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2 DO OCASO DO AMOR AO MUNDO: FACETAS MODERNAS DA

2.1 ERA MODERNA E ALIENAÇÃO DO MUNDO: SUBJETIVISMO,

2.1.2 A ciência moderna e a inversão entre o fazer e o contemplar

Não se pode esquecer que René Descartes baseou sua filosofia nas descobertas de Galileu (do mesmo jeito que a ciência deste encontrou naquele os seus pressupostos) e que a mais grave consequência espiritual de tais descobertas, segundo Hannah Arendt86, talvez tenha sido a inversão da ordem hierárquica entre a vita contemplativa e a vita activa ou, mais radical e precisamente, entre o pensar e o agir, com total rechaço da contemplação e com a subjugação da atividade de pensar ao fazer instrumental. Mas, qual a experiência fundamental que está por traz dessa inversão? Voltando à questão, acima reportada, do experimento, que subentende a criação de instrumentos para implementá-lo, vale lembrar que a era moderna, no furor da nova ciência que se estabelece – ciência esta que, diga-se de passagem, não apenas auto intitulou-se

81 Cf. Ibid., p. 14.

82 VE, 2009, p. 66.

83 Em carta à Mary McCarthy, de 8 de agosto de 1969, Arendt faz referência crítica a esse verdadeiro delírio de

negação da realidade do mundo, no qual desembocou o cartesianismo (Cf. ARENDT; MCCARTHY, 1995, p. 233).

84 CH, 2017, p. 258.

85 Cf. OT, 2000, p. 522-3.

uma scienza nuova, mas scienza activa et operativa87 –, vai depositar toda a confiança nos instrumentos técnicos e, assim, acreditará que “o conhecimento e a verdade [...] só podiam ser atingidos mediante a ‘ação’, e não pela contemplação”88.

Na medida em que esse vínculo entre pensar e fazer vai se instituindo, a era moderna, impactada pelo advento de uma racionalidade experimental e matemática a presidir a nova ciência, abolirá a contemplação, afirmando a confiança em uma ciência ativa, assentada na convicção, que predominará na mentalidade do homem moderno, de que “para ter certeza, tinha-se de assegurar-se e, para conhecer, tinha de agir”89. Essa moderna racionalidade científica, que articula matematização e experimentação, no exercício de seu crescente poder e à medida que inaugura a “moderna concepção astrofísica do mundo”90, desvencilhará o homem de todo envolvimento imediato com o seu espaço mundano e terreno. Ao que parece, essa nova ciência trará a marca daquilo que historiadores da ciência, lembra Arendt, haviam identificado como um “véritable retour à l’Archimèd”91. Completa ela, citando Koyré, que tal ciência “substitui o mundo plural do senso comum pelo mundo arquimediano da geometria tornado real, ‘um universo de medição e precisão’”92.

A astrofísica, que se articula desde Galileu, portanto, abrirá mão “de quaisquer outros princípios que não os matemáticos93 e, assim, lança[rá] o homem no espaço geométrico94, assegurando-lhe de que não encontrará nada além de si mesmo, ou seja, nada que não possa ser reduzido às estruturas da sua mente”95. Em outras palavras, reportando ao físico alemão Werner Heisenberg (1901-1976), que em sua mecânica quântica argumenta que o objeto observado não tem existência independente da do sujeito que observa, Arendt dirá: “ao invés de qualidades objetivas encontramos instrumentos e, ao invés da natureza do universo, o homem encontra apenas a si mesmo”96. 87 Cf. Ens – II, 2018, p. 407. 88 CH, 2017, p. 359. 89 Idem, p. 360. 90 Ibid., p. 323. 91 Ens – II, 2018, p. 408.

92 Idem, p. 408 (tradução nossa). No original, leia-se: “‘Modern Science,’ said Alexandre Koyré [...], substitutes

for the mixed world of common sense an Archimedean world of geometry made real, ‘a universe of measurement and precision’”.

93 E, assim, fica, portanto, pontuado, como comenta Alexandre Koyré (2006, p. 89-90), que, “seja como for, não

foi em todo caso Galileu, nem [Giordano] Bruno, e sim Descartes quem clara e distintamente formulou os princípios da nova ciência, seu sonho de reductione scientiae ad mathematicam, e da nova cosmologia, matemática”.

94 Obviamente que, teoricamente falando, refere-se, aqui, a uma geometria submetida a tratamento algébrico e, por

decorrência, à concepção de uma nova linguagem não espacial. Condições que tornaram possível que, em teoria, o ponto arquimediano fosse alcançado (Cf. Ens – II, 2018, p. 408).

95 ALVES NETO, 2009, p. 136.

Desprezo pela contemplação e exaltação da ação subentenderão, por conseguinte, a primazia do ideal do conhecimento matemático, no qual se lida com entidades da mente produzidas por ela mesma. Esse conhecimento é de tal natureza que só pode ser testado, estão convencidos os seus modernos precursores, mediante o agir: articula-se a ciência com a técnica. Arendt analisará que as prerrogativas do homo faber – as atividades de fazer e fabricar – é que serão determinantes fundamentais tanto no campo da atividade científica97 quanto na esfera das novas filosofias políticas.

Na modernidade, progresso científico andará paripasso com desenvolvimento de novas ferramentas e instrumentos, mas será o elemento de produção e de fabricação inerente ao próprio experimento que alçará as atividades próprias do homo faber ao topo da hierarquia das capacidades humanas. Observa Hannah Arendt que o experimento engendra os seus próprios fenômenos de observação e, assim, depende, desde o início, das capacidades produtivas do homem: “O emprego da experimentação para fins de conhecimento já era consequência da convicção de que o homem só pode conhecer aquilo que ele produz”98. Tal convicção forjará uma mudança de ênfase na história da ciência: “da velha questão sobre ‘o quê’ e ‘por que’ algo é para a nova questão de ‘como’ veio a existir”99. O conceito de processo torna-se, aqui, central, assumindo o lugar do conceito de Ser: a natureza tornou-se um processo!100 Em síntese, processa-se o moderno amálgama do produzir e do conhecer, resumido na frase de Kant, citada por Arendt: “Dai-me a matéria e eu construirei com ela um mundo, isto é, dai-me a matéria e eu vos mostrarei como o mundo foi criado a partir dela”101. Produtividade e criatividade, emblemas inerentes ao homo faber, tornam-se os mais altos ideais da era moderna.

Como verifica Hannah Arendt, a eliminação da contemplação do rol das atividades humanas significativas e a ratificação, que se seguiu, da inversão de posições, no interior da vita activa, entre ação e fabricação decorrem da fé do homem no engenho de suas próprias mãos. Essa convicção moderna acabou por produzir uma outra faceta da alienação do mundo,

97 Cf. Idem, 365-78 (§ 42). Segundo analisa Alexandre Koyré (2006, p. 82), a expansão da astronomia, após Galileu

e seu invento do telescópio, “tornou-se de tal modo ligada à evolução de seus instrumentos que todo progresso em um dos domínios implicava e acarretava progresso em outro. Poder-se-ia mesmo dizer que não só a astronomia, mas também a ciência como tal, entraram, com a invenção de Galileu, em uma nova fase de seu desenvolvimento, a fase que poderíamos chamar de instrumental”.

98 CH, 2017, p. 366.

99 Idem.

100 Cf. Ibid., p. 368. Vale destacar que a era moderna dará uma ênfase completamente nova ao processo de

produção/fabricação implementado pelo homo faber. Se, para este, o processo de produção era apenas um meio de atingir um fim; agora, o processo torna-se o próprio fim (Cf. CH, 2017, p. 368-9). Nessa linha, “o cientista criava apenas para conhecer, não para produzir coisas, e o produto era [...] um [mero] efeito colateral” (Idem, p. 369). Este conceito de processo será retomado adiante.

uma vez que a abolição da contemplação não se traduziu num novo ou renovado interesse pelo mundo, isto é, “não alçou a ação política à posição mais elevada na hierarquia das atividades humanas”102. Como não se deu uma subordinação da vita contemplativa em favor do incremento ou do reconhecimento da vida pública, a era moderna, longe de incitar a livre ação política, tornou-se refém do febril entusiasmo com a capacidade humana de fazer e de fabricar. Dessa forma, Arendt constata que a sintonia verificada entre mentalidade moderna e reflexão filosófica leva ao entendimento de que a vitória do homo faber não poderia ficar restrita ao âmbito do emprego de novos métodos nas ciências naturais, ao experimento e à matematização da pesquisa científica103. As prerrogativas do homo faber, com a sua instrumental categoria meios-fim, servirão também “como princípio do agir [doing] no domínio dos assuntos humanos”104. E aí, indubitavelmente, Hobbes será referência fundamental desse processo no âmbito da filosofia política moderna. Ele introduzirá os novos conceitos das atividades de produzir e de calcular na esfera dos assuntos humanos. Em quais tentações cai o racionalismo moderno, que encontra em Hobbes um representante fiel? Diagnosticará Hannah Arendt: agir nos moldes da atividade de fabricação105; raciocinar nos moldes do cálculo de consequências106. Numa leitura original da filosofia política de Hobbes, na Parte II de Origens do totalitarismo107, a teórica da política o identificará como “o verdadeiro filósofo da burguesia”108 e observará que o Leviatã expôs a única teoria política segundo a qual o Estado se baseia, em verdade, nos interesses individuais, de modo que “o interesse privado e o interesse público são a mesma coisa”109.

Em sua obra, o filósofo contratualista inglês pinta um quadro quase completo do homem burguês, para o qual “a razão [...] é nada mais que cálculo”110 e que, por isso, sempre age a partir da articulação de uma racionalidade estratégico-instrumental. Em síntese, no dizer de Arendt:

Seu Leviathan não se perdia em especulações ociosas a respeito de novos princípios políticos nem da velha busca da razão que governa a comunidade dos homens; era estritamente um “cálculo das consequências”, que advém da ascensão de uma nova

102 ALVES NETO, 2009, p. 133.

103 Cf. CH, 2017, p. 369-70.

104 Idem, p. 372.

105 Várias são as passagens, do texto de Hobbes, onde se encontra a articulação de um proceder pela instrumental

categoria meios-fim. A título de exemplo, cf. HOBBES, 1997, p. 54; 99.

106 Cf. HOBBES, 1997, p. 51.

107 Cf. OT, 2000, p. 164-176 (“O poder e a burguesia”).

108 Idem, p. 175.

109 Ibid., p. 169.

classe na sociedade, cuja existência está essencialmente ligada à propriedade como

um mecanismo dinâmico produtor de mais propriedade111.

A nova perspectiva que surge com esta nova classe, que incorpora as prerrogativas do homo faber e cujo perfil Hobbes, ainda nos preâmbulos da era moderna, foi capaz de intuir, implementará um fazer político112 no qual não há lugar para o inesperado, para a irrupção do novo ou de um novo começo. Em síntese, não há lugar para “o próprio evento, uma vez que [...] constitui a própria textura da realidade no domínio dos assuntos humanos”113. Quando se subordina a ação política aos princípios da fabricação e à sua categoria meios-fim, almejando dar, a esta, previsibilidade e confiabilidade, antes a aniquila, dando lugar a um fazer utilitário incapaz de edificar um mundo novo.

Mas, tal intuição não é, propriamente, criação moderna. Ela navega em águas mais profundas da tradição do pensamento político ocidental que reportam a Platão e que chegou à era moderna, fazendo da ação uma modalidade de fabricação, reduzindo-a a um fazer enquadrado pela categoria meios-fim e racionalizado, portanto, em termos de instrumentalidade114. O percurso de tal tradição trouxe em seu bojo, como aqui se tem exposto, uma das mais graves consequências tanto para o mundo quanto para a condição humana na modernidade: a inversão da ordem hierárquica entre a vita contemplativa e a vita activa, que mais propriamente se configurou, no limiar da era moderna, como uma inversão entre o fazer e o contemplar, resultando, em verdade, na eliminação da contemplação do âmbito das atividades humanas significativas, uma vez que a mesma “tornou-se completamente sem sentido”115, visto que não havia mais lugar para o exercício de acolhida da verdade, só de sua fabricação. No

111 Idem, p. 174.

112 “A compreensão burguesa da política como sendo um meio desconfortavelmente necessário à regulação da vida

social e à proteção do processo de aquisição reflete a progressiva privatização dos negócios públicos e o acentuado declínio do espaço público na era moderna” (CORREIA, 2014, p. 8). Arendt diagnostica com perfeição quando afirma que “a vida pública assume um aspecto enganador quando aparenta constituir a totalidade dos interesses privados, como se esses interesses pudessem criar uma qualidade nova pelo simples fato de serem somados” (OT, 2000, p. 175).

113 CH, 2017, p. 373.

114 Apesar de se encontrar em Platão e em Aristóteles a suspeita “de que a contemplação e a fabricação (theδria e

poēsis) têm estreita afinidade” (CH, 2017, p. 374), há, na filosofia grega, a compreensão de que a admiração muda

do filósofo a contemplar as verdades imutáveis e intuí-las pela pura meditação guarda diferenças em relação à mirada contemplativa do artífice que vê, com os olhos da mente, o modelo a partir do qual fabrica o produto. No entanto, no âmbito da aplicabilidade, esse debate que pauta sobre a diferença entre o modelo ser imitado ou poder ser criado foi secundarizado e predominará a proposição de que a comunidade política fosse governada ao modo da fabricação. Assim, “o conceito de ‘política’ [que vigorará] na mentalidade pré-moderna [...] baseava-se na confiança de que seria possível a fabricação da comunidade política através das ideias e das verdades imutáveis enquanto normas confiáveis para a orientação da ação, medidas permanentes para a neutralização dos riscos da pluralidade e critérios estáveis para a validade dos juízos” (ALVES NETO, 2009, p. 132). Se os gregos foram comedidos em elevar a fabricação a um nível mais elevado, no âmbito dos assuntos humanos, que a ação, a mentalidade predominante na era moderna não terá pruridos em “declarar de modo explícito a fabricação como hierarquicamente superior às ‘ociosas’ ações e opiniões que constituíam a esfera política” (Idem).

desdobrar dos acontecimentos, já num contexto de derrocada do homo faber, a ser abordado adiante, tal inversão alcançará – num remake de uma herança cristã que, em verdade, também marcará a era moderna desde os seus inícios – a formatação de uma inversão entre a vida e o mundo, o que aprofundará, ainda mais, a experiência de alienação do mundo do homem moderno em sua rebelião contra a mundanidade da existência humana e em sua negação do mundo comum ou de sua parte pública116.