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Dowty (1979)

No documento O tempo no texto (páginas 128-135)

Capítulo 2 Tipologias de estados de coisas

2.2. Teorizações sobre tipologias de estados de coisas

2.2.3. Dowty (1979)

Dowty (1979) propôs, com base na teorização de Vendler (1967), uma outra tipologia de situações. A relevância do seu contributo, todavia, advém especialmente dos testes sintáctico-semânticos que apresentou para conformar quer a sua classificação, quer a tipologia vendleriana. O número e a natureza dos testes apresentados comprovam que as diferentes classes aspectuais carreiam consequências importantes a nível do comportamento sintáctico e das compatibilidades semânticas dos constituintes que, directa ou indirectamente, contribuem para a expressão do valor temporal global de um enunciado. Tendo evidenciado alguns processos sintácticos de fazer transitar de classe aspectual um dado estado de coisas, por influência de outros constituintes da frase, reforçou a ideia de que o valor aspectual global de um enunciado é de natureza composicional.

Listaremos, de seguida, os testes mais relevantes, repartidos pelas distinções que propiciam. Servir-nos-emos de exemplos do português, sempre que for viável. Para distinguir estados, actividades e eventos prolongados, Dowty (1979) verificou que só os predicados não estativos

a) são compatíveis com formas progressivas (? o João está a ser alto; o João está a nadar, o João está escrever uma carta)149;

b) ocorrem como complementos dos verbos forçar e persuadir (? o João forçou o Carlos a ser alto; o João persuadiu o Carlos a nadar; o João forçou o Carlos a escrever uma carta);

c) são compatíveis com o imperativo (? Sê alto!; Nada!; Escreve uma carta!);

149 Na verdade, a questão é mais complexa, como o próprio autor reconheceu − cf., nesta

secção, o quadro que sistematiza a proposta de classificação de Dowty (1979). Compare- -se o enunciado ? o João está a ser alto (estado não faseável) com o João está a gostar

d) podem ocorrer com os advérbios deliberadamente e cuidadosamente (? o João foi deliberadamente alto; o João nadou cuidadosamente; o João deliberadamente escreveu uma carta);

e) podem ocorrer em construções clivadas (? o que o João fez foi ser alto; o que o João fez foi nadar; o que o João fez foi escrever uma carta).

Um último teste que serve para distinguir estados de actividades resulta da interpretação episódica (das situações estativas) e frequentativa ou habitual (das situações não estativas) sempre que o enunciado integra formas verbais flexionadas no presente. O enunciado o João nada envolve mais do que uma ocorrência da situação referida150, ao contrário do que se verifica em o João ama a Rita.

O teste apresentado na alínea a) explicita o primeiro critério de Vendler, através do qual se distingue actividades e eventos prolongados de eventos instantâneos e estados: os primeiros ocorrem na forma progressiva; os segundos não.

Os testes relativos às alíneas b), c), d) e e) representam restrições de ocorrência que afectam os predicados estativos e resultam do facto de estes se caracterizarem pelo traço semântico [− dinâmico]. As compatibilidades indicadas evidenciam que, subjacente a actividades e a eventos prolongados (mas também a

150 Segundo Dowty (1979), em inglês, os eventos prolongados partilham esta propriedade

com as actividades. Em português, todavia, só com a pluralização do objecto directo parece ser aceitável a leitura com sentido habitual ou frequentativo (o João escreve

cartas). O João escreve uma carta possui um significado semelhante ao de o João está a

escrever uma carta e ocorre com algumas restrições. A compatibilidade de eventos (instantâneos e prolongados) com formas verbais flexionadas no presente, de que resulta o significado de ocorrência episódica, atesta-se em contextos como os seguintes: a) relato, em directo, de um comentador que assiste a um acontecimento desportivo; b) indicações cénicas de textos dramáticos; c) excertos narrativos nos quais predomina o uso do presente histórico; d) textos de instruções.

eventos instantâneos), há um fazer ou um agir que não caracteriza as situações estativas151.

Para proceder à distinção entre actividades e eventos prolongados, Dowty (1979) argumentou que

a) os eventos prolongados são tipicamente compatíveis com in-adverbials (como em cinco minutos), enquanto as actividades são geralmente compatíveis apenas com for-adverbials (como durante cinco minutos) − o João escreveu uma carta em cinco minutos; o João nadou durante cinco minutos152;

b) em inglês, só os eventos prolongados podem ocorrer como complemento do verbo to finish − ? John finished walking; John finished painting the picture153; c) os verbos destas duas classes têm implicações lógico-semânticas diversas - quando flexionados na forma progressiva do presente − o João está a escrever uma carta implica o João ainda não a escreveu154; o João está a nadar implica o João já nadou;

151 Cunha (2004) apresentou cinco critérios de estatividade: i) critérios baseados na

interacção com verbos de operação aspectual; ii) critérios de agentividade; iii) leituras preferenciais de certos tempos gramaticais; iv) compatibilidades com adverbiais temporais; v) comportamento no contexto das orações com quando.

152 Em muitos casos, verifica-se incompatibilidade entre eventos prolongados e

adverbiais do tipo durante x tempo (? o João correu um quilómetro durante cinco

minutos). Quando não se observa incompatibilidade, os enunciados resultantes não permitem inferir que o evento atingiu necessariamente o seu ponto de culminação (o João fez um bolo durante cinco minutos), e parecem ser estranhos à linguagem comum. Deste modo, o enunciado o João escreveu uma carta durante cinco minutos é plausível, mas parece implicar que a culminação inerente à situação não foi atingida, ou seja, que a carta não foi concluída. Também é possível dizer que o João nadou em cinco

minutos, embora, neste caso, o adverbial refira não o intervalo de tempo durante o qual o

João nadou mas o intervalo de tempo imediatamente anterior ao início da acção indicada no enunciado.

153 Em português, este teste não é válido para distinguir actividades de eventos

prolongados, uma vez que também as actividades são compatíveis com verbos como

acabar ou terminar (o João acabou/terminou de nadar).

- quando ocorrem como complemento do verbo parar − o João parou de escrever a carta implica o João ainda não a escreveu [toda]; o João parou de nadar implica o João já nadou;

d) a ocorrência das duas classes com o advérbio quase origina interpretações diferentes − o João quase nadou implica o João não nadou, enquanto o João quase pintou um quadro pode ter dois sentidos: «a) John had the intention of painting a picture but changed his mind and did nothing at all, or b) John did begin work on the picture and he almost but not quite finished it. It is the second reading which is lacking in activity verbs»155.

O teste apresentado na alínea a) decorre do facto de os adverbiais do tipo de em cinco minutos e do tipo de durante cinco minutos remeterem para um intervalo de tempo com a mesma extensão, diferindo apenas na compatibilidade do primeiro com situações que se caracterizam pelo traço semântico [+ télico]156.

A restrição de ocorrência das actividades indicada em b), e atestada em inglês, é uma consequência sintáctica do traço semântico [− télico] que caracteriza estes estados de coisas. Em português, contudo, são atestados enunciados do tipo de O João acabou de comer ou de O João acabou de nadar, pelo que a incompatibilidade indicada não se verifica.

As implicações indicadas na alínea c) resultam da ideia, sublinhada já por Aristóteles, segundo a qual há estados de coisas que só se podem considerar completos quando é atingida a sua culminação − ideia que está na base da oposição entre situações télicas e situações atélicas157. A flexão numa forma

155 Dowty (1979: 58).

156 Deve-se às (in)compatibilidades evidenciadas por estes adverbiais a oposição entre

adverbiais de realização (os do tipo de em cinco minutos ou in-adverbials) e adverbiais durativos (os do tipo de durante cinco minutos ou for-adverbials); cf. Campos e Xavier (1991: 323-324).

157 Este conjunto de implicações esteve na origem do chamado paradoxo do imperfectivo,

que se verifica unicamente com eventos prolongados. De facto, a Ana está a pintar um

quadro pode ser uma frase verdadeira, mesmo que a Ana pintou um quadro não o venha a ser no futuro, isto é, mesmo que ela não chegue a concluí-lo; o primeiro enunciado implica apenas que é possível que a Ana acabe de pintar um quadro. Com actividades, este paradoxo não se verifica: o João está a nadar implica o João nadou. «The Scott and

progressiva do presente e a ocorrência como complemento de parar invalidam a interpretação de ter sido transposta a fronteira final que caracteriza os estados de coisas télicos,pelo que se verificaa divergência de implicações lógico-semânticas. É também o traço [+ télico], associado ao traço [+ durativo], que propicia a ambiguidade, apontada na alínea d), inerente aos eventos prolongados e de que carecem as actividades. O João quase pintou um quadro é um enunciado ambíguo porque pode significar ou que o quadro não começou a ser pintado ou que não chegou a ser concluído. Numa situação durativa mas atélica − como o João quase nadou −, não se verifica esta ambiguidade: o João simplesmente não começou a nadar.

Quanto aos eventos instantâneos, Dowty (1979) comprovou que

a) não ocorrem com adverbiais do tipo de durante cinco minutos (? o João rebentou o balão durante cinco minutos); além disso, as implicações das combinatórias entre adverbiais do tipo de em cinco minutos e eventos instantâneos e eventos prolongados diferem. Segundo Dowty (1979: 59), «If John painted a picture in an hour is true, then it is true that John was painting a picture during that hour. But from the truth of [John noticed the painting in a few minutes] it does not follow that John was noticing the painting throughout [that time]»158;

Bennett and Partee analyses fail on this point, and Dowty introduces possible worlds other than the actual one in order to avoid it», Vlach (1981: 279); cf. também Rohrer (1981). O paradoxo do imperfectivo observa-se, então, em predicações que referem eventos prolongados (isto é, situações télicas e durativas) temporalmente não delimitadas (a distinção entre telicidade e delimitação temporal será explicitada na secção 3.4. do capítulo 3). Verkuyl (1993), todavia, recordou que este paradoxo não se aplica a todos os eventos prolongados. O enunciado John is drawing some circles não implica necessariamente John has not yet drawn some circles. É discutível, contudo, que to draw

some circles seja um evento prolongado, uma vez que parece ter um comportamento semelhante ao da actividade eat sandwiches, analisado por Verkuyl (1993).

158 A classe dos eventos instantâneos é ainda compatível com construções do tipo de it

takes an hour to mas não com construções como spend an hour to (It took John a few

b) não ocorrem como complemento do verbo to finish (? John finished noticing the picture);

c) não ocorrem como complemento do verbo parar (? o João parou de rebentar o balão);

d) a ocorrência com o advérbio quase não provoca ambiguidade, ao contrário do que sucede com os eventos prolongados (o João quase rebentou o balão);

e) os eventos instantâneos, tal como os estados, não ocorrem com advérbios do tipo de carefully, attentively, conscientiously e vigilantly (? John carefully noticed the painting)159.

Relativamente à incompatibilidade com adverbiais do tipo de durante cinco minutos, registada na alínea a), ela é o resultado dos traços [− durativo] e [+ télico] que caracterizam os eventos instantâneos. Estes adverbiais são tipicamente compatíveis com situações que se caracterizam pelos traços [+ durativo] e [− télico].

Também as restrições indicadas nas alíneas b) e c) se devem à necessidade de, em inglês, a forma verbal que serve de complemento aos verbos to finish e to stop ser flexionada numa forma progressiva, o que contrasta com as propriedades sintáctico-semânticas dos eventos instantâneos. Em português, todavia, não se verifica incompatibilidade entre eventos instantâneos e a perífrase verbal acabar de. O significado de um enunciado como o João acabou de rebentar um balão remete para a proximidade temporal entre o intervalo de tempo da enunciação e o intervalo de tempo em que foi atingida a culminação do evento rebentar um balão. Já no caso da perífrase verbal parar de, atesta-se incompatibilidade devido ao carácter pontual dos eventos instantâneos.

159 Esta restrição fora já observada por Ryle (1949: 151). Em português, parece ser

possível combinar eventos instantâneos com o advérbio cuidadosamente: o João rebentou

A ambiguidade que se verifica quando o advérbio quase ocorre com os eventos prolongados é consequência de estas situações serem simultaneamente durativas e télicas. As actividades (durativas e atélicas) e os eventos instantâneos (pontuais e télicos) apenas comportam uma interpretação.

Relativamente ao último teste, advérbios como carefully e attentively apenas são compatíveis com situações durativas que simultaneamente se caracterizam pelo traço [+ dinâmico]160, ou seja, com eventos prolongados e com actividades.

Quanto à sua proposta de classificação, Dowty (1979) fundamentou-a nas quatro classes de Vendler (1967). A proposta que apresentou inclui uma distinção baseada no traço semântico [± agentivo] (comum às quatro classes), uma reordenação dentro da classe dos estados (opondo momentary statives a interval statives) e novas designações para os eventos instantâneos (single change of state) e os eventos prolongados (complex change of state) de Vendler.

Tendo verificado que alguns predicados estativos podem ocorrer com formas progressivas (ao contrário do que sugeriu Vendler), e justificando a necessidade de as suas reflexões se enquadrarem numa semântica de intervalos de tempo (em contraste com a proposta de Reichenbach (1947)), Dowty distinguiu momentary predicates de interval predicates.

O quadro seguinte161 sintetiza a classificação deste autor.

160 Na terminologia de Dowty (1979), este traço semântico é designado [+ agentive]. 161 Dowty (1979: 184).

Non-Agentive Agentive

Momentary statives: be asleep, be in the garden, love, know

Momentary statives: be polite, be a hero, belong here

States

Interval statives: sit, stand, lie

Interval statives: sit, stand, lie

(with human subject)

Activities make noise, roll, rain walk, laugh, dance

Single change of state notice, realize, ignite kill, point out

Complex change of state flow from x to y,

dissolve

build (a house), walk from x to y, walk a mile

A riqueza do contributo de Dowty (1979) advém, sobretudo, dos testes sintáctico-semânticos que apresentou. Eles validaram a ideia segundo a qual as distinções semânticas entre estados de coisas se reflectem necessariamente na estrutura linguística dos enunciados. E esse facto propiciou a deslocação desta área temática para o centro das preocupações de ordem estritamente linguística.

No documento O tempo no texto (páginas 128-135)