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2 O ponto de vista da cegueira

2.7 O ensaio sobre a cegueira

O leitor da livraria envolve-se de tal forma com o livro de Saramago que começa a se perguntar como se comportaria no caso de também ele vir a cegar. Esse leitor anda pela cidade aflito. Ele para mais detidamente no sinal de trânsito, evita os consultórios dos oftalmologistas, decide não mais frequentar os quartos dos hotéis. Acorda todas as manhãs e deixa-se ficar por um tempo com os olhos fechados, com medo de ter-se contagiado pela leitura do livro. Anda obcecado com a visão e já contempla a hipótese de evitar os excessos. Visita pouco a internet, recusa-se a ler todos os cartazes na rua e tem tentado seguir sua vida, evitando a poluição visual. Tem tentado ler outros livros, pensar na utilização correta dos elementos naturais, já está misturado com os discursos contemporâneos, mas teme, e o temor tem sido seu amigo constante. Teme especialmente por não saber se está lendo adequadamente. Teme não compreender tantas máximas e recusa-se a terminar a leitura.

O leitor da livraria compra outros livros, viaja, distrai-se com a vida que reclama ser vivida. Abandona a leitura e acaba por esquecer o texto. Apaixona-se por outros temas, passa a ser espectador assíduo de peças teatrais, de espetáculos de dança, de shows de MPB e de samba. Vai ao cinema, diverte-se com pipocas, interessa-se por cartas de vinhos. Uma noite, ao retornar à casa, fecha a porta atrás de si e cai num mar de leite.

Atônito tenta encontrar o sofá. Lembra-se exatamente onde ele fica. Consegue assentar para recuperar a respiração, que por instantes havia lhe fugido. Tem uma espécie de vertigem. Está só. Irremediavelmente só. Escuta os rumores da cidade lá fora. Sempre morou próximo ao centro. Sente frio e sede. Nem tem ideia do que poderá fazer. É o primeiro a cegar-se sem plateia. Tem vontade de gritar para que a vizinha venha socorrer-lhe. Lembra-se que é sábado e que ela vai para o sítio todos os fins de semana. Pensa em ligar a televisão para distrair-se. “Ver algumas bobagens”, expressão que sempre usou para se referir ao aparelho que lhe parece diversão de tolos. Reconheceu vã a tarefa. Respirou fundo e tentou deixar o tempo passar. O telefone toca. Dirige-se para o aparelho e o atende como todas as outras vezes. Engano. Conscientiza-se que está vendo, corre para o escritório e retoma a leitura do Ensaio de Saramago. Sente que estava sendo punido por não ter dado sequência à leitura. Num misto de alegria e tristeza, começa a ler o último capítulo.

A cegueira, aos poucos, se distancia. A imagem de seu dispersar vai se tornando difusa: mera cintilância. O leitor da livraria tem a sensação de que seu campo de visão gradativamente se indefine. Como se seus olhos se fechassem devagar. A narrativa começa a

se dissipar. Procura, entretanto, recompor a trajetória percorrida. Na vontade premente de uma tradução impossível, uma palavra irrompe: ensaio.

Ensaio: prova, experiência; exame, tentativa, treino. Estudo menos aprofundado sobre determinado assunto. Atividade não precisa. Resultado de hipóteses. União de alteridades. O fato de essa ficção de Saramago apresentar-se na forma ensaística está relacionado ao embate das ideias postas como em um campo de força, falíveis, libertas da busca de uma verdade definitiva, apesar de contestar a característica autoritária de seu narrador. Assim, nas palavras de Adorno:

é inerente à forma do ensaio a sua própria relativização: ele precisa compor- se de tal modo como se, a todo momento, pudesse interromper-se. Ele pensa aos solavancos e aos pedaços, assim como a realidade é descontínua; encontra a sua unidade através de rupturas e não à medida que as escamoteia (1986, p. 180).

Adorno distancia o ensaio da arte por aproximá-lo da teoria, de uma reflexão operada através de conceitos específicos. Em Saramago, o desejo teórico está presente. Teorizar, em sua vertente autoritária, combina com o estilo de Saramago. A intenção teórica está presente em seu texto. No campo de sua narrativa, conceitos e experimentações não se dissociam, bem como uma pedante atitude de superior compreensão da humanidade. No ensaio de Saramago, como no ensaio de teatro, efetivamente dramatiza-se um texto, cria-se uma cena concreta. Entretanto, por não ser um produto definitivo, o ensaio é o momento de pesquisa, reavaliação, tentativa, reflexão.

Numa comunidade em que todos ficam cegos, menos a mulher do médico, espera- se que o final seja, no mínimo, a contaminação geral. Espera-se pela cegueira dessa única mulher. Espera-se que novas formas de vida surjam e que um aprendizado interminável nasça daí. Ao contrário, o que surge é uma inesperada recuperação da visão.

Encontrava-se portanto bem desperto o primeiro cego, e se alguma outra prova fosse necessária, aí estaria a brancura ofuscante dos seus olhos, que provavelmente só o sono escurecia, mas nem disto se podia ter certeza, uma vez que ninguém podia estar ao mesmo tempo dormindo e velando. Julgou o primeiro cego ter finalmente esclarecido esta dúvida quando de repente o interior das pálpebras se lhe tornou escuro, Adormeci, pensou, mas não, não tinha adormecido, continuava a ouvir a voz da mulher do médico, o rapazinho estrábico tossiu, então entrou-lhe na alma um grande medo, acreditou que tinha passado de uma cegueira a outra, que tendo vivido na cegueira da luz iria viver agora na cegueira da treva, o pavor fê-lo gemer, Que tens, perguntou-lhe a mulher, e ele respondeu estupidamente, sem abrir os olhos, Estou cego, como se essa fosse a última novidade do mundo, ela abraçou-o com carinho, Deixa lá, cegos estamos nós todos, que lhe havemos

de fazer, Vi tudo escuro, julguei que tinha adormecido, e afinal não, estou acordado, É o que deverias fazer, dormir, não pensar nisso. O conselho aborreceu-o, ali estava um homem angustiado como só ele sabia, e a sua mulher não tinha mais nada para lhe dizer senão que fosse dormir. Irritado, já com a resposta azeda a sair-lhe da boca, abriu os olhos e viu. Viu e gritou, Vejo (SARAMAGO, 2004, p. 306).

A recuperação da visão vem como tinha sido a contaminação da cegueira. Depois de o primeiro cego começar a ver, gradativamente todos vão recuperando a vista. Um tipo de cegueira vai abandonando os cegos, sem garantir que eles não são portadores de outras cegueiras: “costuma-se até dizer que não há cegueiras, mas cegos, quando a experiência dos tempos não tem feito outra coisa que dizer-nos que não há cegos, mas cegueiras” (2004, p. 308).

A narrativa de Saramago sugere uma perspectiva. A literatura inventa livremente sobre acontecimentos que não são, mas que poderiam ser, realidade. A literatura, não tendo compromisso com nenhum tipo de doutrina, pode, contudo, estar contaminada por doutrinas. A literatura insere o leitor num mundo, não lhe garantindo que sua participação se dará de forma efetiva.

No final, o narrador tenta jogar com a surpresa do leitor, mas não consegue deixar aberta a interpretação:

A mulher do médico levantou-se e foi à janela. Olhou para baixo, para a rua coberta de lixo, para as pessoas que gritavam e cantavam. Depois levantou a cabeça para o céu e viu-o todo branco, Chegou a minha vez, pensou. O medo súbito fê-la baixar os olhos. A cidade ainda ali estava (2004, p. 310).

O leitor da livraria fecha o livro perplexo. Não contava com esse final. Sente um leve ódio do autor, do narrador e da mulher que vê. Mistura-se com a narrativa a tal ponto que confunde-se com ela. Tem ânsia de rasgar o livro. Não sabe como vai dormir à noite. Tem vontade de acender um cigarro e se lembra que não fuma. Abre a janela para respirar melhor. Do décimo terceiro andar olha para a rua, deserta. Depois levanta a cabeça para o céu e o vê todo negro. Entende que pode ter ficado cego. Deseja isso veementemente. Em vão. Baixa os olhos. A cidade, a rua, a casa, o escritório, ainda estavam ali.