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Seguindo o fluxo de minhas reminiscências, lembro-me da experiência de montagem da Cena Fórum. O Teatro Fórum, uma das vertentes do Teatro do Oprimido, é um pequeno espetáculo baseado em fatos reais, no qual personagens oprimidos e opressores entram em conflito de forma objetiva na defesa de seus interesses. No confronto, o oprimido

fracassa e o público é convidado pelo Curinga4 a entrar em cena, substituir o protagonista e

apontar alternativas para o conflito encenado.

A cena que montamos na oficina surgiu de uma votação feita pelos participantes do grupo. A história escolhida e rememorada foi a da Dona Maria5, uma senhora de 50 anos que estava em uma casa lotérica no fim de uma fila para pagar uma conta. Mas, em decorrência de estar na menopausa, Dona Maria sentiu-se muito mal, pois sua pressão repentinamente abaixou e ela por pouco não desmaiou no estabelecimento. Em virtude disso, Dona Maria pediu às pessoas que estavam na fila à sua frente que a deixassem passar adiante para pagar a conta e retornar logo a sua residência. Todos já estavam concordando, quando a funcionária da casa lotérica impediu Dona Maria de passar adiante argumentando que ela não tinha ainda 60 anos, e que naquele estabelecimento ninguém furava fila

Construímos a cena, com os estudantes das Licenciaturas em Educação do Campo, Matemática e Biologia nos papéis protagonista (oprimido), antagonista (opressor) e demais coadjuvantes. Os estudantes do curso de Teatro ficaram responsáveis pelos figurinos, cenários e sonoplastia, feita ao vivo. Do ponto de vista da encenação trabalhamos com uma construção de cena baseada em um processo colaborativo. Essa metodologia é pautada por uma forma de construção cênica dialógica que horizontaliza as relações entre os criadores do espetáculo. Em virtude disso, os improvisos de cena suscitaram entre o grupo debates acalorados, mas também promoveram aprendizados profundos tanto no campo ético-afetivo quanto no campo da interpretação teatral, da construção dramatúrgica e da visualidade cênica.

Do ponto de vista da recepção, podemos dizer que a cena foi polêmica. Ocorreram algumas intervenções feitas diretamente pelo público com apontamentos de solução objetivas para a questão mostrada. Como á exemplo, um rapaz que entrou em cena solicitando que Dona Maria permanece sentada enquanto ele resolveria a questão. E assim ele permaneceu esperando na fila até o seu atendimento. Quando chegou a sua vez, o rapaz argumentou com a funcionária da casa lotérica que o tempo de atendimento agora pertencia a ele, e que, portanto, ele teria o direito de pagar quantas contas tivesse em mãos e, consequentemente, pagar também a conta da Dona Maria.

Outra intervenção foi feita por uma moça que, ao entrar em cena, solicitou imediatamente que a funcionária da casa lotérica chamasse o gerente ou o proprietário do estabelecimento, pois ela queria fazer uma reclamação sobre a falta de delicadeza da

4 Especialista nas técnicas de Teatro do Oprimido, o curinga desempenha um papel fundamental durante as práticas teatrais, lidando com o público e com os aspectos político-culturais e estético-artísticos do evento. 5 Trata-se do relato de um fato real que ocorreu com a mãe de uma das estudantes que estava participando da oficina.

funcionária para com os cidadãos que pagavam as contas neste estabelecimento. Ela argumentou também que, ainda que Dona Maria não tivesse 60 anos e não pudesse entrar em uma fila preferência, tratava-se de uma questão de saúde que requeria o mínimo de solidariedade por parte da funcionária. Não conseguindo contra-argumentar à fala da moça, a funcionária da casa lotérica acabou por permitir que Dona Maria passasse à frente na fila e pagasse a conta.

Mas, houve também uma intervenção cênica desfavorável a Dona Maria que gerou polêmica e que obteve eco por parte de algumas pessoas da plateia. Um homem de meia idade gritou do meio do público que a situação cênica não fazia o menor sentido, e que um conflito dessa natureza não deveria ter sido nem exposto, porque se Dona Maria tem problemas sérios de saúde ela não deveria nem se quer sair de casa, quanto mais pagar contas. A contestação gerou muita polêmica e também suscitou no público falas acaloradas a favor e contra a Dona Maria.

Ao término do debate, que se prorrogou por algum tempo, percebi que nós docentes e discentes ali envolvidos na Cena Fórum não tínhamos apenas contribuído para levantar soluções cênicas para conflito de opressão. Na verdade, tínhamos contribuído muito mais no sentido de levantar questões em torno de a quanto caminhava as relações sociais na cidade.

Sentidos

Em meu ponto de vista, o que é mais curioso no Teatro do Oprimido e na prática com Cena Fórum é que não se trata apenas de uma representação cênica, mas de uma forma de teatralidade que invade a vida numa irrupção do real, e que gera no público empatia e sensibilização para com as alteridades e as opressões mostradas. Mas, o Teatro Fórum não prega uma verdade, ao contrário, deixa vir à tona as muitas vozes e realidades que estão em jogo no conflito de opressão. Há na cena um redimensionamento da visão puramente dualista dominante e dominado. Isso pode ser visto no próprio fórum onde aparecem vozes que se colocam a favor e contra a ação conflituosa.

Podemos perceber, em meio ao debate, as múltiplas variáveis que estão imbricadas nas relações humanas. Sabemos que todas as relações humanas são também relações de poder. Michel Foucault (2005) afirma que as formas de dominação não se referem apenas a um domínio global de um grupo sobre outro, mas também as múltiplas e microformas de poder e dominação que podem funcionar no interior do corpo social.

O poder deve ser analisado como algo que circula e que funciona em cadeia. Não está localizado aqui ou ali, não está nas mãos de alguns. O poder funciona e se exerce em rede. Os indivíduos, em suas malhas, exercem o poder e sofrem sua ação. Cada um de nós é, no fundo, titular de certo poder e, por isso, veicula o poder. Nesse caso, o abuso de poder da funcionária da casa lotérica em relação à Dona Maria é um reflexo dessas microfísicas de circulação do poder que podem mostrar violências físicas e simbólicas submersas nas relações sociais.

Outro interessante aspecto é que a Cena Fórum também possibilita perceber, por meio das diferentes vozes que emergem do conflito, os posicionamentos éticos e políticos que estão inscritas no corpo social e que até momento do conflito estavam camuflados. Então, penso que uma experiência como essa pode ser para os estudantes de Teatro e de Educação do Campo muito rica. Primeiro do ponto de vista estético, pois articula de forma integradora corpo, imagem, som e palavra. E depois, porque possibilita questionar posições, regras e regimes de verdade estabelecidos.

Nesse sentido, talvez seja possível afirmar que a experiência com o Teatro do Oprimido suscita uma pedagogia próxima ao que Boaventura Santos sugere em sua proposta “Por uma Pedagogia do Conflito”.

O conflito serve, antes de tudo, para vulnerabilizar e desestabilizar os modelos epistemológicos dominantes e para olhar o passado através do sofrimento humano que, por via dele e da iniciativa humana a ele referida, foi indescusavelmente causado. Esse olhar produzirá imagens desestabilizadoras suscetíveis de desenvolver nos estudantes e nos professores a capacidade de espanto e de indignação e a vontade de rebeldia e inconformismo (1996, p. 33).

Pensando no que Boaventura nos diz, sinto nas minhas práticas docentes que a metodologia do Teatro do Oprimido tem sido um caminho para unir vida e arte e para trabalhar as opressões que nos incomodam nas relações humanas e na sociedade. Isso porque a estética do oprimido produz imagens cênicas desestabilizadoras que suscitam rebeldias e inconformismos nos atores envolvidos no processo. Mas por outro lado, também quero dizer que mesmo já tendo vivido diversas experiências com Teatro do Oprimido, a cada encontro com a metodologia eu busco extrair um novo sentido para aquela ação. Quero dizer com isso que as nossas práticas docentes não estão prontas e finalizadas, e que podemos nos surpreender com as técnicas e com os procedimentos que já praticamos há muitos anos.

Fragmento IV – Dança, festa, brincadeira e teatro na visita a comunidade Lagoa da Pedra

No dia seguinte ao término da oficina nós (docentes e discentes de Palmas) fizemos um passeio pela cidade. Na verdade, foi um mergulho na cultura arraiana. Entramos em um espaço de entremundo6. Visitamos a casa de um brincante da comunidade, não me recordo agora o nome do senhor, mas lembro-me bem que ele é um fabricante de tambores e caixas, instrumentos usados no cortejo das Festas de São Gonçalo e da Súcia, e que tocou, cantou e dançou para que conhecêssemos algumas das músicas típicas dos dois folguedos.

Depois, acompanhamos o trabalho do Mestre Fumaça7, que há 30 anos ensina capoeira na cidade, e luta para que as histórias e conquistas da negritude não sejam esquecidas pelos moradores mais jovens. Fizemos também uma visita a comunidade Quilombola Lago da Pedra. Lá, além de assistirmos a uma apresentação de Súcia, realizada pelas crianças da escola local, oferecemos à comunidade dois espetáculos de teatro coordenados pela professora Daniela Gomes.

Lembro-me do momento da apresentação da Súcia dentro espaço da escola. Na verdade, posso dizer que escola toda é apenas uma grande sala com um pé direito baixo e com apenas um ventilador. Mas, nem mesmo o forte calor da região foi capaz de conter a nossa festa. Dançamos e cantamos na roda de Súcia junto com as crianças e estabelecemos naquele momento uma troca de afetos em que já não éramos mais professores, estudantes da UFT e moradores da comunidade, mas um grande grupo de brincantes de um festejo popular.

Acabada a Súcia, descemos caminhando pelo espaço da comunidade, e em meio ao sol quente do Tocantins nos reunimos todos de baixo de um pequeno galpão de madeira e palha. Nesse espaço, em meio ao capim dourado e a paisagem retorcida e agreste do cerrado, a professora Daniela Gomes e os estudantes de teatro da UFT do grupo UMPONTODOIS apresentaram dois espetáculos. O primeiro a entrar em cena foi o musical Santimbancos, adaptação da obra de Chico Buarque.

Cantado a capela sem nenhum cenário, mas com um figurino e maquiagem estilizados que transformou os atores em espécies Cartoon(s) vivos, o espetáculo encantou não só as crianças da comunidade, mas todos nós. O olhar dos meninos e meninas para a cena era de estupefação, algo como se os atores na pele dos personagens-animais fossem seres mágicos que pularam do livro, da TV ou do cinema para se materializarem ali ao vivo diante de todos. Foi como se o mundo da fantasia irrompesse o real de forma lúdica, musical e

6 Termo discutido pela pesquisadora e brincante Joana Abreu em seu livro Teatro e culturas populares: diálogos para a formação do ator (2010). A ideia de Entremundo conecta e perpassa reflexões a respeito da cultura popular, da tradição, da brincadeira e da performance.

7 Reginaldo Ferreira de Moura, nascido em Arraias, mestre de capoeira da região e presidente da Associação Cultural Chapada dos Negros.

poética para nos falar, por meio da alegoria, dos conflitos de classe os donos dos meios de produção e os trabalhadores do campo, os operários e os artistas.

O outro espetáculo apresentado, também dentro do universo do Realismo Fantástico, trousse a história de “Rosa Adormecida”. Uma jovem trabalhadora do campo que se apaixona muito cedo belo também jovem rapaz João. Mas infelizmente ambos veem suas vidas serem separadas, destruídas e consumidas pelo trabalho e pela velhice. A imagem da consumação do tempo do amor de Rosa e João é materializada em cena pela figura de uma velha bruxa que atravessa os tempos rondando o casal. A bruxa vai construindo um muro imaginário que se interpõem entre o amor dos dois. Triste, cansada e longe de João, Rosa adormece e morre em meio a um manto de flores. Mas, a força do amor é tão grande que os pensamentos de João vão destruindo o muro erguido pela velha bruxa e desencantando a Rosa adormecida. E, assim, livre do feitiço da bruxa, a jovem Rosa corre ao encontro de seu príncipe João para viver uma vida de felicidade e amor.

Realizada também sem nenhum cenário, utilizando apenas os gestos e ações físicas executadas corporalmente pelos atores, o espetáculo Rosa Adormecida emocionou a todos da plateia. Ao final da apresentação, lembro-me de um morador da comunidade Lagoa da Pedra que, ainda com os olhos marejados, agradeceu ao grupo pelos dois espetáculos apresentados. Ele nos contou que a personagem Rosa fez com que ele se lembrasse de sua falecida mãe e de todos os sonhos que ela não conseguiu realizar em vida. Assim como, também, o fez lembrar-se de outras tantas senhoras que vivem na comunidade e que tiveram (ou mesmo que têm no presente) seus sonhos ceifados pela dureza da vida.

O senhor nos disse: “Muito obrigada por vocês nos oferecerem esse momento de imaginação e de lembrança. Quisera eu que minha mãe pudesse acordar como num sonho mágico e levantar da terra repleta de flores, e assim como a Rosa fosse viver uma vida de felicidade. O teatro deve de ser isso mesmo, de fazer a gente reviver pelos atores a nossa própria vida para poder olhar para ela de outro jeito”.

Sentidos

No momento em que eu ouvi a fala desse senhor, confesso que me emocionei. Contudo, não pensei sobre o que exponho agora. Na verdade, essas são reflexões feitas no ato da lembrança. Hoje, pensando sobre a fala daquele senhor, reflito o quanto a imagem fantasiosa pode suscitar reflexões críticas no olhar do espectador.

Isso porque o espetáculo Rosa Adormecida foi inspirado nos contos de fadas e estruturado dentro do modelo aristotélico de representação dramática8. Isto é, sem narração explícita e sem efeitos de distanciamento do Teatro Épico9. A cena transcorre com os personagens interagindo apenas entre si, sem trocas ou falas diretas com o público. Assim, os atores permanecem todos centrados na própria estrutura da ficção/ilusão que está mostrando.

No entanto, a estrutura do conto de Fada tem essa capacidade de inverter a lógica da fantasia e da catarse10, levando paradoxalmente o público a um distanciamento da realidade mostrada. A cena traz ações e imagens do irreal e do fantástico como se fosse algo cotidiano e natural, mas inversamente à fantasia, a imagem do sofrimento de Rosa assume a função de uma lente de aumento sobre a vida capaz de instigar atitudes de transformação frente à realidade.

E, talvez, em função disso é que o senhor tenha dito: “Quisera eu que minha mãe (todas as mulheres que sofreram) pudesse ressuscitar e levantar da terra repleta de flores, e assim como Rosa, fosse viver uma vida de felicidade”. Ou seja, a imagem de Rosa o fez olhar para a história de sua mãe e, por conseguinte, o fez olhar também para outras mulheres que vivem hoje a sua volta e que (exatamente como a sua mãe) foram (ou estão) sendo consumidas pela dureza de uma vida infeliz. Reflexões como esta possibilitam ver o quanto o universo fantástico pode ser político e o quanto ele possibilita repensar e transformar o curso da vida.

Essa experiência de audiência foi muito significativa para mim. Passei a dar mais atenção aos contos de fada, e refiz também algumas considerações sobre o efeito de distanciamento11 crítico dentro de estrutura dramática. Tudo isso são aprendizados que me ajudam continuamente a repensar, nas minhas aulas, como discutir as relações entre real e irreal, dramático e épico, e entre vida e arte.

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