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2 O ponto de vista da cegueira

2.2 A cegueira como epidemia

O leitor da livraria, que se surpreende ao entrar em contato com os primeiros parágrafos do Ensaio sobre a cegueira, decide levar o livro para casa, acolher o livro e aconchegar-se a ele, comprometer-se com o livro, adotá-lo.

Descobre que a cena do homem que fica cego no sinal de trânsito desenrola-se de forma impressionante. O primeiro cego, do texto de Saramago, é conduzido até sua casa por um homem que passava na rua na hora do acidente. A mulher chega, leva-o ao oftalmologista. Ele relata ao médico o modo como cegou. O oftalmologista fica incomodado com a cegueira inexplicável. Os episódios vão se sucedendo numa sequência que oscila entre o previsível e o inesperado. O leitor toma consciência dos fatos ao mesmo tempo em que se surpreende com eles, e começa a conjeturar sobre as possíveis metáforas associadas a essa cegueira que além de repentina será caracterizada como branca.

Toda narrativa traduz um olhar e revela uma cegueira: certo modo de ver/não ver, conceber/desconstruir, transitar/perder-se no espaço daquilo que é narrado. Toda narrativa constitui, assim, um narrador, que a torna possível, que a cria e, simultaneamente, é criado por ela, um narrador que põe em cena aquilo que compõe seu imaginário e que ao mesmo tempo

representa o imaginário de uma coletividade. O olhar/cegueira do narrador impulsiona, por meio de seus movimentos, toda a narrativa. A narrativa, em tela, o Ensaio, de Saramago, explora as possibilidades e limitações do olhar. Transforma o olhar em cegueira e indaga as interferências que a cegueira faz no olhar. Essas indagações em conjunto constituem o modo de pensar do narrador. Modo que pode ser visto como uma análise teórica ou que pode ajudar a sustentar teorias já estabelecidas.

Para abordar a obra de Saramago, é imprescindível, portanto, abordar o olhar e a cegueira que nela cintilam. É necessário mirá-los, lançando o olhar do leitor no fluxo dessa cegueira, na direção dos movimentos que a criam. Essa cegueira é muitas vezes expressa por uma série narrativa em que a visibilidade criada pelos modos de narrar é a responsável pela tônica do texto. E isso nos leva a pensar que o narrador do Ensaio ao tornar cegos os seus personagens mantém-se na posição, para ele privilegiada, dos que continuam vendo. Criada a dicotomia olhar/cegueira, o narrador considera a cegueira um mal, na medida em que ela lança as personagens dentro de um mundo ruim, tirando delas toda possibilidade de dignidade humana, e considera a visão um bem, na medida em que é possível ter conhecimento e melhores condições de vida quando se vê. Ao colocar-se do lado do bem, uma vez que ele vê, o narrador coloca-se também do lado da sabedoria, do conhecimento. Aparecem aí questões importantes, uma vez que, ao sustentarmos que a leitura do texto literário deve basear-se nele mesmo, devemos sustentar também que o ponto de vista expresso pelo narrador é um ponto de vista da cegueira – sua própria cegueira, nesse caso uma outra metáfora da cegueira, de julgar-se “superior” ante suas personagens, e de elaborar um complexo mundo em que só por estarem cegas essas personagens seriam incapazes de viver num espaço harmonioso. A cegueira das personagens as torna imperfeitas, e a cegueira do narrador é um ponto de vista de onde se pode narrar textos literários.

“Estou cego”; “nada, é como se estivesse no meio de um nevoeiro, é como se tivesse caído num mar de leite”; “a partir de agora deixara de poder saber quando o sinal estava vermelho”; “era como se houvesse um muro branco do outro lado”; “sabia que estava na sua casa, reconhecia-a pelo odor, pela atmosfera, pelo silêncio, distinguia os móveis e os objetos só de tocar-lhes, passar-lhes os dedos por cima, ao de leve, mas era também como se tudo isso estivesse já a diluir-se numa espécie de estranha dimensão, sem direções nem referências, sem norte nem sul, sem baixo nem alto”; “e depois, já certo de que não veria, abriu os olhos”; “vejo sempre o mesmo branco, para mim é como se não houvesse noite”, “a luz, esta luz, para ele, tornara-se ruído”; “e abanou a cabeça como quem já nada espera”; “nessa noite o cego sonhou que estava cego” (SARAMAGO, 2004, p. 13-24). Saramago

utiliza um detalhado processo de descrição da experiência da cegueira do primeiro cego. Procura localizar as impressões enquanto a partir delas cria o elemento organizador do espaço da visão narrativa contido no texto e da concomitante cegueira narrada por esta visão. O momento da cegueira e as subsequentes sensações que dela advêm são o ponto de partida que o narrador de Saramago utiliza para contar sua história. Uma vez detalhados os sentimentos que marcam o primeiro cego, o narrador passa a narrar de forma mais breve os acontecimentos que envolvem os cegos que se lhe seguem. O ladrão, que rouba o carro do primeiro cego, é o segundo a ser tomado pelo que se demonstrará como epidemia.

Talvez me limpe os aranhiços da cabeça, lá porque o tipo ficou cego não quer dizer que a mim me suceda o mesmo, isto não é uma gripe que se pega, dou uma volta ao quarteirão e já me passa. Saiu, nem valia a pena fechar o carro, daí a nada estaria de volta, e afastou-se. Ainda não tinha andado trinta passos quando cegou (2004, p. 27).

Esta cegueira é precedida de uma imensa preocupação com os sinais do trânsito:

Usava de todo o cuidado em obedecer aos semáforos, em caso algum avançar com o vermelho, respeitar o amarelo, esperar com paciência que saia o verde. A certa altura apercebeu-se de que tinha começado a olhar as luzes de um modo que se estava a tornar obsessivo (p. 27).

O terceiro a cegar é o oftalmologista que atendeu o primeiro cego. Aturdido pela incompreensão do episódio narrado pelo cego que o havia procurado no consultório, buscando entender o tipo de cegueira descrito, que não constava nos compêndios da medicina, e tendo consciência clara de que estava metido num beco onde aparentemente não havia saída, percebe-se, também, cego.

Que será isto, pensou, e de súbito sentiu medo, como se ele próprio fosse cegar no instante seguinte e já o soubesse. Susteve a respiração e esperou. Nada sucedeu. Sucedeu um minuto depois, quando juntava os livros para os arrumar na estante. Primeiro percebeu que tinha deixado de ver as mãos, depois soube que estava cego (p. 30).

Ao ficar cego, o oftalmologista, que buscava compreender o novo tipo de cegueira, não é preservado. As posteriores referências dos outros cegos à cegueira do médico vão acentuar a ironia de que, aparentemente, nem mesmo quem poderia entender a cegueira estaria livre dela. O segundo e o terceiro cegos sabem da inexplicável cegueira do primeiro homem e, por isso, tiveram, segundos antes de ficarem cegos, a percepção de que cegariam. A quarta pessoa que merece ter sua cegueira narrada é a “rapariga dos óculos escuros”. Cliente do oftalmologista,

ela havia encontrado, casualmente, o primeiro cego no consultório do médico, enquanto esperava por sua consulta. Ela não fica sabendo do caso do primeiro cego, apenas presencia a preferência que a ele é dada quando este chegara ao consultório. O motivo da consulta da moça residia no fato de ela ter sido tomada por uma conjuntivite simples. A rapariga fica cega num quarto de hotel enquanto atendia um cliente.

Trezentos e doze é o número que a esperava, é aqui, bateu discretamente à porta, dez minutos depois estava nua, aos quinze gemia, aos dezoito sussurrava palavras de amor que já não tinha necessidade de fingir, aos vinte começava a perder a cabeça, aos vinte e um sentiu que o corpo se lhe despedaçava de prazer, aos vinte e dois gritou, Agora, agora, e quando recuperou a consciência disse, exausta e feliz, Ainda vejo tudo branco (p. 33).

Saramago, em seu Ensaio, cria uma cegueira que vai se apresentando como uma epidemia contagiante que vai, efetivamente, cegando as pessoas, uma a uma, em grupos e que depois toma conta da cidade inteira. A cegueira é apresentada como uma doença, um mal, um cancro.

A cegueira do oftalmologista leva-o a perceber um tipo de cegueira altamente contagioso e o faz avisar as autoridades dos riscos de uma epidemia. O ministério resolve recolher em um sanatório os que cegaram. Surge então o quinto cego: a esposa do médico que não querendo abandonar o marido se declara cega para acompanhá-lo em sua trajetória dali para frente. O sexto cego será o menino estrábico. Do conjunto dos que vão cegando, e o número deles começa a crescer enquanto a narrativa se estende, o narrador vai escolher sete para acompanhá-los em sua caminhada, de maneira a expressar em relação a eles um maior número de observações, apanhar-lhes em mais sentimentos, relatar através deles as sensações mais interessantes. Estes sete personagens são: o primeiro cego, a mulher do primeiro cego, o oftalmologista, a mulher do oftalmologista (que enxerga durante toda a narrativa), a rapariga dos óculos escuros, o rapazinho estrábico e o velho da venda preta. “Estão sentados juntinho, as três mulheres e o rapaz no meio, os três homens em redor, quem os visse diria que já nasceram assim, é verdade que parecem um corpo só, com uma só respiração e uma única fome” (p. 213). No grupo dos sete, apenas uma enxerga, e tem um certo poder sobre os outros, ao mesmo tempo em que fica com a sobrecarga de um maior número de tarefas. Não é por acaso que os cegos são sete. Esse número é simbólico e possui um caráter universal, além de remeter às sete maravilhas do mundo, aos sete pecados capitais, ao fato de os sacramentos serem sete e de representar o infinito, na Bíblia, que é feito pelo produto da multiplicação de setenta vezes sete.

O narrador conta como progressivamente todos se cegaram: “Os vossos soldados devem ter sido dos últimos a cegar, toda a gente está cega, Toda a gente, a cidade toda, o país, Se alguém ainda vê, não o diz, cala-se” (p. 215). Há, na narrativa, esse alguém que ainda vê, a mulher do médico, que representa a possibilidade de visão do absurdo, ao mesmo tempo em que representa a possível resistência a uma epidemia que acomete a todos. Essa mulher só revela sua capacidade de ver para o grupo dos sete personagens “centrais” desta narrativa, ela cria com eles um vínculo de proteção e os conduz. Ela administra as cartas do naipe visão, enquanto os outros jogam com as cartas do naipe cegueira.

Olhou-os com os olhos rasos de lágrimas, ali estavam, dependiam dela como as crianças pequenas dependem da mãe, Se eu lhes falto, pensou, não lhe ocorreu que lá fora todos estavam cegos, e viviam, teria ela própria de cegar também para compreender que uma pessoa se habitua a tudo, sobretudo se já deixou de ser pessoa, e mesmo se não chegou a tanto (p. 218).

A mulher procura conduzir-se nessa terra de cegos da melhor forma possível, procurando através da visão um aspecto privilegiado num mundo em que não ver passa a ser o lugar comum. O uso de cautela marca também sua movimentação na narrativa: “não podia perder-se, não haveria ninguém a quem perguntar o caminho, os que antes viam estavam cegos, e ela, que podia ver, não saberia onde estava” (p. 218). Na fatalidade da narrativa, a mulher que tinha tido todo o cuidado de não se perder dos seus, acaba por perder-se. O auxílio lhe chega através de um mapa, “desses que os departamentos municipais de turismo espalham no centro das cidades” (p. 226). Desse momento em diante, surge uma nova personagem na narrativa: “o cão das lágrimas” (os cães não cegam, no texto). “Só o cão que tinha bebido as lágrimas acompanhou quem as chorara, provavelmente este encontro da mulher e do mapa, tão bem preparado pelo destino, incluía também um cão” (p. 227).

A cegueira de todos, menos da mulher, os leva a imaginar novos modos de governo:

Foi à mesa que a mulher do médico expôs o seu pensamento, Chegou a altura de decidirmos o que devemos fazer, estou convencida de que toda a gente está cega, pelo menos comportam-se como tal as pessoas que vi até agora, não há água, não há eletricidade, não há abastecimentos de nenhuma espécie, encontramo-nos no caos, o caos autêntico deve ser isto, Haverá um governo, disse o primeiro cego, Não creio, mas, no caso de o haver, será um governo de cegos a quererem governar cegos, isto é, o nada a pretender organizar o nada, Então não há futuro, disse o velho da venda preta, Não sei se haverá futuro, do que agora se trata é de saber como podemos viver neste presente, Sem futuro, o presente não serve para nada, é como se não existisse, Pode ser que a humanidade venha a conseguir viver sem olhos,

mas não deixará de ser humanidade, o resultado está à vista, qual de nós se considerará ainda tão humano como antes cria ser (p. 244).

Surge dessa reflexão a proposta de que o governo dos cegos fique ao encargo de quem vê (pelo menos considerando o grupo dos sete, que se juntam e passam a viver unidos): “Tu não estás cega, disse a rapariga dos óculos escuros, por isso tens sido a que manda e organiza” (p. 245). A mulher que enxerga rebate com os argumentos: “Não mando, organizo o que posso, sou, unicamente, os olhos que vocês deixaram de ter, Uma espécie de chefe natural, um rei com olhos numa terra de cegos, disse o velho da venda preta, Se assim é, então deixem-se guiar pelos meus olhos enquanto eles durarem” (p. 245).

A cegueira como epidemia revela que o narrador, ao proteger ou ao permitir que uma personagem continuasse vendo, está reforçando a ideia de que o bem e o conhecimento só podem estar ao lado de quem vê. Ver é uma dádiva, no caso em tela, e é por isso que a narrativa se encerra com o narrador relatando a volta da visão de todos, o que explicaria a volta da organização, do governo e da ordem.