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Juízo, experiência e beleza: da bisonhice da verdade à experiência do belo evento

3 AÇÃO, PENSAMENTO E JUÍZO: DOS MODOS DE ENTRELAÇAR

3.1 AÇÃO, SINGULARIDADE E RESPONSABILIDADE: DA IMBRICAÇÃO

3.2.2 Juízo, singularidade e responsabilidade: da exigência de pensar politicamente

3.2.2.3 Juízo, experiência e beleza: da bisonhice da verdade à experiência do belo evento

Aos olhos perspicazes de Hannah Arendt, a alienação do mundo assumirá, na era e no mundo modernos, múltiplas facetas. Em todas elas, de igual modo, patrocinará o abandono da política, a deserção do espaço público, a perda da liberdade, enfim, a negação da dignidade humana. Das perspectivas abertas pela implementação da introspecção cartesiana e da moderna tecnocientificidade à não tão originalmente moderna exaltação da vida como bem supremo, que reencontra expressão na vitória do animal laborans, na ascensão do social e no surgimento da sociedade de massas, o curso que se delineia é o da Via Crucis da mundanidade do mundo e do sentido de humanidade do homem. Dessa forma, o que, de fato, tem tido lugar nesse percurso é o incremento da inexperiência que, em sua repulsa a ater-se à particularidade dos acontecimentos e a considerar a singularidade dos indivíduos, mina a possibilidade de estabelecer um senso adequado de realidade, de estimular a constituição de pessoalidades e de, nesse intercurso, conferir significado à existência humana504.

Essa trajetória que, segundo Arendt, sempre se inicia pelo ocaso do amor ao mundo, tem comprometido, no contexto das contemporâneas sociedades de massas, um maior envolvimento das pessoas em ações espontâneas que, articuladas, contribuam para a criação e a afirmação de espaços públicos de interação plural onde, pela performance das palavras e dos atos em companhia de outros, os homens distinguem-se em sua singularidade e responsabilidade pelo mundo comum. Frente a essa situação, que diz respeito ao homem que especta e pensa e que se mobiliza e age, apresenta-se o desafio de, pelo exercício da memória, resgatar no que aconteceu (passado) ou está a acontecer (passado recente)505, os elementos que,

504 Cf. ENTRÈVES, 2001, p. 101

ali cristalizados de certo modo, permitem compreender o que tornou possível – não enquanto causas, mas enquanto potencializadores de uma atitude que, no presente exercício da liberdade humana, engendra – os acontecimentos.

Fala-se, acima, do deslanchar compreensivo da faculdade de julgar que, na resistência ao universalismo racionalista e seu critério de verdade, põe-se sob a guia da imaginação. Esta possibilita, àquele que julga, perscrutar os acontecimentos não apenas do seu ponto de vista, mas de todos os possíveis outros que, obviamente, não estão dados de ser seus, almejando, inclusive, acordar com esses outros a eleição de um parâmetro norteador para a abordagem reflexiva que no julgar se implementa. Em outras palavras, “o critério do juízo não é a verdade do filósofo, mas a mentalidade alargada, o ter os outros representados”506. Além do aspecto compreensivo do julgar, realça-se, dessa forma, a sua dimensão intersubjetiva. Essa dimensão, por sua vez, não elimina, mas pressupõe a dimensão autônoma dos que não se renunciam a julgar, mesmo porque “é essencial lembrar-se de que a condição para entrar em acordo com os outros é estar [...] em acordo consigo mesmo”507.

O juízo, esclarece Hannah Arendt, “empresta realidade ao pensar, torna-o manifesto no mundo das aparências, no qual nunca estou sozinho”508. Assim, enquanto mediação entre pensamento e ação, o julgar coloca o dois-em-um do diálogo sem som no âmbito da pluralidade da Vita Activa509. Se, com Sócrates, descobriu-se que não há e nem é necessário nenhum padrão transcendente que ensine o que é o certo e o que é o errado, uma vez que, pelo exercício dialógico do pensar, chega-se à compreensão de que “se estou em desavença com meu eu, é como se eu fosse forçada a viver e interagir diariamente com o meu próprio inimigo”510; com a instituição da validade exemplar, a partir do processo reflexivo de colocar diante de si mesmo os vários pontos de vista possíveis numa dada situação, também se chega, em termos práticos, à conclusão de que não há padrões ou regras universais aos quais se agarrar para distinguir o certo do errado, a não ser “algum elemento particular que se tornou um exemplo”511. Um tal exemplo, intersubjetivamente constituído para guiar o julgar, expressa, de uma outra forma apenas, a questão de com qual outro se quer viver. Se fosse possível apelar à singularidade de

506 PEREIRA, 2011, p. 207-8

507 AGUIAR, 2003, p. 260. Em sua discussão sobre a questão da legitimidade política, Odílio Aguiar destaca as

dimensões intersubjetiva, autônoma e compreensiva do juízo de gosto, consideradas relevantes para se pensar o juízo político em Arendt. A abordagem feita por ele encontra-se mais sintetizada em artigo publicado pela Revista

Philósophos (Cf. Idem, p. 251-271) e mais desenvolvida em livro publicado pela UFC Edições (Cf. Idem, 2001a,

97-164).

508 RJ, 2010, p. 257.

509 Cf. ASSY, 2016, p. 187. Inclusive, “é à luz deste elo, que com ela podemos afirmar que o pensar traz ganhos

para a coisa pública” (PEREIRA, 2011, p. 207).

510 RJ, 2010, p. 155.

cada homem, conjectura a própria Arendt, “se todo homem pudesse ser levado a pensar e julgar por si mesmo, então seria também realmente possível prescindir dos padrões e regras fixados”512.

Além disso, vale destacar que, de acordo com a compreensão arendtiana, a atividade de pensar sempre se procede a partir da experiência e, assim, em seu livre mover-se, almeja perscrutar as significações mais profundas do vivido. Convém, no entanto, considerar que essa conexão, pressuposta por Hannah Arendt, entre o pensamento e a experiência, refere-se tanto a um pensar que não se reduz ao âmbito da atividade cognitiva ou à concatenação lógico-dedutiva de um raciocínio certo de partir da verdade, quanto a uma “experiência [que] não tem nada a ver com a imediatez de um puro vivido não refletido. O poder de ter uma experiência é esta abertura originária ao mundo de algum modo reinstituída pelo juízo que, como nos ensinou Kant, constitui a experiência”513.

Desse modo, a recusa ao exercício de pensar e a renúncia à atividade de julgar – como se verifica em Eichmann, caso ao qual se aterá o próximo capítulo – traduz bem essa articulação entre o dispensar-se da autônoma reflexão, numa submissão automática à autoevidência dos preconceitos, e a autonegação da experiência do mundo. A considerar que, no exercício do julgar, reflexão e experiência do mundo compõem-se numa unidade, pode-se dizer que “a corrupção do juízo é, simultaneamente, uma corrupção interna da experiência”514. Certamente, enquanto vivenciava a experiência de acompanhar o julgamento daquele criminoso nazista, ela compreendeu que a banalidade do mal se radica, em última instância, na renúncia à liberdade de julgar, pela qual se dá – eis um outro modo de dizer do entrelaçar entre singularidade e responsabilidade – o entregar-se do amante à mundanidade do amor ao mundo.

Pelos caminhos do pensar e do julgar, cada indivíduo é posto, portanto, frente à responsabilidade pessoal de ser e de assumir quem é em seu permanente aparecer, pela ação e pelo discurso, no âmbito da pluralidade do mundo da aparência. Essa responsabilidade pressupõe, por sua vez, a responsabilidade de julgar. Sobre essa incidência do papel da faculdade de julgar na responsabilidade pessoal, Hannah Arendt, esperançosa, arremata:

Pois apenas se supomos que existe uma faculdade humana que nos capacita a julgar racionalmente, sem nos deixarmos arrebatar pela emoção ou pelo interesse próprio, e que ao mesmo tempo funciona espontaneamente, isto é, não é limitada por padrões e regras em que os casos particulares são simplesmente subsumidos, mas, ao contrário, produz os seus princípios pela própria atividade de julgar, apenas nessa suposição

512 Ibid., p. 169.

513 ROVIELLO, 1997, p. 109 (destaque da autora).

podemos nos arriscar nesse terreno moral muito escorregadio, com alguma esperança

de encontrar um apoio para os pés515.

Segundo Annabel Herzog, “Arendt compreendia a responsabilidade em termos de presença política”516. E, no contexto da abordagem da pensadora, esta presença deve ser considerada em sua dupla configuração: seja mediante a ação, pela qual alguém se torna presente na presença de outrem, seja no sentido de tornar a outros presentes na mente desse alguém, o que se dá pelo exercício do pensamento representativo. Levando-se, igualmente, em conta esses dois aspectos ou modos de, politicamente, fazer-se presente, a responsabilidade, arendtianamente falando, efetiva-se “na conexão entre esses dois tipos de presença”517. O pressuposto fundamental de tal compreensão não é outro senão a ideia de humanidade ou, para dizer em outros termos, o senso ou sentimento de pertença à comunidade política. Toda presença política encontra lugar na rede das interrelações que constituem o plural espaço-entre os homens, no qual, aqueles que dele compartilham, experimentam a simultaneidade do atuar e do padecer os impactos da ação518.

Por conseguinte, fica muito difícil falar, propriamente, de responsabilidade pessoal e política num contexto em que se implementa a perda do sentido de pertencimento, como é o caso, discutido anteriormente, nas sociedades de massas. E, é quase impossível, senão impraticável a ela se referir no extremo da aterradora dominação totalitária, a ser sempre rememorada quando o que se intenta é vislumbrar os traços de uma plausível perspectiva ético- política para tempos em que a possibilidade de sua reincidência é como um espectro sempre a rondar. Em ambas sociedades de massas – prototalitária e totalitária – processa-se a deserção da política ou, o que é o mesmo, o cerceamento da presença política nas experiências da ação e do juízo, fazendo sucumbir o sentimento de humanidade que alcança realidade nas vivências de um agir que, espontaneamente, dá início a algo novo e de um julgar que se implementa pelo proceder do pensamento representativo. A perda de tal sentido ou sentimento, experimentado por quem se deixa afetar por aquilo que, para ficar na gramática kantiana, “interessa apenas em sociedade”, perverte todo senso de responsabilidade pelo mundo, revelando, pela via negativa, a profunda conexão que existe entre senso de pertença (ao mundo) e experiência do amor mundi, a sua mais brilhante expressão.

515 RJ, 2010, p. 89.

516 HERZOG, 2014, p. 185 (tradução nossa, destaque nosso). No original, leia-se: “Arendt understood

responsibility in terms of political presence”.

517 Idem (tradução nossa). No original, leia-se: “[...] in the connection between these two types of presence”.

Certa do significado ético-político da perda do senso de pertença à comunidade política, o sensus communis, Hannah Arendt, sempre atenta à vida cotidiana, do mesmo jeito que sabe da possibilidade não pequena de esbarrar com alguém que não se importa com a socrática questão de com que companhia lhe apraz viver, tem plena consciência da latente tendência moderna de recusa ao exercício do julgar. Diz ela:

É claro que posso recusar-me a fazê-lo e formar uma opinião que leva em consideração apenas meus próprios interesses ou os interesses do grupo ao qual pertenço; com efeito, nada mais comum [...] do que a cega obstinação que se manifesta

na falta de imaginação e na incapacidade de julgar519.

É, pois, ante a essa atmosfera de incompreensão de que “o domínio do doxai requer o juízo, o que pressupõe a presença de outros”520, isto é, o espaço público do debate pelo qual se qualifica uma autêntica opinião, que Arendt fará a defesa da dignidade da mesma.

Nesse seu posicionamento, a pensadora contrapõe-se às concepções que, tradicionalmente, consideraram a opinião como uma forma desprezível de conhecimento a ser abandonada para que se alcance a verdade ou, pelo menos, a ser abandonada assim que da verdade se tenha apossado, como é o caso – para ficar apenas nos que são, diretamente, nomeados pela autora, em “Verdade e política” – de Platão, que equaciona a opinião com a ilusão, e de Hobbes, que a ela se refere como a uma mera eloquência vigorosa que se pauta tão somente pelas paixões e pelos interesses privados e mutáveis dos homens521. Segundo Arendt, bem ao contrário dessa perspectiva preconceituosa, se bem compreendido, verifica-se que

O próprio processo da formação de opinião é determinado por aqueles em cujo lugar alguém pensa e utiliza sua própria mente, e a única condição para esse exercício da imaginação é o desinteresse, a liberação dos interesses privados pessoais. Por conseguinte, [no transcurso de formação de uma opinião,][...] não estou simplesmente junto apenas a mim mesmo, na solidão da meditação filosófica; permaneço nesse mundo de interdependência universal, onde posso fazer-me representante de todos os

demais522.

Se se pode dizer, por um lado, que a opinião se articula a partir de “uma forma distinta de conhecimento, que surge da deliberação coletiva dos cidadãos e que requer o uso da imaginação e a capacidade de pensar ‘representativamente’”523, não dá para concluir, por outro,

519 EPF, 2016, p. 300.

520 ASSY, 2016, p. 179

521 Cf. EPF, 2016, p. 288-90. Em seu texto, Arendt destaca que “esse antagonismo entre verdade e opinião foi

elaborado por Platão (especialmente no Górgias) como o antagonismo entre a comunicação em forma de ‘diálogo, que é o discurso adequado à verdade filosófica, e em forma de ‘retórica’, através da qual o demagogo, como hoje diríamos, persuade a multidão” (Idem, p. 290). Em Hobbes (Cf. 1997, p. 485), completa ela, verifica-se também a oposição entre um raciocínio “fundado em princípios de verdade” e aquele que se apoia em opiniões (Cf. Ibidem).

522 EPF, 2016, p. 299-300.

523 ENTRÈVES, 2001, p. 128. No original, leia-se: “[...] a distinct form of knowledge which arises out of the

collective deliberation of citizens, and which requires the use of the imagination and the capacity to think ‘representatively’”.

que, na esfera da política, a verdade não tenha nenhum papel significativo. Aliás, o que Arendt coloca em questão não é, propriamente, a pesquisa dos princípios filosóficos gerais, mas a tentativa de impô-los, como um padrão universal, à esfera dos assuntos humanos. O problema está, portanto, nas consequências negativas advindas da imposição de uma tal verdade racional que, acolhida em sua unicidade e universalidade, coloca-se, coercitivamente, em contraposição à radical pluralidade inerente ao espaço público524. A imposição de padrões universais incorre, pois, em muitos danos: além de tender a reduzir o pensamento a um exercício de dedução lógica, dispensa a experiência do juízo e reduz o agir ao behaviorístico comportar-se de acordo com normas preestabelecidas.

A verdade que detém significação para o âmbito da política é a verdade factual que, segundo Arendt, “é política por natureza”525. Ao contrário da verdade racional que, circunscrita ao embate dos filósofos, impõe-se como autoevidente, a verdade dos fatos “relaciona-se sempre com outras pessoas: ela diz respeito a eventos e circunstâncias nas quais muitos são envolvidos; é estabelecida por testemunhas e depende de comprovação; existe apenas na medida em que se fala sobre ela”526. Observa-se, também que, embora pertença ao mesmo domínio, fatos e opiniões não se confundem. Efetivamente, os fatos fornecem os dados elementares que – sendo documentados e/ou confirmados pelo testemunho da comunidade – subsidiam a formação de opiniões procedentes. De forma que se pode falar que, do exato modo como a verdade racional ilumina a especulação filosófica, a verdade factual informa opiniões527, nunca esquecendo, porém, que “essas verdades, embora nunca sejam obscuras, tampouco são transparentes, e é de sua própria natureza resistir à ulterior elucidação”528. A considerar, no caso dos fatos, a acidentalidade que lhes é inerente529, só um pensamento sem corrimões, que se empenha em ser também representativo, pode lograr alcançá-los em sua real particularidade.

Nesse contexto, é importante sempre ter em mente que a máxima da mentalidade alargada, como antes discutido, pressupõe continuamente o empenho de pensar por si mesmo, do que se infere a exigência de “que se mantenha a consciência da diferença entre belo e feio, bem e mal, verdadeiro e falso e, acima de tudo, real e fictício”530. Nesses tempos sombrios das

524 Cf. EPF, 2016, p. 305. 525 Idem, p. 295. 526 Ibidem. 527 Cf. EPF, 2016, p. 295. 528 Idem, p. 300.

529 Sobre essa acidentalidade dos fatos, no âmbito dos negócios humanos, completa Arendt (Ibidem, destaque

nosso): “[...] em nenhum lugar essa opacidade é mais patente e irritante do que ao nos confrontarmos com fatos e verdades fatuais, pois os fatos não têm razão conclusiva alguma, qualquer que seja, para serem o que são; eles

poderiam, sempre, ter sido de outra forma, e essa aborrecida contingência é literalmente ilimitada”.

chamadas fake news, no ambiente das contemporâneas sociedades de massas em seu flerte com as tendências totalitárias, essas diferenças, especialmente, entre o verdadeiro e o falso, o real e o fictício ficam, estrategicamente, obscurecidas, comprometendo a capacidade humana de formar opiniões531. Numa tal situação, como diz a própria Arendt, “a liberdade de opinião é uma farsa”532. De maneira que, vale lembrar, uma das marcas distintivas da verdade factual é que o seu oposto, longe de ser a opinião, é antes “a falsidade deliberada, a mentira”533 propositalmente produzida para fins de imagem ou intencionalmente organizada para fins políticos.

Ao tratar dessa questão em seu ensaio “Verdade e política”, Hannah Arendt faz questão de pontuar que esse “fenômeno relativamente recente da manipulação em massa de fatos e opiniões, como se tornou evidente no reescrever a história, na criação de imagens e na política governamental efetiva”534, é diferente daquela “tradicional mentira política, tão proeminente na história da diplomacia e da arte política”535. Uma coisa é segredar “dados que nunca se haviam tornado públicos, ou as intenções [que, objetivamente,] não passam de potencialidades”536 ou conjecturas; outra completamente diferente é, por exemplo, a tentativa de forçar uma reescrita da história “sob os olhos daqueles que a testemunharam [...] [ou, o que dá no mesmo, negligenciar, manipular ou negar] todo fato conhecido e estabelecido [...] caso possa vir a prejudicar a imagem”537 de como as coisas deveriam ser ou foram, convenientemente, projetadas para parecer538. Essa tentativa desesperada de substituir a realidade dos fatos por uma ficção pré-moldada para garantir segurança ante à imprevisibilidade inerente a todo

531 Segundo pesquisa realizada pela Transparência Internacional (no Brasil, a coleta de dados coincide com os

primeiros meses do Governo Bolsonaro, início de 2019), “quatro em cada cinco brasileiros acreditam que notícias falsas foram disseminadas para influenciar a eleição”. De acordo com os números do “Barômetro Global da Corrupção: América Latina e Caribe”, entre os 18 países participantes da enquete, destacam, negativamente, os seguintes: Bahamas (85%), Brasil (82%), Argentina (81%) e Venezuela (80%). A considerar, no entanto, a margem de erro de 2,8 pontos percentuais para mais ou para menos, esses quatro países empatam na liderança do ranking como países que revelam conter os mais altos índices de ocorrência de fake news (Cf. MARCHAO, 2019).

532 EPF, 2016, p. 295. No contexto de intransparência severa, em que as informações são manipuladas ou em que

as fake news travestem-se de notícias, cabe lembrar, com Arendt (LFPK, 1993, p. 65), que “para Kant, o momento de rebelar-se é aquele em que a liberdade de opinião é abolida”.

533 Idem, p. 308.

534 EPF, 2016, p. 311.

535 Idem.

536 Ibidem.

537 EPF, 2016, p. 311-12. Segundo Arendt, as mentiras desse tipo, forjadas para fins de imagem ou fins políticos,

“abrigam um germe de violência; uma mentira organizada tende sempre a destruir aquilo que ela decidiu negar” (Idem, p. 312).

538 Segundo Arendt, “lutar contra as ideologias firmadas nas filosofias da história, desestimuladoras da ação e da

crença na capacidade humana de julgar sem parâmetros” (WAGNER, 2006, p. 281), implica mais do que um embate teórico-filosófico. Na sua compreensão, “contra a ideologia apenas a pluralidade humana poderia antepor- se” (Idem, p. 244). Para Arendt, “a ideologia era o perigo maior [...] e esse foi o motivo pelo qual voltou suas reflexões para a vita activa: para a liberdade como razão de ser da política” (ibidem).

acontecer ou certeza frente à ambiguidade que o caracteriza é por demais reveladora. Ela situa, aquele que nessa tentativa embarca, na bisonhice ou inexperiência, na qual se acanham os que se entregam a uma verdade que, afeita à moldura dos clichês ou dos jargões, dispensa a ação capaz de inaugurar o novo na história, até porque, antes, tornou supérfluo o juízo.

A existência política é dinâmica e, em seu incessante acontecer, a exigência do discernimento se coloca. Ante às circunstâncias mais inusitadas, que fogem a todo padrão de medida, só resta entregar-se à ousadia de pensar sem corrimões e permitir-se à experiência de confrontar-se, pelo exercício compreensivo do julgar, com a estranheza típica de todo acontecimento. E aí, ante ao que não se enquadra, cabe insistir não na ilusória sensação de ter as coisas sob controle, mas em buscar parâmetros de reflexão que, embora não sirvam para determinar coisa alguma, permitem a experiência autônoma, intersubjetiva e compreensiva de, atendo-se ao acontecido ou ao que está a acontecer, articular uma posição na realidade da cena política capaz de contribuir no debate que, no âmbito do espaço público, visa concertar as ações no presente539. Ora, a mentira organizada, em sua tentativa de forjar imagens ou reescrever a história, mais não é que a expressão de “um pensamento cindido da realidade”540, revelando