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Pensamento, memória e moralidade: um modo de deitar raízes e de assumir um

3 AÇÃO, PENSAMENTO E JUÍZO: DOS MODOS DE ENTRELAÇAR

3.1 AÇÃO, SINGULARIDADE E RESPONSABILIDADE: DA IMBRICAÇÃO

3.2.1 Pensamento, singularidade e responsabilidade: do desafio de compreender à

3.2.1.2 Pensamento, memória e moralidade: um modo de deitar raízes e de assumir um

Como já se sinalizou, o julgamento de Adolf Karl Eichmann em Jerusalém é um ponto fulcral na trajetória de Hannah Arendt. Desde então, ela foi tomada pela questão da “conexão interna entre a capacidade ou incapacidade de pensar e o problema do mal”333. Mais do que se ater a um possível conceito de mal radical, ela estará marcada, a partir daquele momento, pela experiência de deparar-se com a banalidade do mal que, em sua avaliação, torna tão supérfluos os seres humanos. Deparar-se com tal banalidade, num contexto de falência dos padrões morais tradicionais, colocará a exigência de se buscar um novo modo de considerar os eventos.

A autora d’A vida do espírito está convencida de que, devido ao fato de situar-se no pós- morte da filosofia e da metafísica como tradicionalmente pensadas, fica lograda, ao sujeito pensante, a chance de “olhar o passado com novos olhos, sem o fardo e a orientação de quaisquer tradições”334, permitindo-o compreender, sob novas bases, as possíveis relações entre pensamento e moralidade. Assim, convicta de “que temos de investigar experiências em vez de doutrinas”335, Arendt, afastando-se cada vez mais dos chamados filósofos profissionais que, reclusos em sua mudez contemplativa, tudo querem subsumir aos seus abstratos padrões de universalidade, escolherá a companhia do eloquente Sócrates, que sabia lidar com a pluralidade e fora capaz de entregar-se à paixão do compreender.

Ciente que estava do ineditismo do totalitarismo, que despertara os homens normais do seu não saber “que tudo é possível”336, Hannah Arendt, testemunha das atrocidades dos regimes totalitários, dedicar-se-á ao desafio de compreender as possíveis conexões entre pensamento, memória e moralidade, num contexto em que todos os limites haviam sido ultrapassados. Dessa forma, pela abordagem da dualidade do “dois-em-um [da consciência de si] que Sócrates descobriu ser a essência do pensamento, e que Platão337 traduziu em linguagem conceitual como o diálogo sem som [...] de mim comigo mesmo”338, Arendt, instigada pela questão que indaga sobre a possibilidade de se encontrar um nexo entre a atividade de pensar e a capacidade da consciência (moral) de estabelecer limites, recorrerá a Sócrates, o pensador que levava as pessoas a questionar a si mesmas.

333 RJ, 2010, p. 234.

334 VE, 2009, p. 27.

335 RJ, 2010, p. 235.

336 Origens do totalitarismo traz, como epígrafe de sua “Parte III – Totalitarismo”, o seguinte dizer de David

Rousset: “Os homens normais não sabem que tudo é possível” (OT, 2000, p. 337).

337 Cf. PLATÃO, 2007, Teeteto, 189e, p. 119-20; Sofista, 263e, p. 238.

A pensadora, como apontam vários de seus escritos, “parece acreditar que o pensar [...] poderia ser capaz de fornecer limites à ação”339. Para compreender em que condições isso seria possível, ela reportará a duas raras proposições socráticas, encontradas no Górgias de Platão340. Longe de ser resultados de alguma cogitação teorética sobre a moralidade, tais intuições da experiência341 são, por isso mesmo, dirá Arendt, só compreensíveis à luz da experiência do pensar: a primeira defende que “é melhor sofrer o mal do que o cometer”; a segunda diz: “Eu preferiria que minha lira ou um coro por mim dirigido desafinasse e produzisse ruído desarmônico, e que multidões de homens discordassem de mim do que eu, sendo um viesse a entrar em desacordo comigo mesmo e a contradizer-me”.

Mergulhada em seus exercícios de hermenêutica filosófica, Arendt afirma que se encontra na segunda afirmação a chave para a compreensão da primeira. Assim, cabe ver: quando o filósofo, no final de sua colocação, afirma ser um e, exatamente por isso, não quer correr o risco de entrar em desacordo consigo mesmo, soaria como simples contradição caso não se atentasse para a complexidade do sendo um socrático: “eu não sou apenas para os outros, mas também para mim mesmo; e nesse último caso, claramente eu não sou apenas um. Uma diferença se instala na minha Unicidade”342.

A considerar que a característica fundamental da consciência de si343 é a divisão de si mesma, corrobora-se a pluralidade como um dos predicados da experiência socrática do pensar. Por conseguinte, no pensar, Sócrates e todo aquele que vivencia o diálogo silencioso de si consigo mesmo interioriza, portanto, a pluralidade344. Como diz a pensadora, “essa coisa

339 CORREIA, 2002, p. 146.

340 PLATÃO, 2002, Górgias, 474b, p. 166-7; 482c, p. 180. Segundo Arendt (RJ, 2010, p. 155-6), “no Górgias,

existe apenas uma referência curta ao que constitui esse relacionamento entre o Eu (I) e o si mesmo (self), entre mim e mim mesma”. A mesma sugere conferir o Teeteto (o diálogo sobre o conhecimento), onde Sócrates apresenta exposição clara sobre a questão; e o Sofista, onde também se encontra a mesma abordagem em palavras muito próximas.

341 Cf. RJ, 2010, p. 249.

342 VE, 2009, p. 205.

343 Em várias passagens de sua obra, Arendt esclarece o conceito de consciência de si (consciousness) na acepção

por ela assumida (Cf. VE, 2009, p. 205; RJ, 2010, p. 251); em “Proposições morais básicas” (p. 024534; 024610), manuscrito não publicado, confira trecho explicativo do conceito de consciência que se encontra na longa nota 15 do seu ensaio “Algumas questões de filosofia moral”, de 1965-6 (Cf. RJ, 2010, p. 356-7). Nesse mesmo ensaio (Idem, p. 140-1), localiza-se uma boa e sucinta explicação do termo: “Em todas as línguas o termo consciência significa originalmente não a faculdade de conhecer e julgar o certo e o errado, mas o que agora chamamos consciência de si (consciousness), isto é, a faculdade pela qual conhecemos a nós mesmos, nos tornamos cientes de nós mesmos. Tanto em latim como em grego, a palavra para consciência de si (consciousness) foi tomada para indicar também a consciência (conscience); em francês, a mesma palavra consciência (conscience) é ainda usada para os dois sentidos, o cognitivo e o moral; e em inglês, a palavra ‘consciência’ (conscience) só recentemtemente adquiriu o seu significado moral especial”.

344 Mesmo nos momentos em que se encontra só consigo mesmo, no diálogo silencioso do pensamento, o eu que

pensa não se encontra “totalmente separado dessa pluralidade que é o mundo dos homens e que chamamos, em seu sentido mais geral, de humanidade. Essa humanidade, ou antes, essa pluralidade, já está indicada no fato de

curiosa que eu sou [...] carrega a diferença dentro de si mesma quando diz: ‘Eu sou eu’”345. Chama a atenção o fato de “que a pluralidade do self arendtiano de ser outro para si mesmo implica necessariamente que a minha própria singularidade se forma a partir [...] da internalização da diferença”346.

Ainda em relação à segunda afirmação de Sócrates, no que se refere ao seu problemático sendo um, verifica-se que há, ali, a consciência de que se, da perspectiva do mundo das aparências, o indivíduo é um, do ponto de vista da experiência do ego pensante, ele é essa dualidade do dois-em-um. Isso levará à compreensão de que,

[...] existencialmente falando, o pensamento é um estar-só, mas não é solidão; o estar- só é a situação em que me faço companhia. A solidão ocorre quando estou sozinho, mas incapaz de dividir-me no dois-em-um, incapaz de fazer-me companhia, quando, como Jaspers dizia, “eu falto a mim mesmo” [...], ou, em outras palavras, quando sou

um e sem companhia347.

Ao processo do pensar, compreendido como “uma atitude em que falo comigo mesma a respeito de tudo o que me diz respeito”348, corresponde, portanto, um modo de existência que Hannah Arendt intitulará de estar só ou solitude e que, segundo ela, é muito diferente da solidão ou do isolamento349. Assim, na afirmação de que “a moralidade diz respeito ao indivíduo na sua singularidade”350, fica subentendido que “a preocupação com o eu como o padrão fundamental da condução moral só existe, é claro, no estar só”351, ou seja, está mantida a sua validade para o homem que, enquanto ser pensante, se põe no exercício da solitude, não da solidão ou do isolamento352.

Na experiência dialógica (de si consigo mesma) da consciência de si, o critério que norteia a decisão sobre o que devo fazer não depende, em última instância, dirá Arendt, “dos hábitos e costumes que partilho com aqueles ao meu redor nem de uma ordem de origem divina ou humana, mas do que decido com respeito a mim mesma”353. Lembra ela que “o único critério

que sou dois-em-um [...]. Os homens não só existem no plural [...], mas também têm dentro de si uma indicação dessa pluralidade” (PP, 2016, p. 65).

345 RJ, 2010, p. 252.

346 ASSY, 2016, p. 76.

347 VE, 2009, p. 207.

348 RJ, 2010, p. 163.

349 Arendt, em seu ensaio “Algumas questões de filosofia moral”, faz uma detalhada distinção das várias formas

de estar sozinho ou dos modos em que a singularidade humana se torna real (Cf. RJ, 2010, p. 163-4). Merece destaque o esclarecimento semântico que a autora faz em Origens do totalitarismo (Cf. 2000, p. 528-9) sobre esses mesmos conceitos de solitude – em que “estou ‘comigo mesmo’, em companhia do meu próprio eu” (Idem, p. 528) – e de solidão – em que “sou realmente apenas um, abandonado por todos os outros” (Ibidem).

350 RJ, 2010, p. 162.

351 Idem, p. 165.

352 Cf. Ibid., p. 165-6.

de pensamento socrático é a conformidade, o ser consistente consigo mesmo”354. Eis, pois, o outro predicado que deriva do próprio ato de pensar: o princípio socrático da consistência. Não entrar em desacordo consigo mesmo, não fazer certas coisas que, depois, tornariam a si mesmo alguém com quem não suportaria viver, mesmo que dele não pudesse se ver livre355: este é o comando moral fundamental que se extrai da segunda afirmação socrática.

O exercício dialógico de si para consigo mesmo do pensamento leva aquele que pensa à compreensão de que, se está em desavença com seu próprio eu, é como se fosse forçado a interagir diariamente com o seu próprio inimigo. Do mesmo modo que “sou meu parceiro quando estou pensando, sou minha própria testemunha quando estou agindo. Conheço o agente e estou condenado a viver com ele. E ele não é calado”356. Esse preceito que se origina da própria atividade de pensar e é a condição implícita do diálogo silencioso entre o eu e ele mesmo é, também, a condição suficiente, diria Sócrates, da moralidade: não há e nem é necessário nenhum padrão transcendente que ensine o que é o certo e o que é o errado357.

Nesse contexto, analisará Arendt, a conexão entre pensamento e memória é fundamental: “a maneira mais segura para um criminoso nunca ser descoberto e escapar da punição é esquecer o que fez e não pensar mais no assunto”358. Completará ela, na sequência, que é “também por isso, [que] podemos dizer que, antes de mais nada, o arrependimento consiste em não esquecer o que se fez, em ‘voltar ao assunto’”359, pelo exercício do pensar que se configura sempre como um permanente re-pensar. Divisa-se, aqui, a estreita vinculação entre a autêntica responsabilidade pelo que se torna e pelo que faz no mundo e a capacidade de, pelo exercício da memória, encarar ou retornar a si mesmo e a seus feitos, o que leva, pela via negativa, à compreensão de que o cultivo de uma certa desmemoriação traduz-se sempre num desresponsabilizar-se de quem, num só movimento, perdeu-se de si e desertou-se do mundo.

A confirmar essa relação intricada entre pensamento, memória e moralidade, Hannah Arendt intuirá que “ninguém consegue se lembrar do que não pensou de maneira exaustiva ao falar a respeito do assunto consigo mesmo”360. Aliás, “se me recuso a lembrar, estou realmente pronta a fazer qualquer coisa”361, o que a leva a concluir que “os maiores malfeitores são aqueles que não se lembram porque nunca pensaram na questão, e, sem lembrança, nada consegue detê-

354 VE, 2009, p. 208. 355 Cf. RJ, 2010, p. 154-5. 356 Idem, p. 155. 357 Cf. Ibidem. 358 RJ, 2010, p. 158. 359 Idem. 360 Ibid., p. 158-9. 361 RJ, 2010, p. 159.

los”362. Pensar e rememorar, disso está certa Arendt, “é o modo humano de deitar raízes, de cada um tomar seu lugar no mundo a que todos chegamos como estranhos”363. A pessoa, em seu ser mais do que mero ser humano, “nasce desse processo do pensamento que deita raízes”364. Lembrando, certamente, da superficialidade demonstrada por Eichmann, em Jerusalém, advinda de uma completa ausência de pensamento, arrematará a pensadora:

Caso se trate de um ser pensante, arraigado em seus pensamentos e lembranças e, assim, conhecedor de que tem de viver consigo mesmo, haverá limites para o que pode se permitir fazer; e esses limites não lhe serão impostos de fora, mas auto- estabelecidos. [...] o mal ilimitado e extremo só é possível quando essas raízes cultivadas a partir do eu, que automaticamente limitam as possibilidades, estão

inteiramente ausentes365.

Dessa forma, a ausência de pensamento – que mantém quem quer que seja na superficial aceitação dos clichês de ocasião, das normas cristalizadas, dos critérios momentâneos e convenientes do certo e do errado, dos patrulhamentos ideológicos de qualquer ordem –, com a qual tanto se preocupou Hannah Arendt, é reflexo de e, ao mesmo tempo, indutora da desmemoriação que se processa, já há algum tempo, nas contemporâneas sociedades de massas, em que nem bem se compreendem enquanto pluralidades político-culturais e muito menos se dão conta da dimensão plural do dois-mais-um que habita cada homem e faz vivamente humanos os que ousam pensar. Na contramão dessa massificação tocada ao ritmo da desmemoriação, essa pedra de chumbo que anula a singularidade humana e dispensa o homem da responsabilidade de tomar seu lugar no mundo, a concepção arendtiana delineia o pensamento como “a atividade que nos torna pessoa, que nos institui como alguém que dialoga consigo mesmo e que, portanto, não anda neste mundo à deriva dos seus acontecimentos”366. É porque pensa que o homem pode refletir sobre o que lhe ocorre e acerca do que acontece no mundo, emitindo uma opinião pessoal a respeito disso tudo.

Portanto, se se pode afirmar que é pela ação e pelo discurso que ao indivíduo se agrega a condição humana da singularidade, “o pensamento, por sua vez, nos torna uma pessoa: integra-nos e permite que entremos em acordo com nós mesmos pelo diálogo do dois-em- um”367. Em suma, pode-se concluir, com Arendt, que “nesse processo de pensamento em que realizo a diferença especificamente humana da fala eu me constituo de modo explícito como uma pessoa, e vou continuar a ser uma pessoa na medida em que seja capaz dessa constituição

362 Idem, p. 159-160. 363 Ibid., p. 166. 364 RJ, 2010, p. 166. 365 Idem. 366 CUSTÓDIO, 2017, p. 201. 367 Idem, p. 202.

repetidas vezes”368, na e pela qual também se articulam as condições de possibilidade do entrelaçar de singularidade e responsabilidade.

Voltando a Sócrates, para quem esse dois-em-um da consciência de si, sem o qual o pensamento seria impossível, converte-se num alerta, fica a dica: se alguém quiser pensar, deve cuidar para que os dois parceiros que travam esse diálogo silencioso sejam amigos369. Se é sempre possível ser amigo do sofredor, o mesmo já não se pode dizer em relação ao que faz sofrer370. Se, como se diz popularmente, só serve para viver com os outros quem é capaz de viver sozinho, isto é, de consigo viver, a capacidade de dialogar com os outros estará intimamente relacionada com esta capacidade de – silenciosa e solitudemente – dialogar consigo mesmo ou, em outros termos, pôr-se frente a si mesmo. Se o amigo, aristotelicamente falando, é um outro eu371, isso significa, concluirá Arendt, que se pode, “com ele, empreender o diálogo de pensamento como se faz consigo mesmo”372. Aquele, porém, que não se permite ao exercício de pensar, pelo qual o indivíduo se coloca frente a si mesmo e examina o que diz e o que faz, nem compreenderá a experiência da autêntica amizade e nem concordará com Sócrates quando este diz que prefere sofrer o mal do que o mal cometer. Consciente da dualidade do dois-em-um, seria insuportável, para Sócrates, como dito há pouco, a convivência consigo mesmo enquanto criminoso ou malfeitor. No filósofo ateniense, o filosofar se configura como um modo ético de ser e de estar no mundo.

Hannah Arendt, no entanto, ponderará com mais cautela do que Sócrates. Se se pode dizer, por um lado, que a ausência de pensamento é capaz de levar a cometer atrocidades, posto que, ao não se permitir à experiência dialógica de confrontar consigo mesmo o que faz ou diz, o indivíduo viverá como se nada lhe dissesse respeito; por outro lado, contudo, tendo o pensamento um fim em si mesmo e, por isso, pouco ou nenhum benefício trazer à sociedade, o seu “efeito moral colateral é, para o pensador, um tanto marginal”373, como o é no campo da política. O pensamento “não cria valores, não descobrirá, de uma vez por todas, o que é ‘o bem’, e não confirma, mas antes dissolve as regras de conduta aceitas”374. Pensar, diferentemente do

368 RJ, 2010, p. 160.

369 Diferentemente da dualidade do querer, que é sempre conflituosa e só se resolve mediante um ato, o dois-em-

um do pensamento precisa manter-se harmônico para poder existir. Conforme sintetiza Adeodato (1989, p. 142), “é só porque o homem é dotado de consciência (consciousness, self-awareness, saber que eu sou eu e distinto dos demais) e da capacidade de imaginar um outro eu com quem dialogar que o pensar é possível. E, como descobriu Sócrates, apenas diante de uma harmonia entre os dois ‘eus’ pode-se falar propriamente em pensamento”.

370 Cf. RJ, 2010, p. 252-3.

371 Cf. ARISTÓTELES, 1992, 1166a, p. 177-9.

372 VE, 2009, p. 211.

373 Idem, p. 214.

conhecer, com seus nítidos e relevantes benefícios à sociedade, alertará Arendt, “sempre implica aquela destruição de ídolos de que Nietzsche tanto gostava”375.

Disso, muito se pode inferir. Por hora, é suficiente lembrar que a escolha, de Arendt, por Sócrates coloca-a em rota de colisão com os, por ela nomeados, moralistas estreitos que sempre evocam elevados princípios morais e padrões estabelecidos, mas são os primeiros a aderir a quaisquer outros princípios e/ou padrões que se lhe ofereçam a respeitável sociedade376. Hannah Arendt, a esse respeito, é taxativa: “a invocação de princípios supostamente morais para questões da conduta cotidiana é em geral uma fraude”377. Porém, consciente também está a pensadora de que “a moralidade socrática só é politicamente relevante em tempos de crise, e que o eu como critério fundamental da conduta moral é, politicamente, uma espécie de medida de emergência”378.

Destituída de conteúdo, posto que não descreve o que seja a bondade e nem conduz a um dever, a moralidade que emerge do exercício da faculdade de pensar é um tipo de ética da impotência379, desprovida de prescrição. Desse diálogo silencioso do eu consigo mesmo provêm as regras da consciência, aqui chamadas de predicados, mas “elas não dizem o que fazer, dizem o que não fazer. Elas não sugerem princípios para a ação, colocam demarcações que as ações não devem transpor. Elas dizem: Não procedas mal ou terás que viver para sempre junto a um malfeitor”380.

Daí decorrem duas implicações éticas: o predicado da consistência dialógica é capaz de, ao indivíduo, preencher com obstáculos e aos mesmos ele chega pela memória, no seu fazer com que lembre de como agiu; e, pelos predicados da pluralidade e consistência, inerentes à própria atividade de pensar, chega-se à implicação da responsabilidade de escolher a si mesmo, que sempre rebate, como se verá adiante, na escolha do outro e do mundo que, com este, constitui381. Hannah Arendt recorda que “a precondição para esse tipo de julgamento não é uma inteligência altamente desenvolvida ou uma sofisticação em questões morais, mas antes a disposição para viver explicitamente consigo mesmo”382. Enfim, como se colocou antes, o pleno exercício da capacidade de pensar (thoughfulness) compõe o cerne de uma personalidade moral, termo que, na compreensão arendtiana, se trata quase de uma redundância383.

375 RJ, 2010, p. 168. 376 Cf. Idem, p. 170. 377 Ibid., p. 169-70. 378 RJ, 2010, p. 169. 379 Cf. ASSY, 2010, p. 43. 380 CR, 2015, p. 60. 381 Cf. ASSY, 2016, p. 104; 2010, p. 43. 382 RJ, 2010, p. 107. 383 Cf. Idem, p. 160.

3.2.2 Juízo, singularidade e responsabilidade: da exigência de pensar politicamente à