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Não posso dizer ao certo se chegamos a Arraias, ou se foi à pequena cidade que chegou até nós. Era por volta da hora do almoço, o sol brilhava intensamente sobre as pequenas ruas de paralelepípedo. Assim, fomos recepcionados pela professora Sílvia Tavares3. Em seguida, ela nos conduziu à sede do campus da UFT no centro da cidade, local

onde ocorreu a oficina. Tenho a lembrança de termos entrado rapidamente no edifício que abrigou as atividades artístico-pedagógicas. Depois de algum tempo, passada a correria pelo início da oficina, atentei-me para o fato de que o local era uma espécie de casarão que, embora já bastante modificado, mantinha parcos traços e resquícios longínquos de uma arquitetura portuguesa estilo colonial. Arquitetura esta, também pouco presente em outras casas que avistamos depois.

Após alguns instantes ficamos sabendo durante a apresentação da história da cidade, feita pela professora Sílvia Tavares, que Arraias foi fundada em meados do século XVIII durante o período do Ciclo do Ouro e que, portanto, guarda de fato em suas tradições, traços desse tempo passado. Lembro-me também da professora Silvia contar aos estudantes que estavam participando da oficina um pouco da sua história de vida, de suas lutas, seus trabalhos e conquistas profissionais trilhadas na cidade. Embora no momento do relato da história da cidade imbricada à própria história de vida da professora Silvia, eu não tivesse de

imediato antevisto as considerações que ora exponho, sinto nesse momento o quanto a nossa ida a Arraias já proporcionou por si só encontro(s) com realidade(s).

Isto é, encontro(s) com a fé, com festejos populares e com as tradições artísticas que compõem o rico patrimônio imaterial da cidade e da região do Tocantins. Encontro(s) com diferentes e dispares histórias de vida e memórias advindas das negritudes e das tradições lusitanas que outrora ajudaram a erguer a cidade, e que constituem hoje as etnias miscigenadas que compõem as atuais realidades arraianas. E, por fim, encontros in loco com a história de um processo colonial forjado na exploração das riquezas da terra e no status quo aristocrático que sustentou mecanismos de agenciamento e manutenção de opressões.

Sentidos

A partir dessa experiência, percebo o quanto a oportunidade de aprender e ensinar teatro, por meio de um projeto que proporciona encontro(s) de histórias de vida e de saberes populares, pode ser produtivo na formação de professores. Produtivo, não apenas do ponto de vista do levantamento de materiais cênicos, como também no sentido de estimular a redimensão de procedimentos e métodos de ensino, e de possibilitar novas relações entre arte e vida.

Ao reconstruir o seu percurso de vida, o sujeito realiza uma reflexão quando rememora o seu passado e, a partir disso, toma consciência de si no presente. O caráter formativo do método autobiográfico reside na tomada de consciência das próprias experiências, sejam elas negativas ou positivas, as quais por sua vez possibilitam rever a identidade e certos pontos de atuação docente. Elizeu Souza nos diz sobre o tema que:

Ao longo do seu percurso pessoal, consciente de suas idiossincrasias, o indivíduo constrói sua identidade pessoal mobilizando referentes que estão no coletivo. Mas ao manipular esses referentes de forma pessoal e única, constrói subjetividades, também únicas. Nesse sentido, a abordagem biográfico-narrativa pode auxiliar na compreensão do singular/universal das histórias, memórias institucionais e formadoras dos sujeitos em seus contextos, pois revelam práticas individuais que estão inscritas na densidade da própria história (2007, p. 65).

Podemos perceber então, que em termos metodológicos os aprendizados extraídos por meio da autobiografia e da história de vida (tais como os aprendizados contidos na narrativa da professora Silvia Tavares), guardam em si singularidades e perspectivas que possibilitam evidenciar heranças e memórias, questionar a identidade, a continuidade e a ruptura de projetos de vida, bem como balizar os múltiplos recursos ligados a formação institucional e aquisição de conhecimentos.

Trazendo a questão mais especificamente para o campo do teatro, que é a minha área de formação, percebo hoje o quanto a minha biografia profissional vem revelando sentidos e traços de minha identidade e de minhas escolhas éticas, estéticas e afetivas. Por outro lado, penso também o quanto minha identidade nunca está totalmente formada e o quanto ela vem metamorfoseando-se nesses últimos anos. Sou graduada em interpretação teatral, licenciada em Educação Artística e mestre em Artes Cênicas, mas curiosamente comecei minha vida profissional como professora de Química. Posteriormente, larguei o curso para fazer Artes Cênicas; troquei os átomos, os elétrons, as fórmulas matemáticas e os laboratórios científicos pelas experiências dos laboratórios cênicos. Apesar das diferenças e das particularidades de cada uma das áreas, o que sempre me interessou na prática docente foi a possibilidade de trocas e de descobertas sobre a natureza humana.

Partindo dessa perspectiva de vida e de trabalho, há aproximadamente quinze anos venho atuando no campo do ensino de teatro. Já me debrucei em pesquisas que abarcaram as fronteiras entre linguagens artísticas e os discursos do corpo e da imagem. Atualmente tem me instigado os debates que buscam problematizar as novas teatralidades, o lugar de fala e de atuação do professor/a – encenador/a e as falsas dicotomias entre teoria e prática e arte e vida. Talvez por isso eu tenha buscado na minha formação como artista e professora encontro(s) com uma pluralidade de sentidos e estilos de representação. E, assim, nessa busca por diferentes propostas cênicas é que conheci e passei a praticar as metodologias do Teatro do Oprimido.

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