estudo da referência temporal é também pertinente ter em consideração os tipos de situações. As classes aspectuais são, como vimos, determinadas composicionalmente, para o que contribuem quer os lexemas verbais, quer os tempos gramaticais e as perífrases verbais, quer os adverbiais temporais, quer os conectores com valor temporal, quer ainda os argumentos do predicador (externo e internos). Deste modo, também a informação temporal dos enunciados é caracterizada pela composicionalidade187.

A categoria aspectual interfere com os mecanismos de localização temporal das situações. É importante, deste modo, delimitar claramente os conceitos de tempo e de aspecto. Segundo Lopes (1992b: 154), «o tempo permite localizar a ocorrência de uma situação ou estado de coisas num intervalo I, que se delimita em função do intervalo de tempo da enunciação ou em função de um outro

185 Em português, e no que diz respeito aos sufixos verbais, o significante do morfema de

tempo surge invariavelmente amalgamado com o significante do morfema de modo, porquanto os significados de tempo e de modo são manifestados através de um significante que não é susceptível de ser segmentado. Assim, os sufixos verbais tradicionalmente chamados desinências modo-temporais condensam, como a própria designação indica, informação de natureza modal e temporal.

186 Entre as expressões adverbiais temporais, incluem-se elementos com configurações

sintácticas diversas: advérbios de tempo (ontem, agora), sintagmas nominais (todos os

meses, dia 15 de Março), sintagmas preposicionais (no mês de Janeiro) e frases introduzidas por conectores com valor temporal (de que são exemplo quando, enquanto,

logo que, desde que; excluem-se, naturalmente, frases que integram estes conectores mas que possuem valores não temporais – contrastivos e condicionais, por exemplo – como as seguintes: O João é do Benfica, enquanto o Pedro é do Sporting; O Tiago julga que a

Rita é professora, quando ela é, de facto, investigadora; A Ana vai sair, desde que não

chova).

187 Cf. Oliveira et alii (2001: 75-76): «O tempo não é uma propriedade atribuível à

semântica de apenas uma unidade linguística (como um verbo ou um advérbio), mas decorre da combinatória de várias unidades manifestada a nível da frase ou mesmo de um conjunto de frases; isto é, o tempo linguístico tem uma dimensão composicional marcadamente discursiva».

intervalo ou ponto de referência; o aspecto parece recobrir todos os elementos que num enunciado nos fornecem indicações acerca da estrutura interna do intervalo I».

Assim, segundo Oliveira (2003a: 129-130), «o Tempo linguístico é uma categoria relacional, quer seja dêictico quer seja anafórico, enquanto o Aspecto se centra na perspectivação interna sem necessitar de se relacionar com outros elementos. No entanto, estas duas categorias têm pontos de contacto na medida em que podem operar com o mesmo tipo de conceitos temporais, como, por exemplo, o de intervalo. Por outro lado, certos adverbiais podem funcionar como aspectuais ou temporais, tal como acontece com alguns tempos verbais».

Estas definições opõem, portanto, a função de localização dos estados de coisas no tempo cronológico (própria da categoria tempo) à especificação da estrutura interna das situações (própria da categoria aspecto), e deixam antever que as diferentes classes aspectuais contribuem para a determinação do intervalo de tempo que uma dada situação ocupa no eixo temporal.

A consequência teórico-metodológica que se deve extrair das reflexões apresentadas é a seguinte: a análise dos processos de referência temporal de uma língua como o português não só deve envolver as questões relacionadas com a localização (a associação de um intervalo de tempo − ordenado relativamente a um ponto de perspectiva temporal − a uma situação referida no discurso), a duração (a extensão do intervalo de tempo ocupado por uma situação) e a frequência (definida pelo padrão de distribuição temporal que é associado a

uma situação)188 das entidades referidas, como também deve incluir uma teoria das classes aspectuais189.

3.3. A LOCALIZAÇÃO TEMPORAL

Nesta secção, listaremos os parâmetros relevantes para se proceder à localização temporal de uma situação, e definiremos o conceito de ponto de referência, inicialmente proposto por Reichenbach (1947), bem como a importância de que se reveste este conceito para a análise da localização no tempo. Salientaremos dois modos diferentes de perspectivar a questão da localização temporal, e veremos igualmente que, embora contribuam para a localização das entidades no tempo, os tempos verbais e os adverbiais temporais localizadores fazem-no geralmente de modo diverso.

Segundo Peres (1993a) e Móia (2003), há três parâmetros que se deve ter em conta na análise e descrição das operações de localização temporal: o objecto da localização, o modo da localização e o lugar da localização. Cada um dos parâmetros deve constituir a resposta às seguintes perguntas: o que se localiza?, como se localiza? e onde se localiza?.

188 Segundo Móia (2003: 106), numa acepção lata, alargada a todos os padrões temporais

de repetição, o conceito de frequência «abrange valores como episódico, iterativo, habitual, genérico ou outros afins, tradicionalmente designados como aspectuais, e valores específicos de frequência», manifestados por adverbiais do tipo de

regularmente, todas as semanas e dia sim dia não.

189 É também esta a perspectiva de Peres (1993a: 12), ao afirmar que a sua abordagem

«requires that different sorts of information be computed from a sentence, including the following, which, naturally, cannot all be computed from the same source: i) situation type (aktionsart value); ii) temporal perspective point; iii) relative location; iv) specifications on location time, duration and frequency. The joint computation of all the information obtained from the different sources yields as final output a reading assigned to a sentence».

O objecto da localização pode ser uma situação (A Ana casou em 1960), um intervalo de tempo (Os fins-de-semana antes das eleições foram muito agitados) ou um indivíduo (Acabei de ler a biografia de um pintor do século XVI)190.

No capítulo 2, explicitámos já as mais relevantes teorias de classes aspectuais actualmente disponíveis. Constituindo as situações o mais complexo tipo de entidades, precisamente aquele cujo tratamento adequado numa investigação envolve maiores dificuldades, não retomaremos nesta secção esse tema, já desenvolvido no capítulo anterior.

O modo da localização diz respeito aos quatro tipos de mecanismos que possibilitam inscrever uma entidade no tempo. É possível localizar por meios verbais, por meios adverbiais, por meios discursivos e por meios argumentais. A localização efectuada por meios discursivos processa-se pelo estabelecimento de relações temporais entre duas ou mais situações, de que são exemplo as relações retóricas (ou discursivas)191 de NARRAÇÃO, de CAUSA, de

RESULTADO, de ELABORAÇÃO e de ENQUADRAMENTO (ou SEGUNDO PLANO). A localização realizada por meios argumentais concretiza-se, segundo Móia (2003: 110), «através de expressões predicativas complexas construídas com predicadores verbais como ocorrer ou datar e expressões denotadoras de intervalos argumentais: a batalha de Waterloo ocorreu em 1815, a invenção data do período entre as duas guerras». Adiante distinguiremos, com mais detalhe, a localização efectuada por meios verbais e por meios adverbiais.

190 Todos os exemplos foram extraídos de Móia (2003: 111).

191 Relações retóricas ou discursivas são relações de significado que se estabelecem entre

dois segmentos textuais, e que conferem coerência aos textos. Estas relações, concebidas no âmbito da Teoria da Estrutura Retórica de Mann e Thompson (1987), constituem instrumentos úteis para descrever a estrutura dos textos. Segundo Mann (1999), «because RST [Rhetorical Structure Theory] generally provides an analysis for any coherent carefully written text, and because such an analysis provides a motivated account of why each element of the text has been included by the author, it gives an account of textual coherence that is independent of the lexical and grammatical forms of the text». Para destacar no texto as designações das relações discursivas, apresentá-las- -emos em itálico e em maiúsculas.

Quanto ao lugar da localização, no âmbito desta questão, integram-se os mecanismos que permitem o estabelecimento de uma coordenada temporal − ponto de referência, segundo Reichenbach (1947), ponto de perspectiva temporal, na teorização de Kamp e Reyle (1993) −, a partir da qual se procede ao cálculo da localização, operando com os valores temporais de anterioridade, sobreposição e posterioridade.

O conceito de ponto de referência, que se tem revelado útil para proceder à descrição do cálculo da localização temporal realizada pelos tempos verbais, foi introduzido por Reinchenbach (1947). Explicitaremos, de seguida, o essencial da teorização deste autor, sublinhando a importância de que este conceito se revestiu, desde então, na análise da expressão do tempo efectuada através das línguas naturais.

Reichenbach (1947) propôs que o cálculo da localização temporal dos tempos verbais fosse efectuado com base em três parâmetros: o momento da fala (ou momento da enunciação), o momento do evento (o intervalo de tempo ocupado pelo estado de coisas descrito) e o ponto de referência192.

Definiu o ponto de referência como um ponto de ancoragem com o qual o momento da enunciação e o momento do evento referido pelo enunciado estabelecem relações temporais. Relativamente ao momento da enunciação, o ponto de referência pode situar-se na esfera do passado, na esfera do futuro ou coincidir com o intervalo de tempo da enunciação. Deste modo, o ponto de referência determina a esfera temporal a partir da qual se perspectiva a situação descrita.

A relação entre o ponto de referência e o momento do evento pode assumir os valores temporais de anterioridade, sobreposição (ou simultaneidade) e

192 No original, point of speech, point of the event e point of reference, respectivamente.

Veremos, na secção 3.4., que Kamp e Reyle (1993) desdobraram o ponto de referência de Reichenbach (1947) em ponto de referência e ponto de perspectiva temporal. Os autores aplicaram o conceito de ponto de referência unicamente aos casos de sequências de eventos em contexto narrativo.

posterioridade. Subjaz a esta teorização uma concepção anafórica do funcionamento dos tempos verbais, porquanto a interpretação de tempos verbais como o pretérito imperfeito ou o pretérito mais-que-perfeito depende de outros elementos contextuais que contêm informação de natureza temporal.

A partir das coordenadas temporais mencionadas (momento da enunciação, momento do evento e ponto de referência) e recorrendo aos valores temporais indicados (anterioridade, sobreposição e posterioridade), Reichenbach (1947) propôs que uma dada língua poderia distinguir, no máximo, treze tempos verbais diferentes, em função das relações possíveis entre aquelas coordenadas193. Na sua perspectiva, os sistemas de tempos verbais das línguas naturais desempenham, portanto, a função de expressar as relações temporais entre estes três momentos.

A utilização deste quadro de análise permite descrever os valores prototípicos de localização temporal veiculados pela maior parte das formas verbais do indicativo em português.

Com base num ponto de referência coincidente com o momento da enunciação, e segundo as relações temporais de anterioridade, sobreposição e posterioridade, é possível dar conta da localização temporal efectuada pelas formas verbais do pretérito perfeito simples, do presente194 e do futuro.

193 As treze possibilidades previstas pela teoria de Reichenbach distribuem-se pelas

esferas temporais do passado (há cinco possibilidades combinatórias distintas em que o ponto de referência se localiza num intervalo de tempo anterior ao momento da fala), do presente (em três casos, o ponto de referência e o momento da fala sobrepõem-se) e do futuro (existem cinco casos em que o ponto de referência se localiza num intervalo posterior ao do momento da fala).

194 Segundo Oliveira (2003a: 154), em português, «o presente do indicativo só em certos

casos dá informação estritamente temporal de presente. Isso acontece claramente com estados enquanto com eventos está restringido a relatos directos e ao uso de enunciados performativos […] Com outros tipos aspectuais apresenta tipicamente um valor aspectual de habitualidade e não estritamente de tempo. Em frases simples, o tempo sobreposto parcialmente ao tempo da enunciação de processos e processos culminados é dado pelo presente progressivo, embora apresente também alterações aspectuais». Cf. também Lopes (1995b) e Oliveira e Lopes (1995).

A partir de um ponto de referência localizado num intervalo de tempo anterior ao momento da enunciação, e segundo as mesmas relações temporais, é possível dar conta da localização realizada pelo pretérito mais-que-perfeito (simples e composto), pelo pretérito imperfeito e pelo futuro do pretérito195.

Considerando um ponto de referência localizado num intervalo posterior ao

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