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A racionalidade tecnocientífica e a representação técnico-utilitária do

2 DO OCASO DO AMOR AO MUNDO: FACETAS MODERNAS DA

2.1 ERA MODERNA E ALIENAÇÃO DO MUNDO: SUBJETIVISMO,

2.1.3 A racionalidade tecnocientífica e a representação técnico-utilitária do

Antes de seguir adiante nessa abordagem das repercussões, no domínio dos assuntos humanos, da exaltação das prerrogativas do homo faber e seu afã instrumentalizador, vale pontuar, mesmo que rapidamente, as correlações entre a redução das coisas e da própria realidade a objetos da representação da consciência subjetiva, inerente à metafísica cartesiana que concebe a verdade como certeza da representação matemática do mundo, e a configuração de uma racionalidade tecnocientífica e sua característica resistência à experiência do pensamento.

Uma nova visão de mundo está a emergir na aurora da era moderna, e esta é captada pelos cientistas e filósofos de então, entre os quais merece destaque Francis Bacon (1561-1626). Pressupondo que, para este, conhecimento e poder se equivalem e considerando que aquilo que na filosofia contemplativa é causa, na ciência prática será regra117, verifica-se, por conseguinte, que “de acordo com essa concepção, pensar o mundo significa acumular poder sobre as coisas mediante o conhecimento das regras que governam o comportamento dos fenômenos”118. Essa substituição, implementada por Bacon, da via contemplativa por um método capaz de empreender regras preconizará uma nova racionalidade que se caracterizará pela inseparabilidade entre pensar e agir. Nesse contexto em que os resultados do saber são compreendidos como meios de intervenção na realidade e não mais como fins em si mesmos, corrobora-se a tese baconiana da indiscernibilidade entre conhecimento e poder.

Concebendo a ciência como um instrumento a serviço do homem através do qual este colocará a natureza a seu serviço, Bacon traçará, ainda “no alvorecer da modernidade, a rota de um processo de civilização pautado pela conjunção entre ciência e técnica”119. Tal ideal civilizatório será retratado, pelo filósofo, na forma de uma utopia tecnocientífica, em sua

116 Cf. Idem, p. 3; 245.

117 Cf. BACON, 2002, p. 11, aforismo III.

118 SILVA, 2010, p. 51.

inacabada obra intitulada Nova Atlântida, publicada, postumamente, em 1627. Nessa utopia, a ciência é apresentada como uma “luta árdua e diária com a natureza”120 em vista da ampliação dos poderes do homem nos mais diversos campos.

Desde então, “o domínio da natureza pelo homem tornou-se o programa central da modernidade ocidental”121, que projetará a construção de “um mundo finalmente domesticado pela ciência e pela técnica”122. Um mundo sem espaço para o indeterminado, a contingência, o inesperado... sem lugar para o acaso! Este – o acaso – representará, como se verá adiante, o maior de todos os perigos para uma racionalidade tecnocientífica e, consequentemente, para as visões de mundo que nela se assentam123. Torna-se, também por essa forma, compreensível a aposta que a era moderna fará, desde seu alvorecer, na matemática, de cujos avanços “nasceu a crença de que é possível extirpar o acaso para sempre de nossas vidas”124.

Assim, pois, caberá a Descartes a função de recolocar, em termos mais gerais, a perspectiva baconiana, articulando, para ela, uma justificativa lógica e metafísica. E, desse modo, os fundamentos dessa nova cosmovisão foram estabelecidos pelo filósofo francês, mediante a “afirmação de que a primazia da subjetividade, por via de um conhecimento representacional metodicamente exercido, seria a única garantia da verdade, tanto em relação ao objeto quanto ao que concerne ao sujeito”125. A metafísica cartesiana, em sua determinação ontológica, que reduz as coisas e a própria realidade a objetos da representação da consciência subjetiva e concebe a verdade como certeza da representação matemática do mundo, será decisiva, como se buscou demonstrar nas páginas anteriores, para a compreensão do fenômeno moderno do pensamento representacional-calculador.

A partir dessa nova fundamentação ontológica, abre-se caminho tanto para o estabelecimento de uma outra relação entre o homem, o mundo e a natureza quanto para a articulação de uma outra forma de intervenção deste homem na realidade que o circunda. Mediada por procedimentos tecnocientíficos que reduzem a realidade a fórmulas matemáticas,

120 ANDRADE, 1997, p. 18.

121 BIGNOTTO, 2013, 183.

122 Idem, p. 186.

123 Às utopias tecnocientíficas, como a de Francis Bacon, opuseram-se, criticamente, várias e fenomenais distopias.

Newton Bignotto (2013, p. 171-89), em seu belo texto “O medo do acaso”, articula a sua abordagem a partir da análise de uma dessas ficções distópicas. Trata-se da obra Nós (Trad. Gabriela Soares. São Paulo: Aleph, 2017), do escritor russo Yevgeny Zamyatin (1884-1937), escrita entre 1920 e 1921, mas que, proibida por décadas, só foi editada, na União Soviética, depois da Perestroika. A esta sátira futurista distópica pode-se acrescentar outras duas distopias, entre outras, que – resguardadas as controvérsias – se inspiraram no livro do romancista russo: Admirável

mundo novo (1930), de Aldous Huxley e 1984 (1948), de George Orwell. Tratam-se de autores que, a exemplo de

Zamyatin, “se preocuparam em imaginar o futuro que se desenhava nas sociedades contemporâneas afetadas tanto pelos eventos revolucionários como pelo desenvolvimento das ciências e das técnicas” (Idem, p. 172).

124 BIGNOTTO, 2013, p. 183.

essa relação entre o homem, o mundo e a natureza não será mais sensorial. Além disso, a sua intervenção ativa nesse mundo e nessa natureza orientar-se-á pelos esquematismos lógicos das representações intelectuais, de inspiração cartesiana, e se implementará mediante a fabricação de novos aparatos tecnocientíficos, aos moldes das contribuições de Galileu, viabilizadores de novas experiências que redimensionam as possibilidades dessa representação e levam, consequentemente, à subjugação desse mundo e dessa natureza. Configurar-se-á, pelos caminhos dessa ontologia moderna, que pressupõe a correspondência entre realidade e pensamento, uma nova concepção de sabedoria, na qual é possível identificar a relevância do poder reivindicado pelo sujeito. Nessa nova compreensão – e para além das pressuposições metafísicas cartesianas –, a reciprocidade entre saber e poder manifestar-se-á, notadamente, “na destinação técnica da racionalidade que opera no conhecimento e nos demais aspectos da organização da vida”126.

Para o que interessa aqui, vale salientar que, sob a diretriz de uma perspectiva instrumental, a representação da realidade através da inteligência127 produzirá uma imagem técnica do mundo, que se reflete na posição do sujeito. O conhecimento que daí deriva terá uma índole restritiva uma vez que submete e, consequentemente, reduz a realidade a uma estrutura categorial que visa, por sua vez, uma representação pragmática da mesma. Isso explicaria, pelo menos em parte, primeiro, o triunfo de uma ciência estreitamente associada à técnica; segundo, a força desse fenômeno no curso da sociedade moderna. O próprio Heidegger, em seu opúsculo A questão da técnica, reconhecerá que, na modernidade, “a presença da tecnociência responde a uma necessidade profundamente inscrita na conformação de um mundo que o homem [a um só tempo, sujeito de conhecimento e agente de transformação] habita e explora”128. Isso decorre, como já aludido, da mudança de compreensão que se dá em relação ao significado do conhecimento e se traduz, muito claramente, na modificação da própria noção de teoria, cunhada pelos gregos, herdada pelos latinos e expressa na palavra contemplação.

A racionalidade tecnocientífica que, por desdobramento, se estabelecerá na modernidade, cumprirá o papel de levar ao limite o processo de desencantamento do mundo, que se verifica, inicialmente, no contexto do Renascimento, e no qual se dá, na ótica weberiana, uma reconfiguração da relação do homem com a natureza, despindo-a de quaisquer traços de sacralidade. Por meio do uso da técnica, o homem moderno tem interferido tanto na natureza,

126 Idem, p. 53.

127 Bergsonianamente falando, inteligência diz respeito a um modo pragmático de relação da consciência com a

realidade (Cf. Ibid., p. 53-4).

em vista de seus interesses que, ao relacionar-se com a mesma de forma tão objetal, experimenta tão somente a sua própria presença ativa. A efetivação do domínio do homem moderno sobre as coisas, possibilitada pela tecnociência, parece, então, levar a uma indistinção crescente entre homem e natureza. Mas, em verdade, ao negar a natureza em sua outridade, ou seja, como esse outro frente ao qual se coloca, e, ao se entregar à exterioridade da técnica, que pautará essa relação enquanto exercício de domínio, o homem moderno amargará a negação do próprio ser129.

Esse homem, estando totalmente preso ao que faz, no sentido dessa exterioridade da técnica, perderá a relação consigo mesmo e, por decorrência, nem sequer se verá como responsável pelo que é solicitado a fazer. Essa relação de negação e de exterioridade que se interpõe entre ele e a natureza, reforçará, no ser humano, uma incompreensão que o persegue e que, em última instância, reporta a um paradoxo, concernente à estatura do homem, que assombrou a ciência moderna. Esclarece Arendt:

[...] o paradoxo do desenvolvimento da ciência moderna parece ser que, embora tenha aumentado enormemente o poder do homem, resultou, ao mesmo tempo, numa diminuição não menos decisiva do respeito próprio do homem. O homem moderno, em sua busca por conhecimento e verdade, e pela pura força da abstração, primeiro olhou para a terra e para os processos naturais de um ponto no universo, confiando em seus poderes mentais, ao invés de em sua experiência sensorial. Assim, ele adquiriu a capacidade de lidar com a natureza como se ele próprio não fosse mais

uma criatura terrestre, e começou a liberar esses processos energéticos, que

normalmente acontecem apenas no sol; a iniciar, em tubos de ensaio, processos de evolução cósmica; e, a construir máquinas para produção e controle de energias desconhecidas no âmbito doméstico da natureza terrestre. No entanto, quando ele, agora, olhou para baixo, a partir deste ponto, para o que estava acontecendo na terra e às várias atividades dos homens, incluindo as suas próprias, essas atividades não podiam deixar de aparecer, para ele, como se fossem o que os behavioristas chamam de “comportamento manifesto”, que pode ser estudado com os mesmos métodos

usados para estudar o comportamento de ratos e macacos130.

Numa linha de continuidade com a reflexão anterior, é possível estabelecer, aqui, aproximações com “a moderna alienação do mundo, em sua dupla fuga da Terra para o universo

129 Cf. HEIDEGGER, 2007, p. 389-90.

130 Ens – II, 2018, p. 412 (tradução nossa, destaque nosso). No original, leia-se: “[...] the paradoxo of the

development of modern Science seems to be that while it enhanced enormously the power of man, it resulted at the same time in a no less decisive diminishment of man’s self-respect. Modern man in his search for knowledge and truth, and by sheer force of abstraction, first looked upon the earth and natural processes from a point in the universe, trusting his mental powers rather than his sense experience. He thus acquired the ability to handle nature as though he himself were no longer an earthbound creature, and he began to release those energy processes that ordinarily go on only in the sun; to initiate in a test tube processes of cosmic evolution; and to build machines for the production and control of energies unknow in the household of nature. Yet when he now looked down from this point upon what was going on on earth and upon the various activities of men, including his own, these activities could not but appear to him as though they were what the behaviorists call ‘overt behavior,’ which can be studied with the same methods used to study the behavior of rats and apes”.

e do mundo para o si-mesmo [self]”131 – que Hannah Arendt, no Prólogo d’A condição humana, promete investigar –, conforme esclarece André Duarte:

O desejo de abandonar a Terra é a etapa final de um longo processo de crescente alienação do homem em relação ao mundo e à natureza, manifesto, também, na crescente artificialização tecnocientífica da natureza e de todas as formas de vida, iniciado com a revolução científica do século XVII. Para Arendt, o projeto tecnocientífico da fabricação de todas as formas de vida rompe o vínculo entre natureza e vida, destruindo, assim, a possibilidade de se distinguir entre vida e

artifício, entre natureza e mundo132.

Verifica-se, portanto, que a racionalidade tecnocientífica, em sua relação calculada e calculável com a natureza, que permitiu a realização do ideal baconiano, levou, simultaneamente, ao velamento da verdade da natureza e da verdade do próprio homem. Estes – homem e natureza –, retraídos em seu manifestar ou em sua fenomenalidade inerente, ficam reféns das mutilações promovidas pelos esquematismos de uma tal racionalidade em seu paranoico “desejo de converter o desconhecido em algo previsível e controlável”133. Essa racionalidade – que expressa e, ao mesmo tempo é expressão de uma correlação, anuladora das diferenças, entre conhecimento e poder e que, em seus procedimentos, identifica ciência e técnica – será responsável pela articulação de uma representação técnico-utilitária do mundo.

Essa representação, em seu processar, reduzirá a natureza a um mero reservatório de matéria prima à disposição da inventividade tecnofabril do ser humano e, no contraponto, mas não contraditoriamente, também restringirá o próprio homem a sujeito da apropriação tecnicamente elaborada dos recursos naturais. Além de tais reducionismos, uma tal representação técnica do mundo acarretará outras mutilações, igualmente preocupantes: com o empobrecimento da dimensão do fazer humano, perde-se a compreensão do papel da própria técnica no processo desse fazer, posto que um meio traveste-se de fim em si mesmo; do mais, a própria ciência, tornando-se refém dessa representação, apequenar-se-á em sua concepção de cientificidade, em sua abordagem metodológica da pesquisa e, por fim, em seu próprio entendimento de realidade. Essa conjunção – idealizada por Bacon e que, desde Galileu, se engendrou – entre ciência e técnica, em que a própria solidez da ciência tornou-se, cada vez mais, dependente do desenvolvimento tecnológico, acabou por gerar uma situação assaz controversa: a ciência moderna, em sua busca da “realidade verdadeira” – que se constitui de “dados que, estritamente falando, não ‘aparecem’ em nada, nem em nosso mundo cotidiano nem mesmo no laboratório. Eles se tornam conhecidos apenas porque afetam, de certas

131 CH, 2017, p. 7.

132 DUARTE, 2010, p. 48-9.

maneiras, nossos instrumentos de medição”134 –, desembocou na perda da própria objetividade do mundo natural135.

Aprofundando sua análise, Hannah Arendt, que se inquietará com a questão que indaga acerca da existência de um limite definido para purgar a ciência de todos os elementos antropológicos, comentará sobre a situação paradoxal em que se encontra o cientista moderno:

O problema é apenas que o descobridor da “realidade verdadeira” por trás das meras aparências permanece ligado a um mundo de aparências; ele não pode pensar em termos do que ele concebe, agora, como “realidade verdadeira”; ele não pode comunicar isso em linguagem comum, e sua própria vida permanece ligada a um conceito de tempo que, demonstravelmente, não pertence à “realidade verdadeira”, mas é (como o famoso “paradoxo dos gêmeos” de Einstein, baseado no “paradoxo do

relógio” estabelecido) mera aparência136.

Por conseguinte, a racionalidade tecnocientífica e sua correlata representação técnico- utilitária do mundo, enquanto são mediadas pelas formulações matemáticas e pelos aparatos técnicos complexos inerentes à tecnociência, colocam-se resistentes à experiência do pensamento, que se implementa como esse esforço de articular uma compreensibilidade significativa a seu respeito. Hannah Arendt, ainda no prólogo d’A condição humana, alertará para o fosso que se aprofunda sempre mais entre a linguagem na qual, normalmente, se pensa e se exprime e as formulações científico-matemáticas pelas quais se articula a moderna visão tecnocientífica do mundo137. Preocupada com esse crescente abismo “entre as capacidades fabricantes do homem no âmbito tecnocientífico e sua capacidade de falar, pensar, julgar e opinar de maneira significativa a respeito daquilo que ele é capaz de fazer”138, a pensadora advertirá para as implicações, inclusive políticas, de uma apartação completa entre conhecimento tecnocientífico e pensamento, que, no limite, reduziria os seres humanos a “criaturas desprovidas de pensamento à mercê de qualquer engenhoca tecnicamente possível, por mais mortífera que seja”139.

134 Ens – II, 2018, p. 414 (tradução nossa). No original, leia-se: “[...] data which, strictly speaking, do not ‘appear’

at all, neither in our everyday world nor even in the laboratory. They make themselves known only because they affect our measuring instruments in certain ways”.

135 Essa situação em que se encontra a ciência moderna é, segundo Arendt, melhor ilustrada pela descoberta de

Heisenberg do princípio da incerteza e pelas conclusões às quais ele mesmo chegou a partir deste (Cf. EPF, 2016, p. 339-40).

136 Ens – II, 2018, p. 414-5 (tradução nossa, destaque da autora). No original, leia-se: “The trouble is only that the

discoverer of ‘true reality’ behind mere appearances remains bound to a world of appearances; he cannot think in terms of what he now conceives of as ‘true reality’; he cannot comunicate it in language, and his own life remains bound to a time concept that demonstrably does not belong to ‘true reality,’ but is (as Einstein’s famous ‘twin paradox,’ based on the ‘clock paradox’ established) mere appearance”.

137 Cf. CH, 2017, p. 3.

138 DUARTE, 2010, p. 51.

Essa situação perplexa, graças a uma ciência que se adentra, cada vez mais, na era da automação, está colocada no horizonte do mundo moderno. Mas, como destaca Hannah Arendt, mais preocupante que o avanço das máquinas é a exaltação de uma verdade científica que, em sua linguagem formal, apresenta-se dotada de uma limpidez tal que elimina, em sua univocidade, toda abertura que permite a variedade de interpretações ou, em outros termos, o exercício da compreensibilidade inerente ao discurso. E, lembrará a pensadora, num mundo em que o discurso perdeu seu poder ou que a relevância do mesmo é melindrada, “as questões tornam-se políticas por definição, pois é o discurso que faz do homem um ser político”140.

A crescente dicotomia que se estabeleceu “entre a capacidade da mente humana para a compreensão e as leis universais que os homens podem descobrir e manusear sem uma verdadeira compreensão”141, apartou, progressivamente da possibilidade do exercício hermenêutico-filosófico a verdade científica. Esta, em sua configuração físico-matemática, experimental e especializada, instituída pela ciência moderna, “não precisa sequer ser compreensível ou adequada à razão humana”142. Desse modo, incorporando essa apartação entre inteligência e compreensão, o cientista, de fato, “não pode se permitir indagar: que consequências resultarão das minhas investigações para a estatura (ou, por isso, para o futuro) do homem?”143 Emancipando-se das preocupações humanísticas, esse cientista, que renunciara

[...] ao bom-senso, através do qual coordenamos a percepção de nossos cinco sentidos na consciência total da realidade [...] [,] foi levado também a renunciar à linguagem normal, que mesmo em seus refinamentos conceituais mais elaborados continua

inextricavelmente ligada ao mundo dos sentidos e a nosso bom-senso144.

Atento ao que seria o problema principal para Hannah Arendt, que é sempre de natureza ético-política, há que se indagar: qual seria o objetivo da ciência moderna, esta ciência que despiu a natureza de todas as suas significações qualitativas e a reduziu ao conjunto dos fenômenos regidos por relações determinísticas e subordinados aos esquematismos da inteligibilidade matemática, e, de quebra, eliminou de sua linguagem formal todo o simbolismo da linguagem cotidiana...?! Esclarece, crítica e ironicamente, a pensadora:

O objetivo da Ciência moderna, que eventualmente levou-nos literalmente à lua, não é mais “aumentar e ordenar” as experiências humanas (como Niels Bohr, ainda ligado

a um vocabulário que sua obra145 ajudara a tornar obsoleto, o descreveu); é muito mais

140 Idem. 141 Ibid., p. 335. 142 CH, 2017, p. 360. 143 EPF, 2016, p. 327. 144 Ibidem.

145 Arendt faz referência, aqui, à obra Física atômica e conhecimento humano: ensaios 1932-1957, cuja primeira

descobrir o que jaz por detrás dos fenômenos naturais tais como se revelam aos

sentidos e à mente do homem146.

A um só golpe, o advento da ciência moderna e a racionalidade lógico-matemática que a preside excluem, do horizonte de suas atividades, a qualidade sensível, o homem – que, de acordo a visão predominante, “não é mais do que um caso especial da vida orgânica”147 – e seu ambiente terreno imediato, a Terra, que “nada mais [é] que um caso limítrofe especial de leis absolutas e universais”148. Eis, pois, o que jaz por detrás de um tal empreendimento...! Daí que, voltando ao ponto que interessa a Arendt, o problema principal, na cena da tecnocientificidade moderna, “consiste em o homem poder jazer, e com êxito, o que ele não pode compreender e expressar na linguagem humana cotidiana”149.

A nova ciência da astrofísica, que desde Galileu se engendra, implementou um modo de investigar a natureza e sobre ela atuar, calculando e reproduzindo artificialmente os seus fenômenos, sempre da perspectiva do universo infinito e geométrico, pressupondo que nada do que ocorre na natureza é tido como mero evento terreno150. Foi, então, mediante tal abstração – que exige um forte apelo ao poder de imaginação, que situa a mente humana acima do campo