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2 O ponto de vista da cegueira

2.4 A cegueira do leitor

A narrativa de José Saramago propõe uma visão ampliada do procedimento narrativo ao fazer com que o narrador utilize a visão da mulher personagem que vê os acontecimentos a partir de um ângulo diferente, participando mesmo dos episódios narrados. Sendo assim, a narrativa do Ensaio propõe um deslocamento para fora e outro para dentro de si mesma. Em nome dessa técnica narrativa o autor acaba provocando uma discussão sobre o papel do leitor. Se o olhar de quem narra frequentemente se transfigura no de quem observa, é de se esperar que ele circule em órbitas próximas à do olhar de quem lê. Tal movimento narrativo parece constituir uma característica do narrador pós-moderno. Nas palavras de Silviano Santiago, “o narrador pós-moderno é aquele que quer extrair a si da ação narrada, em atitude semelhante à de um repórter ou de um espectador” (1989, p. 39). Assumindo a atitude de espectador, “o narrador identifica-se com um segundo observador – o leitor” (1989, p. 44). Uma vez possuidor de características peculiares ao leitor, o narrador tende a se despojar do papel de eixo centralizador da narrativa, ou seja, do próprio papel de narrador. No entanto, o desejo de despojamento esbarra em um obstáculo: o olhar do narrador do Ensaio é um olhar que tem dificuldade de negociar os poderes narrativos. A aparente negociação que o narrador estabelece com a personagem e a aparente negociação que ele poderia propor ao leitor anunciam uma narrativa hipoteticamente aberta, quando ela o é, na verdade, fechada em

seus limites. Há, então, uma cegueira expressa do narrador, uma cegueira que o incapacita de criar uma narrativa aberta, negociável, partilhada com o leitor. Essa cegueira é alimentada por uma falsa visão privilegiada de sua personagem, que gera consequentemente uma cegueira generalizada. Nem o narrador é o sujeito que vê melhor, nem sua personagem. Com isso a cegueira, tema do livro, é aumentada e contamina a possibilidade de visão do leitor. Há um processo de contágio da cegueira a partir do qual a obra se desenvolve. A tentativa do narrador de tornar o olhar do leitor muito igual ao seu próprio olhar surge do desejo de manipular o leitor. A aproximação entre os olhares do narrador e do leitor gera um paradoxo, que consiste em o olhar do leitor ser e, simultaneamente, não ser conduzido pelo olhar do narrador. O leitor transforma-se em um agente cegado pela cegueira que contagia os personagens e pela cegueira que rege a visão distorcida do narrador e da personagem mulher do médico. Através da cegueira proporcionada pela visão narrativa, o olho do leitor pode circular livremente pelas imagens. Através da barreira que a cegueira impõe, o olho do leitor acompanha as imagens selecionadas pelo narrador. O leitor experimenta, efetivamente, no caso de ele estar aberto, o ponto de vista da cegueira nas duas faces de sua representação. O ponto de vista ideal para ler melhor e para abrir-se para uma nova série de interpretações é o ponto de vista da cegueira que acomete as personagens, a partir do qual é preciso criar um sistema elaborado de percepção.

O mergulho na intimidade da narrativa representa, paradoxalmente, a percepção do modo como ela vai se tecendo. Estar muito envolvido não exclui um distanciamento que permite desfrutar da consciência do envolvimento. À noção de um olhar passivo, receptivo, instrumento que apenas acolhe a visão, sobrepõe-se a de um olhar ativo, determinante, fundador, que projeta a visão. No Ensaio, ao olhar receptivo do leitor que se deixa conduzir pelo narrador, corresponde um olhar ativo que acompanha a condução. Há duas possibilidades de se ler o Ensaio: uma ativa e outra passiva. O olhar do leitor que a narrativa instiga pode ignorar a cegueira, incluindo-se no reino das imagens e, ao mesmo tempo, observá-la, reparando no modo como as imagens são emolduradas por ela. A linguagem da cegueira se apaga e se erige, é veículo e canal para a leitura.

O leitor da livraria percebe-se cego ao mesmo tempo em que julga participar da visão “privilegiada” do narrador e da personagem. Esse leitor, especializado ou não, dependendo de seus modos de ler, não tenciona dedicar-se à complexa tarefa de definir os elementos unificadores do pensamento do narrador. Mediante um breve exame do Ensaio sobre a cegueira, pretende fazer algumas distinções entre aquilo que se tornou problemático neste ensaio tão múltiplo e tão reservado. A obra de Saramago, por jogar com os elementos da

contemporaneidade, que pressupõem narrativas mais abertas, e por negar essa abertura, construindo um texto fechado, não é de modo algum de fácil leitura. O livro é escrito do ponto de vista de um narrador que julga ver, num mundo criado por ele com personagens que ficam cegas, de uma cegueira diferente, que os incapacita em relação a um mundo criado para quem vê, mas que ao mesmo tempo os capacita para lidarem com a cegueira da forma como podem. Por que as personagens cegam em conjunto? É uma pergunta cuja resposta é vasta e depende do contexto em que ela está inserida. O termo cegueira tem uma significação ampla. No Ensaio, o termo tem também várias conotações, como expusemos em “O conceito de cegueira em Saramago, no Ensaio sobre a cegueira”. A cegueira, no livro, é diferente da cegueira comum. Ela é leitosa, e branca, e suas conotações ampliam-se cada vez que uma nova cena é descrita. Portanto, ela desafia o olhar crítico e pede cuidado ao ser interpretada. Se por um lado é uma cegueira diferente, por outro, guarda com a cegueira comum alguns pontos de contato.

Ao ser convidado a acompanhar os momentos em que as personagens cegaram, o leitor é tido como um ser privilegiado, pois não está cego. Ele, contudo, compreende que a verdadeira visão da narrativa é a visão decomposta dos que ficam cegos. Enquanto o leitor faz parceria com o narrador e a personagem que não cega, ele fica desprotegido e sem possibilidade de cegar-se para ver melhor. Na verdade a narrativa trata de duas cegueiras: a que acomete as personagens que cegam e que é semanticamente rica por instituir novas formas de visão, e a cegueira do narrador e da personagem que não cega que é a cegueira dos que julgam ter todo o conhecimento. O leitor opta por uma ou por outra cegueira e não fica isento de cegar-se também. Ele pode até usufruir das duas para consequentemente usufruir de dois tipos de leitura.

O tema do Ensaio é por isso necessariamente limitado ao indivíduo, e à experiência frustrante desse indivíduo no que diz respeito à sua incapacidade de adquirir dimensões universais. O romance tem origem na tensão quixotesca entre o mundo do romance e o da realidade.

A literatura supõe um processo de leitura novo, cujo conjunto teórico, arcabouço dessa leitura, deve renovar-se a cada momento. Ela provoca, por isso, uma necessidade de ser interpretada, justamente, a partir de dados críticos e interpretativos, portanto, conceituais. De fato, como entender um processo de leitura que, nas palavras de Blanchot, se localiza “au dela ou en deçà de la comprehension”, “aquém ou além do ato da compreensão?” (1987, p. 205). Como entender o processo de leitura que a literatura desencadeia? Como encontrar para cada

texto o leitor esperado por ele, o leitor ideal? A ambivalência desta experiência pode ser de alguma forma clarificada pelas declarações do próprio Blanchot:

A leitura não faz nada, não acrescenta nada; deixa ser o que é; é liberdade, mas não liberdade que dá ou captura o ser, antes liberdade que acolhe, consente, diz sim, só pode dizer sim e, no espaço aberto por esse sim, deixa que se afirme a decisão perturbadora da obra, a afirmação de que esta é – e nada mais (1987, p. 202).

Esse encontro silencioso e passivo com a obra parece ser o exato oposto daquilo a que geralmente chamamos interpretação. Difere completamente das polaridades sujeito-objeto implicadas na observação objetiva. Não é dado à obra literária qualquer estatuto objetivo; não tem existência para além da que é constituída pelo ato interior da leitura. Tão pouco lidamos aqui com um chamado ato intersubjetivo ou interpessoal, em que dois sujeitos se empenham num diálogo autoclassificador. Seria mais exato dizer que as duas subjetividades implicadas, a do autor e a do leitor, cooperam no sentido de fazer a outra esquecer a sua identidade própria, e os sujeitos se destroem mutuamente. Blanchot espera de nós que compreendamos o ato da leitura nos termos da obra e não nos termos de um sujeito constitutivo, apesar de cuidadosamente evitar dar à obra um estatuto objetivo. Quer que o leitor “tome a obra por aquilo que é e assim a desembarace de qualquer autor…” (1987, p. 202). A obra tem relação íntima com os sujeitos que estão dos dois lados dela: o autor e o leitor, mas, para Blanchot, é importante que ela se desembarace desses sujeitos. Segue-se que seria absurdo alegar que pela leitura “acrescentamos” qualquer coisa, visto que um tal acréscimo, quer fosse sob a forma de explicação, de juízo ou de opinião, só nos afastaria mais do ponto central do texto. Só podemos ficar sob o fascínio do texto se o deixarmos continuar a ser aquilo que é. Este ato aparentemente passivo, este “nada” que, pela leitura, não devemos acrescentar à obra, é a própria definição de uma linguagem essencialmente interpretativa. Designa um modo positivo de tratar o texto, visível na ênfase positiva que caracteriza a descrição do ato de leitura. A vontade de deixar uma obra ser exatamente aquilo que é requer uma vigilância incansável e ativa. No caso da leitura do Ensaio sobre a cegueira implica mesmo em agir de forma oposta à ação do autor e do narrador que o autor constitui.