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2 O ponto de vista da cegueira

2.3 Ver para poder narrar

A narrativa surge no momento em que algo que é visto, ou imaginado, pode ser contado. As narrativas que entram no interior dos nossos modos de narrar em sua quase totalidade surgem de um certo tipo de visão em relação aos acontecimentos. Até as narrativas do caos pressupõem uma visão. Para narrar é preciso ver. Por isso os narradores do Ensaio não são os que cegaram, mas sim os que mantêm a visão; mesmo que ela possa se apresentar distorcida, ela permanece, ela se afirma. Ao destacar o privilégio da visão, o narrador cria um ponto de vista centrado nas imagens. Podemos até imaginar que, se o narrador cegasse, a narrativa perderia esse ponto de vista, que sendo tão utilizado pode ser considerado um ponto de vista como lugar comum que é, de certa forma, cego e estabeleceria uma nova ordem de visão, justamente por ter sido gerada a partir do inédito da cegueira, liberta das imagens que tornam autômatos seus espectadores. O narrador e a mulher do médico representam nossa incapacidade de nos cegarmos positivamente, de construirmos novos pontos de vista e de re- elaborarmos positivamente o sentido do que seja o ponto de vista da cegueira.

A relação dentro-fora como relação paradoxal que instaura o espaço do narrador está presente em toda narrativa. Isso ocorre porque há uma distância entre o dizer e o dito. Ao narrar, o narrador lança um olhar em direção aos fatos narrados. Ele também se transforma em

objeto da narrativa, é construído por ela para sustentar o próprio desenvolvimento do processo narrativo. No caso do Ensaio, de Saramago, o narrador aparece figurado, identificando-se aqui ou ali como uma personagem, colocando-se distante em outros momentos, tomando posições variadas. Sua figura sofre desdobramento explícito. Ele está dentro e fora das ações contadas na narrativa. Por isso, ele é um narrador que em alguns momentos é vítima do contágio da cegueira. Aparece cegado pelas circunstâncias, uma vez que se demonstra incapaz de perceber certas nuances daquilo que ele registra ao contar, ao mesmo tempo em que se julga o “todo conhecedor” dos fatos. Identifica-se, para tanto, com uma das personagens, justo a que não deixou de ver, a mulher do médico, e muitas de suas observações partem do que ela vê e observa:

Pela primeira vez, desde que aqui entrara, a mulher do médico sentiu-se como se estivesse por trás de um microscópio a observar o comportamento de uns seres que não podiam nem sequer suspeitar da sua presença, e isto pareceu-lhe subitamente indigno, obsceno, Não tenho o direito de olhar se os outros não me podem olhar a mim, pensou (SARAMAGO, 2004, p. 71). O espaço dentro-fora fica tensionado e o narrador imbui-se de uma vontade irrefreável de especular os lugares de onde ecoa sua voz. Por meio da experimentação de tais lugares, delineia-se para ele o papel de testemunha. Testemunhar é estar fora da cena que se desenrola. A testemunha não se confunde com os que vivem a ação e são dela os protagonistas. Seu ângulo de visão é externo em relação àquilo que é narrado, como se estivesse totalmente fora da ação. De outra forma, testemunhar é estar presente, ali no espaço dos atos que se praticam. A testemunha move-se então dentro do circuito das ações narradas. Seu olhar é, pois, como o olhar de todo narrador, participante. Nesse limite em que se indissociam o estar fora e o estar dentro, em que são simultâneos o olhar interno e o externo, se situa o narrador.

Lugar fascinante, porém terrível, porque inviabiliza qualquer pretensão que o narrador possa ter no sentido de se reconhecer como um sujeito uno e pleno. Ele acaba por ser um voyeur, um participante das vivências que pertencem ao outro e diante das quais ele não passa de um espectador. Ao projetar-se em uma cena em que ele, o narrador, está dentro e fora, ele representa-se esgarçado, dividido, esquizofrenizado. O horror de ver sem ser visto, experimentado pela mulher, narradora eventual da narrativa, produz uma oscilação. É justamente dessa oscilação que o narrador fará sua marca. A posição de observação garante ao narrador o poder conjugar seu esfacelamento e sua capacidade de testemunhar. No Ensaio, Saramago compartilha com a personagem, a mulher do oftalmologista, esse papel duplo.

Agora, com os olhos fitos na tesoura pendurada na parede, a mulher do médico estava a perguntar-se a si mesma, De que me serve ver. Servira-lhe para saber do horror mais do que pudera imaginar alguma vez, servira-lhe para ter desejado estar cega, nada senão isso (2004, p. 152).

A cena passa a ser narrada a partir do olhar que a acompanha e das impressões que a movem como a pessoa que observa. Ao se enfatizar certos dados na narrativa o foco do leitor é dirigido através dos olhares que agem dentro do texto. O privilégio da visão da mulher do médico, visto por ela mesma como um castigo, remete o leitor a uma nova leitura dentro do conjunto de suas posições ideológicas e de sua visão de mundo. E o leitor se pergunta quais seriam as cenas narradas se realmente todos estivessem cegos. Será que a perspectiva cega não seria responsável por inaugurar uma nova ordem?

O narrador insere a personagem no procedimento narrativo, desdobrando-se daí um foco distinto de observação. Não há dúvida de que tal olhar surge da própria fala do narrador. É um prolongamento de seu olhar, um outro, autônomo, mas submisso, instalado para garantir uma ampliação do foco, um aumento da potência das lentes de visão. É como se o olho que continua a ver, num mundo em que o narrador cegou quase toda a população, ali permanecesse escapado do domínio de suas mãos, mas ainda assim inserido nesse domínio, para garantir ver mais. Ver mais de dentro, mais de perto. A personagem assume o papel de observador privilegiado. Amplia e interroga os limites do olhar do narrador ao dotá-lo do poder de deslizar pelas entranhas da narrativa. Permite ao narrador o uso intenso de uma prerrogativa sua: exercer a liberdade de olhar e exercer o domínio que o olhar lhe proporciona. Ao lançar o olhar para dentro da cegueira, mas desvestido dela, o narrador torna flexíveis os compromissos com a coerência linear do desenvolvimento do relato, percorrendo tempos e espaços diversos e modificados por novos procedimentos de “des”-organização.

O papel do ato de narrar constitui então dois sujeitos: o narrador e a personagem que lhe ajuda a narrar. A narrativa existe em função desses sujeitos que narram. É a sonoridade de suas vozes que permite que a história seja contada. Contudo, é a narrativa que lhes define uma identidade, que lhes garante o direito a ter essa voz. E que lhes garante a própria existência. Narradores e narrativa são interdependentes. Um só vive se a outra é possível.

A permissão de narrar dada por Saramago, no Ensaio sobre a cegueira, para seu narrador é por ele retransmitida, de forma indireta, a suas personagens – sobretudo à mulher do médico – que ganha o direito à voz em discursos direto, indireto e indireto livre. Aparentemente, o narrador estabelece uma relação aberta de poder com suas personagens.

Essa relação é só aparente, uma vez que é o narrador que vai determinando o tipo de olhar de seus personagens que ele quer registrar para garantir que sua visão dos acontecimentos esteja em primeiro plano.

É importante verificar a maneira como o narrador concebe a relação entre os fatos que narra – e que constituem, na sua perspectiva, a realidade – e o resultado da sua ação de narrar – ou seja, sua linguagem, seu relato. Contar com uma testemunha, no caso a mulher do oftalmologista, ter à disposição um outro olhar que presencie a ação que se vive ou narra é indissociável da própria possibilidade de a vivência ou narrativa ocorrer. A realidade, para existir, exige alguém que a confirme. Sem esse alguém, ela é sempre inacabada. A vida demanda registros, representações.

É fundamental, portanto, dentro da visão do narrador, que a mulher enxergue, que seu olho se enquadre para registrar, como uma câmera sempre atenta, as cenas a serem narradas.

As vidas das personagens só fazem sentido na medida em que são narradas. Assim é que a realidade da ficção ganha sentido pela narrativa, completando-se através dela. O sentido da existência dessas personagens está no fato de elas existirem enquanto formas de representação. Elas assumem papéis que alargam nossas visões de mundo, que distorcem nossos conceitos e que nos surpreendem, até causando-nos medo. Esses papéis, renováveis a cada leitura, implicam uma abertura de nossas lentes de visão. Eles também nos podem cegar, desde que nos exijam modos de ver para os quais não estamos preparados.

Havia portanto um cego normal entre os cegos delinquentes, um cego como todos aqueles a quem dantes se dava o nome de cegos, evidentemente tinha sido apanhado na rede com os demais, não era a altura de pôr-se o caçador a averiguar, Você é dos cegos modernos ou dos antigos, explique-nos lá de que maneira não vê (SARAMAGO, 2004, p. 146).

A existência de dois tipos de cegueira, a negra e a branca, a antiga e a moderna, leva o leitor à investigação do processo epidêmico. A narrativa provoca, com isso, um desconcerto nas hipóteses de cegueira, desarranja o estado das coisas. A cegueira antiga não representa o fim da organização nem demanda confinamento. Ela é a expressão de um sentido que não se exerce da mesma forma em todos. Alguns cegos desenvolvem inclusive formas inimagináveis de visão e até partem da experiência de ausência dela para elaborarem uma teoria sofisticada sobre o que é ver. A cegueira nova, dos cegos da epidemia, é o fim do estado de organização e implica que sem o sentido da visão as pessoas se transformam em seres inferiores, para quem não existe nenhuma possibilidade de vida dentro do mínimo e do

razoável. Ao narrar, o narrador estabelece essa distinção entre as cegueiras, e como ponto- médio dá a elas a possibilidade de uma visão: a da personagem que é o olho do narrador.

O contraste entre a cegueira branca e a negra é denotado através da visão que as narra. Esses distintos modos de dispor a cegueira demonstram a preocupação do narrador em deixar claro que o que é narrado encontra-se num outro plano conceitual, exigindo que a leitura registre as diferenças e lhes arranje interpretações.

O fato de mais de um tipo de cegueira ser possível na narrativa não significa apenas a intenção de descentramento do sujeito que narra. Indica também o desejo de que a narrativa não fique restrita a seu próprio universo. Os tipos de cegueira apresentados querem denotar que, como as visões não são iguais, também não o são as cegueiras. É uma forma de demonstrar que se há tipos de cegueiras diferentes, os cegos têm modos de se comportar dentro delas, diferentes também. Se nem todas as cegueiras são iguais, esse elemento pode alicerçar um edifício em que variadas cegueiras seriam nossa possibilidade de obter a visão.