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2 O ponto de vista da cegueira

2.5 As imagens da cegueira

O século XXI é o século das imagens, de um mundo que se constrói muito mais no movimento das imagens do que no movimento das pessoas. A lógica dos cartazes virtuais, da internet, da televisão, do videogame, e de todos os aparelhos que dão vida a um mundo de imagens é a lógica que inaugura um tempo novo e com ele uma realidade que convida a ver de forma diferente. Cada vez mais as feiras especializadas em tecnologia apresentam no mercado novos objetos, e as pessoas muitas vezes vivem ligadas em aparelhos. A privacidade é constantemente subvertida pela exposição, e as pessoas estão mais e mais em interlocução com máquinas e desconectadas das relações íntimas. Boa ou ruim, é esta a realidade dos tempos.

O Ensaio nos convida a pensarmos o mundo das imagens criadas pela cegueira. Essas imagens colocam os sujeitos cegos dentro de uma perspectiva diferente. Se, de certa forma, toda imagem pressupõe a ausência, na própria imagem, de quem olha, ela se conforma pelo distanciamento do olhar. Como o reino das imagens impõe a ausência do olho que as visualiza, temos, no momento em que esse olho já não é capacitado a ver, um estado diferente de coisas. Impedido de suas possibilidades, o olho deixa de participar das imagens e perde o poder de captá-las. A mulher do médico é a única personagem capaz de receber imagens na forma clássica em que uma pessoa está acostumada a ver. Entretanto, há, na obra, um revelar de sua visão que tensiona e amplia o que é visto, e que modifica a forma como as imagens são captadas a partir de um olho que, pelo medo de cegar-se, vê de modo inédito e vê quadros que pareceriam impossíveis de serem vistos se a ordem das coisas não tivesse sido alterada. O exercício narrativo busca alternativas que mostram como é problematizada a relação olhar/imagem (para o narrador e a mulher do médico) e a relação cegueira/imagem para os personagens que cegaram, de repente, e em conjunto.

Pela primeira vez desde que saíra da camarata teve um arrepio de frio, parecia que as lajes do chão lhe estavam a gelar os pés, como se os queimassem, Oxalá não seja isto febre, pensou. Não seria, seria só uma fadiga infinita, uma vontade de enrolar-se sobre si mesma, os olhos, ah, sobretudo os olhos, virados para dentro, mais, mais, mais até poderem alcançar e observar o interior do próprio cérebro, ali onde a diferença entre o ver e o não ver é invisível à simples vista. Devagar, ainda mais devagar, arrastando o corpo, voltou para trás, para o lugar aonde pertencia, passou ao lado de cegos que pareciam sonâmbulos, sonâmbula ela também para eles, nem tinha de fingir que estava cega. Os cegos enamorados já não estavam de mãos dadas, dormiam deitados de lado, encolhidos para conservarem o calor, ela na concha formada pelo corpo dele, afinal, reparando melhor, tinham-se dado as mãos, o braço dele por cima do corpo dela, os dedos entrelaçados.

Lá dentro, na camarata, a cega que não conseguia dormir continuava sentada na cama, à espera de que a fadiga do corpo fosse tal que acabasse por render a resistência obstinada da mente. Todos os outros pareciam dormir, alguns com a cabeça tapada, como se ainda estivessem à procura de uma escuridão impossível. Sobre a mesa de cabeceira da rapariga dos óculos escuros, via-se o frasquinho de colírio. Os olhos já estavam curados, mas ela não sabia (SARAMAGO, 2004, p. 157-158).

Mostram-se aí imagens criadas a partir de alguns pontos de vista ou de alguns pontos de cegueira. O primeiro ponto de vista é o da mulher do médico. Envolvida em um grande estupor, exausta de ver quadros de imensa brutalidade, quase que acostumada a uma ordem para a qual seu sentimento de justiça não estava disposto, ela se movimenta fatigada e deseja enrolar-se sobre si mesma. Deseja, sobretudo, que seus olhos fossem virados para dentro, lugar, naquele momento, confortável. Tem a vontade de recuar com os olhos, “mais, mais, mais, até poderem alcançar e observar o interior do próprio cérebro, ali onde a diferença entre o ver e o não ver é invisível à simples vista”. Esse voltar-se para dentro é o organizador das perspectivas alteradas pela ordem das coisas. É a procura por resgatar os antigos estados de sua visão. É a tentativa de não perder a capacidade de ver.

No Ensaio, o fato de a maioria das personagens ficar cega gera imagens constituídas a partir da impossibilidade de elas serem tomadas pelo olho. São outros os meios de recepção de imagens, e muitas delas nascem de lembranças de imagens do período em que ver era possível.

A cegueira proporciona duas percepções, no caso do Ensaio: a da mulher que olha os cegos e procura percebê-los dentro de uma nova ótica; e a dos que ficaram cegos e que têm, de uma forma ou de outra, que se adaptar à realidade.

Chegando a este ponto, o cego contabilista, cansado de descrever tanta miséria e dor, deixaria cair sobre a mesa o punção metálico, buscaria com a mão trêmula o bocado de pão duro que havia deixado a um lado enquanto cumpria a sua obrigação de cronista do fim dos tempos, mas não o encontraria, porque outro cego, de tanto lhe pôde valer o olfacto nesta necessidade, o tinha roubado. Então, renegando o gesto fraterno, o abnegado impulso que o tinha feito acudir a este lado, decidiu o cego contabilista que o melhor, se ainda ia a tempo, seria regressar à terceira camarata do lado esquerdo, ao menos, lá, por muito que se lhe esteja revolvendo o espírito de honesta indignação contra as injustiças dos malvados, não passará fome (2004, p. 160-161).

A consciência de que não estão sendo vistas, que delineia o comportamento das personagens, decorre do fato de imaginarem que não resta ninguém para ver as ações. O cego, portanto, que rouba o pão do outro cego cumpre um papel social. Se, no entanto, ele se

imaginasse observado, provavelmente não o cumpriria. O achar-se não observado surge de um sentimento de privacidade, fruto de um individualismo enraizado, em que os cegos supõem que suas ações não podem ser percebidas por outrem. Cria-se com isso uma maneira inédita de autoanálise e de análise do comportamento dos outros. Surge até um gozo na sensação de não poder ser visto, manifestado na recorrência de cenas em que os direitos dos outros são violados pelo fato de o sujeito que os viola acreditar-se isento do olhar desses mesmos outros. Tudo isso acaba por estar envolto em um clima em que as alterações do comportamento humano acontecem até para que a sobrevivência seja garantida. Os cegos que roubam dos outros cegos acreditam estar fazendo o que deve ser feito, pois afinal de contas eles percebem que uns sobreviverão e outros sucumbirão. Dentro dessa perspectiva cada um opta por sobreviver, não considerando a necessidade de outros também permanecerem vivos.

Ao detectarmos a faceta das personagens e sua consequente mudança de comportamento, diante dos episódios, somos os leitores que transitam pelos bastidores do texto e que têm o privilégio de ver, porque os fatos lhes são apresentados pelo narrador.

O mundo exterior já não produz os mesmos sentidos. Os cegos carregam consigo outras imagens de outros tempos, e têm percepções a partir dessas novas imagens, rompendo com as antigas formas de visão.

Pelas poucas janelas que davam para o pátio interior entrava uma última claridade, cinzenta, moribunda, que declinava rapidamente, já a resvalar para o poço negro e profundo que ia ser esta noite. Tirando a tristeza irremediável causada pela cegueira de que inexplicavelmente continuavam a padecer, os cegos, valha-lhes isso ao menos, estavam a salvo das deprimentes melancolias produzidas por estas e semelhantes alterações atmosféricas, comprovadamente responsáveis de inúmeros atos de desespero no tempo remoto em que as pessoas tinham olhos para ver (2004, p. 200).

Se por um lado são vítimas e sentem-se deprimidos por estarem desprovidos do sentido da visão, por outro estão protegidos de cenas do cotidiano que invariavelmente levam as pessoas a sentimentos depressivos.