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2 DO OCASO DO AMOR AO MUNDO: FACETAS MODERNAS DA

2.2 MUNDO MODERNO E ALIENAÇÃO DO MUNDO: VITALISMO,

2.2.1 O animal laborans e a inversão entre a vida e o mundo

A vitória do animal laborans é tópico imprescindível da reflexão arendtiana sobre a política na modernidade. Nos escritos de Hannah Arendt, a começar pelo texto “Ideologia e terror”, de 1953, que foi incorporado à segunda edição, de 1958, de Origens do totalitarismo, a expressão animal laborans tem sido compreendida “como a dimensão fundamental da existência condicionada pela vida; como produto da sociedade atomizada; como mentalidade e ‘modo de vida’ extraídos das condições do mero viver”207. Assim, em seu esforço de compreender, especialmente, a relação entre economia e política na modernidade, Arendt observará que, se no início da era moderna “o homem era primariamente concebido como homo faber [...], no século XIX, o homem foi interpretado como um animal laborans cujo metabolismo com a natureza geraria a mais alta produtividade de que a vida humana é capaz”208.

Esse é o contexto em que o homo faber e sua capacidade de reificação foram atropelados – mediante o incremento da industrialização e da automação, processos pelos quais a fabricação assume o caráter de trabalho (labor) – pela dinâmica da viciosa circularidade metabólica entre produção e consumo, inerente a uma atividade que se move por nada mais que a compulsiva necessidade de manutenção do processo vital. Dessa forma, da perspectiva reificadora, simbolizada pela figura do homo faber, de constituição de um mundo, caminha-se para a subordinação da existência humana ao ritmo da natureza, este potencializado pelo paradoxal crescimento não-natural do natural209. Em outros termos, constitui-se um modo de vida artificialmente natural em que os “apetites se tornam mais sofisticados, de modo que o consumo já não se restringe às necessidades da vida, mas, ao contrário, concentra-se principalmente nas superfluidades da vida”210. Além disso, completa Arendt, “comporta o grave perigo de que afinal nenhum objeto do mundo esteja a salvo do consumo e da aniquilação por meio do consumo”211.

Em suma, “os ideais da permanência, da estabilidade e da durabilidade, do homo faber, foram vencidos pelo ideal de abundância que o animal laborans compreende como felicidade”212. Portanto, do materialismo mecanicista, que deu os contornos do universo fabril

207 CORREIA, 2014, p. 85. 208 EPF, 2016, p. 95. 209 Cf. CH, 2017, p. 58. 210 Idem, p. 165. 211 Ibidem.

212 CORREIA, op. cit., p. 97. Segundo Arendt, a demanda por felicidade, que não se encontra no artífice nem no

homem de ação, é específica do animal laborans (Cf. CH, 2017, p. 165). Este identificará a felicidade – a considerar o cálculo hedonista que articula o máximo de prazer com o mínimo de sofrimento ou sacrifício – com o conforto viabilizado pela ampliação do consumo, tornado possível com o incremento da produção.

do artífice, caminhou-se para o naturalismo vitalista que emoldurará o modo de vida que se institui com o animal laborans. Convém lembrar que Hannah Arendt via o processo de automação da produção, acima reportado, com preocupação, não tanto porque este promoveria

[...] a tão deplorada mecanização e artificialização da vida natural [...] [mas, especialmente, porque] aumentaria e intensificaria enormemente o ritmo natural da vida, mas [isso] não a mudaria, apenas tornaria mais mortal a principal característica

da vida em relação ao mundo, que é a de minar a durabilidade213.

Esse modo de vida do animal laborans, que ganha fôlego na reta final da era moderna, conecta-se com os desdobramentos da ciência e da filosofia modernas que, no século XVII, plantaram suas raízes. Nesse sentido, reportando ao que se discutiu no capítulo anterior, vale pontuar que, a considerar o marco procedimental adotado pela astrofísica moderna, ao se divisar a humanidade desde o prisma da universalidade, perde-se de vista o referencial da vida individual e, assim, passa-se a ver o homem tão somente como membro de uma espécie, o que inviabiliza todo empenho que procura significar a vida de cada um, a partir de suas histórias singulares. Do mesmo modo, pelos caminhos da introspecção cartesiana, pela qual se inicia a filosofia moderna, o recuo do homem para dentro de si mesmo e a concomitante ruptura com a realidade concorrem para a exaltação da vida em seu sentido estritamente biológico214, em detrimento da vida política, que se dá, por sua vez, na compartilha com os outros de um mundo comum. Quanto mais absorto em si, menor a chance de vislumbrar-se em sua própria singularidade e maior a possibilidade de ficar restrito à genérica identidade de membro de uma espécie; quanto mais focado nas urgências ditadas pelo metabolismo biológico do processo vital, mais se perde a referência do mundo comum: a perda de si e a perda do mundo são concomitantes.

Nessa mesma linha de conexão com a reflexão anteriormente feita, a vitória do animal laborans, trazendo o trabalho para o topo da hierarquia das capacidades humanas215, será a tradução visível da guinada operada, no campo da produção, com a ascendência do conceito de

213 CH, 2017, p. 163.

214 Cf. SR, 2013, p. 92-3.

215 Em A condição humana, Arendt dedica-se a explicitar e analisar a distinção, no âmbito da vita activa, das

atividades do trabalho (labor), da fabricação (work) e da ação (action): se antes do desencantamento de Platão em relação à vida na polis, por volta do julgamento e da condenação de Sócrates, a ação – atividade política que ratifica a certeza de que “a pluralidade é a lei da Terra” (VE, 2009, p. 35) – era a atividade a ocupar o topo da hierarquia da vita activa; a vitória do animal laborans é a tradução da elevação do trabalho – atividade antipolítica do metabolismo do homem com a natureza em função da sobrevivência do indivíduo e da manutenção da vida biológica da espécie – a este topo, substituindo a fabricação – atividade apolítica pela qual se constrói uma mundanidade artificial e durável –, que vigorara desde Platão e Aristóteles. A ausência de uma análise distintiva, na era moderna, das atividades pertencentes à esfera da vita activa, acaba possibilitando que as atividades em todos os campos sejam divisadas desde a perspectiva do animal laborans e, o que é pior, abrindo guarida para a armadilha totalitária que, subsumindo as esferas pública e privada, intenciona o controle dos homens em todos os níveis (Cf. PASSOS, 2017, p. 55-8).

processo na atividade de fabricação. Desde então, “os processos [...] e não as ideias, os modelos e as formas das coisas a serem criadas, tornam-se na era moderna os guias das atividades de produzir e de fabricar, que são as atividades do homo faber”216. A convicção que predominara desde o século XVII

[...] de que o homem só pode conhecer aquilo que ele mesmo faz – aparentemente tão altamente propícia à plena vitória do homo faber –, seria invalidada e finalmente abolida pelo princípio ainda mais moderno do processo, cujos conceitos e categorias

são inteiramente alheios às necessidades e aos ideais do homo faber217.

Tais conceitos e categorias revelam ser, em verdade, muito mais adequados aos valores e às demandas do animal laborans e à atividade à qual se dedica. Essa atividade do trabalho, que foca na subsistência do indivíduo e na manutenção da vida da espécie e que, portanto, centra o homem em sua própria existência e o reduz à identidade biológica de membro de uma espécie, é “alheia ao mundo instaurado em torno (abrigo) e entre (assunto) os homens”218.

Essa vitória do animal laborans é, pois, também sobre o homem de ação, na medida em que subordina a política à necessidade. Mas, observa Arendt, “postular o interesse como motor da ação política não constitui uma novidade”219. No entanto, novo é “vincular o interesse, isto é, algo material, à humanidade essencial do homem. E o que é decisivo é vincular o interesse [...] ao próprio trabalho como atividade humana preeminente [...], [na] convicção de que a única satisfação legítima de um interesse reside no labor”220. Eis o que fez aquele que “foi o primeiro a definir o homem como um animal laborans, como uma criatura laboriosa”221: Karl Marx! Obviamente que o filósofo oitocentista sustentará a convicção acima apontada nessa

[...] nova definição do homem, segundo a qual a sua humanidade essencial não está em sua racionalidade (animal rationale), nem na capacidade de produzir artefatos (homo faber), nem em ter sido criado à imagem de Deus (criatura Dei), mas no labor, que a tradição rejeitara unanimemente como incompatível com a existência humana

plena e livre222.

A partir desse “novo auto-entendimento do homem como animal laborans, [...] passou[- se] a definir toda atividade humana como labor e interpretá-la como produtividade”223. Essa

216 CH, 2017, p. 372. 217 Idem, p. 382. 218 ALVES NETO, 2009, p. 188. 219 PP, 2016, p. 128. 220 Idem.

221 Ibid., p. 129. A concepção marxiana do homem como animal laborans pressupõe a tese de que no trabalho ou,

em outros termos, “na elaboração do mundo objetivo o homem se confirma, em primeiro lugar e efetivamente, como ser genérico [isto é, como membro da espécie]. Esta produção é a sua vida genérica operativa. [...] O objeto do trabalho é portanto a objetivação da vida genérica do homem [ou seja, da vida da espécie humana]” (MARX, 2008, p. 85).

222 PP, 2016, p. 128-9.

situação “em que todas as atividades humanas são compreendidas e julgadas como modalidades do trabalho com o qual se ganha a vida e mantém-se a sobrevivência da espécie”224, configura o que se nomeia por sociedade de trabalhadores e é a expressão do que se chama de emancipação do trabalho que é, em outros termos, a expansão da esfera da necessidade a todas as instâncias do mundo da vida, com o predomínio do trabalho sobre todas as demais atividades da vita activa e – a considerar que “o trabalho e o consumo são apenas dois estágios do ciclo sempre-recorrente da vida biológica”225 – com a sujeição ao consumo, aos moldes do que se processa no ciclo biológico da espécie ou no metabolismo do corpo226.

Hannah Arendt, contextualizando a teoria marxiana do interesse, pontua que “essa glorificação e esse entendimento equivocado do labor227, embora cegos às realidades mais elementares da vida humana, correspondem perfeitamente às necessidades de sua época”228. A autora reporta aqui, precisamente, ao evento da Revolução Industrial. Esclarece ela:

A revolução industrial, com sua demanda ilimitada por força de trabalho, resultou na reinterpretação inédita do trabalho como a qualidade mais importante do homem. A emancipação do trabalho, no duplo sentido de emancipar a classe trabalhadora e de dignificar a atividade do trabalho, de fato, implicava um novo “contrato social”, ou seja, uma nova relação fundamental entre os homens, baseada no que a tradição teria desprezado como o mais baixo denominador comum: a posse da força de trabalho. Marx delineou as consequências dessa emancipação quando disse que o trabalho, o

224 DUARTE, 2000, p. 85.

225 CH, 2017, p. 121.

226 Ao concentrar-se no trabalho, na preocupação em manter-se vivo, o trabalhador-consumidor experimenta, em

sua apatia em relação às questões públicas, uma profunda perda do mundo. Nessa “sua completa independência ‘do comum’” (CH, 2017, p. 138), retratada, com agudeza, no encontrar-se encarcerado na privatividade de seu próprio corpo – que “realmente passa a ser a quintessência de toda propriedade” (Idem) –, o animal laborans é completamente expelido do mundo, mesmo porque “nada expele o indivíduo mais radicalmente do mundo que a concentração exclusiva na vida corporal” (Ibidem). Nessa perspectiva, Arendt compreenderá que “a pobreza é mais do que privação, é um estado de carência constante e miséria aguda cuja ignomínia consiste em sua força desumanizadora; a pobreza é sórdida porque coloca os homens sob o ditame absoluto de seus corpos, isto é, sob o ditame absoluto da necessidade que todos os homens conhecem pela mais íntima experiência e fora de qualquer especulação” (SR, 2013, p. 93).

227 Segundo Arendt (Cf. CH, 2017, p. 121-2), Marx confunde fabricação (work) e trabalho (labor), posto que,

quando enaltece a produtividade do trabalho, ele está se referindo à atividade do homo faber; mas, quando define o trabalho como “o metabolismo do homem com a natureza”, já fala de um processo implementado pelo animal

laborans. Observa a pensadora: “A era moderna em geral e Karl Marx em particular, fascinados, por assim dizer,

pela atual produtividade sem precedentes da humanidade ocidental, tendiam quase irresistivelmente a considerar todo trabalho como obra e a falar do animal laborans em termos muito mais adequados ao homo faber, como a esperar que faltasse apenas um passo para eliminar totalmente o trabalho e a necessidade” (Idem, p. 107). Especifica Arendt que essa incompreensão que equaliza trabalho e fabricação e eleva o labor à mais alta posição entre as atividades humanas, “começou quando Locke descobriu que o trabalho é a fonte de toda propriedade. Prosseguiu quando Adam Smith afirmou que o trabalho era a fonte de toda riqueza e atingiu o seu clímax no ‘sistema do trabalho’ de Marx, no qual o trabalho passou a ser a fonte de toda produtividade e a expressão da própria humanidade do homem” (Ibid., p. 124). Enfatizando a contradição em que se enredaram esses pensadores, acrescenta a autora: “Todos eles, porém, embora Marx com maior força e consistência, defendiam que o trabalho fosse visto como a suprema capacidade humana de construção-do-mundo [world-building]; e como o trabalho é, em verdade, a mais natural e a menos mundana das atividades do homem, cada um deles, e novamente nenhum mais que Marx, viu-se enredado em algumas contradições genuínas” (CH, 2017, p. 125).

metabolismo especificamente humano com a natureza, era a distinção humana mais

elementar, a que intrinsecamente distinguia a vida animal humana229.

Interpretando esse quadro, acima delineado, desde a perspectiva do marco da tradição, no qual Marx se manteve, várias são as conclusões possíveis, inclusive a de que, com ele, se verifica “uma nova guinada da filosofia determinista, para a qual, tradicionalmente, a liberdade ‘necessariamente’ procede, de uma ou outra forma, da necessidade”230. Contudo, se outrora o próprio Marx acreditara que “as forças oriundas das necessidades vitais acabariam levando à liberdade”231, posteriormente, quando “redefiniu, em quase todos os seus textos posteriores ao Manifesto comunista, o impulso autenticamente revolucionário de sua juventude em termos econômicos”232, o seu foco estará mais na liberação do processo vital da sociedade, isto é, na emancipação do trabalho, do que, propriamente, na preocupação em libertar os homens da exploração233. Essa guinada teórica que se processa em Marx acabou, com efeito, por representar “uma rendição efetiva da liberdade à necessidade”234, o que levará Arendt a concluir que, em tal mudança de posicionamento, encontra-se o real motivo pelo qual “o lugar de Marx na história da liberdade humana sempre será ambíguo”235.

De fato, esclarece a pensadora, “quando Marx afirmou que o trabalho é a atividade mais importante do homem, ele estava dizendo, em termos da tradição, que não a liberdade, mas a necessidade é o que torna o homem humano”236. Essa glorificação do trabalho, especialmente correlacionada com a exaltação da violência muda237, “foi, politicamente, um ataque à liberdade, porque implicava a glorificação da compulsão e da necessidade natural”238. Além

229 Ens – II, 2018, p. 17 (tradução nossa). No original, leia-se: “The industrial revolution, with its unlimited demand

for sheer labor force, resulted in the unheard of reinterpretation of labor as the most importante quality of man. The emancipation of labor, in the double sense of emancipating the working class and dignifying the activity of laboring, indeed implied a new “social contract,” that is, a new fundamental relationship between men based on what the tradition would have despised as their lowest common denominator: ownership of labor force. Marx drew the consequences of this emancipation when he said that labor, the specifically human metabolism with nature, was the most elementar human distinction, that which intrinsically distinguished human animal life”.

230 PP, 2016, p. 130. 231 WAGNER, 2000, p. 122. 232 SR, 2013, p. 97. 233 Cf. Idem, p. 98. 234 Ibid., p. 99. 235 SR, 2013, p. 97.

236 Ens –II, 2018, p. 18 (tradução nossa). No original, leia-se: “[...] when Marx stated the labor is the most important

activity of man, he was saying in terms of the tradition that not freedom but necessity is what makes man human”.

237 Cf. Ens – II, 2018, p. 18-20, onde Hannah Arendt encaminha a sua reflexão em direção à constatação de que as

convicções de Marx sobre a violência e em relação ao trabalho estão intimamente inter-relacionadas. Parece seja possível, aqui, conjecturar, na figura de Marx, a confluência “da crença de Robespierre no caráter irresistível da violência, bem como da crença de Hegel no caráter irresistível da necessidade” (SR, 2013, p. 156).

238 Ens – II, 2018, p. 20 (tradução nossa). No original, leia-se: “[...] politically this was an onslaught of freedom,

disso, em sua infundada insistência na liberdade, fonte das autocontradições básicas em que toda a sua obra é capturada239, Marx, lembra ainda Arendt,

[...] seguiu essa linha de pensamento através de sua filosofia da história, segundo a qual o desenvolvimento da humanidade é regido pela – e o significado da história está contido na – lei do movimento histórico, cujo motor político é a luta de classes e cuja força motriz natural irresistível é o desenvolvimento da capacidade de trabalho do

homem240.

A considerar o contexto da modernidade, sobretudo o período tardio da era moderna, no qual Marx se situa e onde se verifica, com os desdobramentos da Revolução Industrial, um incremento artificial das necessidades naturais, que concorre para a subordinação do espaço público-político ao jogo dos interesses socioeconômicos, destaca-se um processo latente de precarização do sentido da política. O que resulta desse processo, sintetiza André Duarte,

[...] é a perda de espaço da liberdade para a necessidade; a perda da ação livre e espontânea para o comportamento repetitivo e previsível do trabalhador; a perda do

espaço público e comunitário para os lobbies e grupos de pressão ocultos241; a

substituição da troca persuasiva de opiniões pela violência cega e muda; a submissão da pluralidade de ideias políticas pelo pensamento único; o enfraquecimento da capacidade de consentir e dissentir em vista da obrigação de obedecer; enfim, o

ofuscamento da novidade e da criatividade pelo eterno retorno do mesmo242.

Observa-se que essa lógica econômico-vitalista – que reduz tanto o homem a um animal que trabalha quanto a política à gestão administrativa dos interesses privados envolvidos na dinâmica do produzir e consumir – é a mesma que se verifica no surto industrial e na corrida imperialista que se seguiu, na segunda metade do século XIX; nas duas grandes guerras mundiais do século XX e em um sem número de conflitos bélicos regionais, nos quais a motivação econômica, sempre presente, ficou mascarada sob a retórica da suposta defesa dos valores político-democráticos. Essa enumeração poderia, ainda, ser alongada até chegar às contemporâneas sociedades pós-industriais e seu paradoxal desenvolvimento econômico com crescimento do desemprego243. De qualquer forma, essa trajetória sinaliza, como se discutirá adiante, para a ascensão de uma sociedade de trabalhadores-consumidores na qual “todas as

239 Cf. Ens – II, 2018, p. 18.

240 Ens – II, 2018, p. 18 (tradução nossa). No original, leia-se: “[...] he followed this line of thought throughout his

philosophy of history, according to which the development of manking is ruled by, and the meaning of history contained in, the law of historical movement, the political motor of which is class struggle and whose natural irresistible driving force is the development of man’s laboring capacity”.

241 Toca-se, aqui, numa questão sensível para Arendt: a distinção entre a atuação obscura dos grupos de pressão

comprometidos com os interesses privados, por exemplo, de conglomerados econômicos, e o protagonismo dos grupos de desobediência civil, que se pautam pela pluralidade e publicidade inerentes ao espaço público (Cf. Ens – II, 2018, p. 507). A abordagem arendtiana sobre a desobediência civil será objeto do capítulo 6 deste trabalho.

242 DUARTE, 2006, p. 151.

atividades são definidas em termos da sustentação da vida e o que não diz respeito ao sustento diário torna-se de menor importância”244.

O animal laborans, que ascende nesse contexto, sob o impulso da fertilidade da força de trabalho e entregue ao ritmo sempre-recorrente do processo vital, está mais comprometido, como antes se aludiu, em produzir uma abundância de bens de consumo do que em constituir um mundo de coisas. Assim, tudo é concebido em função do processo vital e, portanto, processado ao ritmo das necessidades naturais artificialmente potencializadas. Por conseguinte, constata Arendt:

Os produtos do trabalho, produtos do metabolismo do homem com a natureza, não permanecem no mundo tempo suficiente para se tornarem parte dele, e a própria atividade do trabalho, concentrada exclusivamente na vida e em sua manutenção,

esquece-se do mundo até o extremo da não mundanidade245.

Disso se conclui que o animal laborans, na sujeição ao imperativo da necessidade e na compulsão do produzir e consumir, de fato, “não sabe construir um mundo nem cuidar bem do mundo criado pelo homo faber”246. Consequentemente, se “a política é definida como a instância de promoção e garantia dos interesses vitais do animal laborans é necessário que ela não seja mais pensada e praticada enquanto a arte do cuidado pelo mundo comum público das instituições duráveis”247.

Em seu esforço de pensar os acontecimentos desde o “ponto de vista privilegiado de nossas mais novas experiências e nossos temores mais recentes”248, a autora d’A condição humana, em sua análise das significações da vitória do animal laborans sobre o fabricante do mundo e sobre o homem de ação, atentará para a gravidade da subordinação do domínio da política aos ditames da vida biológica. Ela chamará a atenção para a crescente dissolução das fronteiras entre natureza e mundo, que se verifica nas modernas sociedades de trabalho e