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3 AÇÃO, PENSAMENTO E JUÍZO: DOS MODOS DE ENTRELAÇAR

3.1 AÇÃO, SINGULARIDADE E RESPONSABILIDADE: DA IMBRICAÇÃO

3.2.1 Pensamento, singularidade e responsabilidade: do desafio de compreender à

3.2.1.1 A atividade de pensar: o desafio de compreender o que acontece

Embora se possa verificar em pensadores anteriores como Heidegger257 a preocupação com a questão do pensamento, será em Hannah Arendt que se encontrará uma experiência como ponto de partida para as suas especulações acerca das atividades do espírito, notadamente a atividade de pensar. Trata-se da experiência de deparar-se, no dizer dela, com a “banalidade do

Seus escritos filosóficos têm como base sua dedicação anterior aos conceitos de política, ação e espaço público – aqui está o fundamento imprescindível para compreender sua abordagem posterior das faculdades do espírito”.

256 AGUIAR, 2002, p. 83.

257 Heidegger exerceu significativa influência na articulação da compreensão arendtiana sobre a faculdade do

pensamento. Nele já se encontra a constatação de que “o que mais requer se pensar em nosso tempo problemático é o fato de que nós, todavia, não pensamos” (HEIDEGGER, 2005, p. 27, tradução nossa. Na versão em espanhol, leia-se: “[...] lo que más requiere pensarse en nuestro tempo problemático es el hecho de que nosotros no pensamos todavia”). Não que os indivíduos não pensam, completará ele, no sentido de não serem capazes, mas que resistem a pensar.

mal”258, referindo-se ao fato de, ao assistir ao julgamento de Adolf Eichmann em Jerusalém, dar-se conta não da estupidez, mas da irreflexão, da ausência de pensamento que, aliás, constatará ela, é “uma experiência tão comum em nossa vida cotidiana, em que dificilmente temos tempo e muito menos desejo de parar e pensar”259. É, pois, por esta via, como num ensaio especulativo sobre a privação de pensamento e suas consequências, que a autora entrará na seara das atividades espirituais.

Ao refletir sobre a atividade de pensar no sentido mais estrito do termo, Arendt compreende que esta corresponde a um impulso genuinamente humano que se manifesta como uma necessidade, inerente ao ser pensante, de compreender o mundo em que vive e de refletir sobre o lugar que nele ocupa, o que situa o pensar para além dos limites do raciocínio ou da contemplação e é o suficiente para fazer da habilidade de pensar algo mais que um instrumento para conhecer e agir. É esse compreender o significado daquilo que lhes ocorre que faz com que os homens experimentem, realmente, o estar vivos. Inspirando-se em Sócrates, ela dirá: “Uma vida sem pensamento é totalmente possível, mas ela fracassa em fazer desabrochar a sua própria essência – ela não é apenas sem sentido; ela não é totalmente viva. Homens que não pensam são como sonâmbulos”260.

Para a distinção que interessa à autora retomar e que será um dos pressupostos basilares da reflexão que desenvolverá n’A vida do espírito importa afirmar que Hannah Arendt compreende que a atividade de pensar “surge da necessidade de a razão buscar um sentido”261. A referência de fundo, aqui, é a clássica distinção entre razão (Vernunft) e intelecto (Verstand), implementada por Immanuel Kant, em seu esforço por conferir maior amplitude ao exercício do pensar, abrindo caminho para o pensamento especulativo262. A base mais elementar dessa distinção, segundo o pensador, está no fato de que “os conceitos da razão nos servem para conceber [begreifen, compreender], assim como os conceitos do intelecto nos servem para apreender percepções’”263. Enquanto é próprio do intelecto (Verstand) desejar apreender o que

258 VE, 2009, p. 17.

259 Idem, p. 19.

260 Ibid., p. 214.

261 FRY, 2010, p. 120.

262 Em seu projeto de refundação da metafísica, isto é, de superação da carcomida metafísica dogmática, Kant, no

âmbito de sua Crítica da razão pura, promove um resgate da multidimensionalidade da razão. Na obra, ele esclarece que “a razão não produz, propriamente, conceito algum, apenas liberta o conceito do entendimento das limitações inevitáveis da experiência possível, e tenta alargá-lo para além dos limites do empírico, [...] [de modo que] as ideias transcendentais não são, em verdade, mais que categorias alargadas até ao incondicionado” (KANT, 2013, B435-B436, p. 381, destaque do autor). Nesta linha de conceptualização, trata-se, pois, a ideia, de uma representação à qual não corresponde nenhum dado sensível. Um exemplo é a ideia de liberdade, que acontece sem causa ou constrangimento. Sobre o cânone da razão pura e este uso especulativo da razão, cf. Idem, B823- B828, p. 633-36.

é dado aos sentidos, a razão (Vernunft) almeja compreender o significado do que é dado aos sentidos. Tal distinção colocará, em dois campos diferentes, duas atividades espirituais, cujos interesses são igualmente díspares: de um lado, a faculdade de pensar e seu interesse pelo significado; de outro, a faculdade de conhecer e seu interesse pela cognição.

A faculdade de pensar situa-se na esfera da razão que, em seu interesse pelo incognoscível, projeta-se para além dos limites da cognição e do intelecto e não tem sua necessidade “inspirada pela busca da verdade, mas pela busca do significado. E verdade e significado não são a mesma coisa”264. Já a faculdade de conhecer, comprometida com a cognição, “cujo critério mais elevado é a verdade, deriva esse critério do mundo das aparências no qual nos orientamos através das percepções sensoriais”265. Isso permite que se chegue a duas conclusões preliminares: a primeira é que se pode estabelecer uma conexão entre ciência e senso comum. Ambos pertencem ao mundo do visível, do tangível, do verificável empiricamente. Dessa forma, enquanto a ciência e o senso comum situam-se no horizonte do mundo fenomênico, o pensamento, como se verá a seguir, “retira-se [...] deste mundo e de sua natureza evidencial”266. Diferentemente da ciência e do senso comum, que constroem uma gama de conhecimentos a ser incorporada, como patrimônio, por este mundo, o pensamento, em seu exercício crítico e autocrítico, “guarda em si uma forte tendência autodestrutiva”267; e, a segunda é que há uma nítida distinção entre verdade e significado, posto que, se a verdade se situa na evidência dos sentidos, “não é [esse] o caso do significado e da faculdade do pensamento que busca o significado; essa faculdade não pergunta o que uma coisa é ou se ela simplesmente existe [...] mas o que significa, para ela, ser”268.

Observará a pensadora que essa diferenciação entre verdade e significado, consequência necessária da distinção entre intelecto e razão, é decisiva para a investigação sobre a natureza do pensamento humano. Se o conhecimento está sempre em busca da verdade, o mesmo não se pode afirmar em relação ao exercício do pensar. Aliás, “esperar que a verdade derive do pensamento significa confundir a necessidade de pensar com o impulso de conhecer”269. Diversamente do pensar, que tem fim em si mesmo e refere-se ao significado, a cognição ou o conhecimento, por sua vez, utilizam-se do pensar tão somente como meio para alcançar

264 VE, 2009, p. 30 (destaque da autora).

265 Idem, p. 75.

266 Ibid., p. 73.

267 VE, 2009, p. 73.

268 Idem, p. 75 (destaque da autora).

verdades factuais, negando-o ou, pelo menos, empobrecendo-o em seu sentido mais pleno ou estrito.

Além das características gerais, já pontuadas, que compartilha com as demais atividades espirituais, os principais traços característicos da atividade de pensar são, portanto, “sua retirada do mundo das aparências, do mundo do senso comum; sua tendência autodestrutiva em relação a seus próprios resultados; sua reflexividade e a consciência da pura atividade que a acompanha”270. Em relação ao primeiro traço – sua retirada do mundo comum das aparências – vale lembrar que, enquanto o senso comum anseia conhecer o mundo e reunir todo tipo de conhecimento a seu respeito, o pensamento tem a necessidade de transcendê-lo, posto que “a vida em seu puro estar-aí é sem sentido”271. Pode-se dizer, portanto, que “pensar é retirar-se do mundo, sair do espaço movimentado dos acontecimentos e da presença dos outros, para poder refletir sobre o ocorrido”272. Arendt, aqui, destaca o fato de que o pensamento está sempre fora de ordem

[...] não só porque interrompe todas as demais atividades necessárias para os assuntos vitais e para a manutenção da vida, mas também porque inverte todas as relações habituais. O que está perto e aparece diretamente aos nossos sentidos agora está distante; e o que se encontra distante está realmente presente. Quando estou pensando não me encontro onde realmente estou; estou cercado não por objetos sensíveis, mas

por imagens invisíveis para os outros273.

Do ponto de vista do raciocínio do senso comum, “a busca do significado não só está ausente e é inteiramente inútil no curso rotineiro dos negócios humanos como também, ao mesmo tempo, seus resultados permanecem incertos e não verificáveis”274. Isso faz com que se depare com outro traço característico da atividade do pensar, qual seja, sua tendência autodestrutiva, o que faz dela um empreendimento instável e sem fim que, configurando-se como um permanente repensar-se, é sempre auto-implicativo. Nessa perspectiva compreensiva, o pensar não produz sabedorias perenes, nem insights perfeitos, nem conhecimentos irretocáveis, nem teorias acabadas e não chega a um sentido definitivo. A cada nova situação, é preciso pensar de novo e sempre. Como a necessidade de pensar só pode ser satisfeita pelo próprio pensamento em sua capacidade de repensar-se sempre, constata-se a reflexividade como um dos seus traços inerentes. O pensamento não produz efeitos duradouros para além dele mesmo. Não há, propriamente, pensamento para além do perdurar da atividade de pensar. Isso,

270 VE, 2009, p. 107.

271 Idem, p. 106.

272 ALMEIDA, 2011, p. 147.

273 VE, 2009, p. 104. Evidencia-se, assim, a imprescindível contribuição da imaginação, essa “capacidade para

transformar objetos sensíveis em imagens” (Idem, p. 103-4), sem a qual não se processa o pensar.

obviamente, torna compreensível “as objeções do raciocínio do senso comum em relação às inutilidades e à irrealidade de todo o empreendimento filosófico”275.

A considerar as características, acima delineadas, da atividade de pensar, compreende- se que a resistência à mesma não seja algo incomum e é até mesmo partilhada por filósofos metafísicos e certos atores políticos contemporâneos. Na resistência a este diálogo silencioso do eu consigo mesmo que é o exercício do pensar, “o filósofo metafísico vai em busca de princípios eternos, acolhe os sistemas como morada e se transforma num caçador do absoluto, um ‘cruzado do santo Graal’”276. Já um ideologizado militante político hodierno, com os olhos vidrados pelo necessitarismo de uma lei da história, por exemplo, mora numa petrificada chave de leitura que, exaltando um absoluto – agora terreno –, tudo articula num grande quadro explicativo, e assim, numa sociologização277 dos parâmetros metafísicos, acaba por subordinar a política a pressupostos extrínsecos à sua esfera278 e, por conseguinte, instrumentalizar ação e pensamento. Ambos, metafísicos clássicos e militantes políticos do tipo acima delineado, padecem de uma intenção normativa e, na incapacidade de vislumbrar as múltiplas perspectivas de todo acontecer no mundo das aparências, encantam-se com a soturna possibilidade de fazer soçobrar a inerente e insubmissa pluralidade deste mundo “a um padrão universal e eterno, a um ponto arquimediano a partir do qual seria possível manejar o conjunto da vida humana, reduzindo-a a um esquema inteligível”279.

Na base dessa substituição da realidade por uma representação que tudo transforma em objeto de determinação teórico-conceitual, que pretende enquadrar o pulsar do mundo num esquema prévio de explicação, encontra-se, segundo a mirada arendtiana, a motivação que visa “tornar útil o pensamento no mundo da vida prática dos homens”280. Foi para desconstruir essa confusão que Arendt, recorrendo a Kant, desenvolve uma interpretação peculiar da clássica distinção, posta pelo filósofo alemão, entre Verstand e Vernunft, entre o trabalho da cognição e a atividade do pensamento, entre o critério da verdade e a significação.

275 VE, 2009, p. 107.

276 AGUIAR, 2002, p. 84-5. Cf. CRITELLI, 2006, p. 11-54, onde se encontra uma criteriosa exposição acerca

dessa ambição de controlar a vida por parte do intelectualismo ocidental, investido da postura metafísica do pensar.

277 Cf. AGUIAR, op. cit., p. 92, nota 29.

278 Hannah Arendt, em vários dos seus textos, sobretudo em Sobre a revolução, comprometida com a ideia de

conceber a política baseada em pressupostos inerentes à própria política, deter-se-á sobre o incômodo e anacrônico problema do absoluto. Segundo Daiane Eccel (Cf. 2016, p. 47-54), este velho e crônico problema, inaugurado por Platão, intenta subordinar a política à metafísica. Lembra a articulista que “igualmente problemático, porém, é tentar transformar o absoluto metafísico em um absoluto terreno, ou seja, a transferência de uma figura supra- sensível para uma que está no nosso meio, mas que mantém o status do absoluto” (Idem, p. 49-50).

279 AGUIAR, op. cit., p. 85.

Em sua jornada de contraposição à perspectiva metafísica, na sua versão clássica ou sociologizada, Hannah Arendt encontrará na metáfora do espectador, relatada pelo historiador Diógenes Laércio (século III d.C.)281 e atribuída a Pitágoras282, uma possibilidade de articular uma forma não-metafísica de pensar. Na esteira do movimento hermenêutico arendtiano, importa situar os elementos envolvidos e averiguar as articulações que permitem captar a perspectiva que, aqui, se busca enfatizar.

O espectador, diferentemente do ator envolvido na cena, ao se colocar fora do jogo (de cena), ocupa uma posição que lhe permite “apreender [múltiplas] perspectivas, nunca a totalidade”283. A condição para compreender o significado do festival da vida é a retirada do envolvimento direto. Isso – considerando a tradição mais antiga de engajamento político dos filósofos, inclusive dos próprios pitagóricos – não justifica concluir que o filósofo abandona o mundo dos acontecimentos, mas que tão somente se retira, momentaneamente, do envolvimento ativo neste mundo, buscando uma posição que lhe permita perscrutar, no que aparece e para além do que se mostra, a significação sempre oculta. Observa Arendt que é “o espectador, e não o ator, [que] tem a chave do significado dos negócios humanos”284. Por sua vez, o ator, ao contrário do espectador, vive o seu protagonismo, colocando-se na ordem dos acontecimentos e almejando glória e fama285, mas não tem a chance, que o espectador tem, de compreender o que se oferece como espetáculo.

É importante atinar-se para o fato de que o espectador, atento ao desenrolar da cena da vida, dirige a sua atenção para a esfera da aparência, para o contexto da mundanidade. Ele não vai para um outro mundo e, “por essa razão, não chega a uma verdade última, mas perscruta e manifesta a significação”286. Seu olhar é perspectivo e visa, na intransparência inerente a todo aparecer, captar aí e não em outra esfera, essa significação que não se entrega fácil. Ela cobra

281 Cf. LAÊRTIOS, 2008, VIII, p. 230.

282 Diz a metáfora: “A vida [...] é como um festival, assim como alguns vêm ao festival para competir pelos

prêmios, outros para fazer negócios, mas os melhores vêm como espectadores [theatai]; assim também na vida os homens servis saem à caça da fama [doxa] ou do lucro, enquanto os filósofos se apresentam como amantes da sabedoria” (VE, 2009, p. 112). Além dessa citação, Arendt, em “A crise na cultura” (EPF, 2016, p. 273), também faz menção à parábola do espectador, pela referência a Cícero (Cf. 2010, V, 9, p. 313-15), que diz do espectador – os filósofos amantes da sabedoria – como completamente desinteressados (livres da ocupação de se ater em ganhar distinção gloriosa ou em obter ganho pela compra ou venda), o que os qualificava para julgar, e também como “os mais fascinados pelo espetáculo em si”.

283 ARAÚJO, 2006, p. 300.

284 VE, 2009, p. 115. Atentando-se para a palavra, “o termo filosófico ‘teoria’ deriva da palavra grega que designa

espectadores, theatai; a palavra ‘teórico’, até alguns séculos, significava ‘contemplando’, observando do exterior, de uma posição que implica a visão de algo oculto para aqueles que tomam parte no espetáculo e o realizam” (Idem, p. 112).

285 DP, 1993, p. 97: “A palavra doxa significa não só opinião, mas também glória e fama. Como tal, relaciona-se

com o domínio público, que é a esfera pública em que qualquer um pode aparecer e mostrar quem é”.

daquele que se coloca em seu percalço que, entrando num jogo de aproximação e distanciamento, se disponha a trilhar o caminho sem fim do compreender, como a sinalizar que a busca do significado acompanha o ser pensante a vida toda. Como as aparências não falam por si mesmas, cabe ao espectador, em seu exercício compreensivo, considerar as múltiplas perspectivas do real em suas manifestações sempre fugidias287.

Está claro para Arendt que pôr-se na perspectiva da aparência é romper com a tradição essencialista e intelectualista ocidental. A primazia da aparência, que se verifica no olhar atento do espectador que foca no que acontece ao homem no mundo, tem, para a pensadora, esse significado288.Não há lugar, na obra arendtiana, para a forma metafísica de pensar e nem para a forma de como esse pensamento se fez presente na esfera da ação política. Para a pensadora, o resgate da dignidade da política encontra-se entrelaçado à recuperação da dignidade do pensamento e a metáfora do espectador é a chave, no pensamento de Hannah Arendt, para se alcançar essa compreensão.

Se o espectador não é um metafísico, tampouco é ele um cientista moderno. Ele se dirige ao mundo das aparências numa postura de abertura para o acontecimento e não como quem intenta dissecá-lo ou dominá-lo. Como a própria autora destaca, “a primazia da aparência é um fato da vida cotidiana do qual nem o cientista nem o filósofo podem escapar”289. Na direção de Merleau-Ponty290, compreenderá Arendt que a significação não se trata de uma tematização da realidade. O pensamento, enquanto está livre dos esquematismos racionalizantes da cognição, não se deixa tomar pelo afã de ter, para toda questão, uma resposta única e definitiva. Mas, ao contrário, é um não se contentar com as respostas que já estão dadas ou com as perspectivas já captadas que move o espectador em sua busca de compreender.

Outro aspecto relevante a se destacar e que se liga, diretamente, ao pressuposto da primazia da aparência refere-se à linguagem que, prestando-se ao uso metafórico, proporciona o trânsito entre o mundo das aparências e o domínio da invisibilidade do espírito, tornando aos homens capazes de pensar291. Assim, está certa Arendt de que “o discurso metafórico é, de fato,

287 Cf. DP, 1993, p. 39. A considerar que a significação é sempre multifacetada, Arendt, em suas Lições sobre a

filosofia política de Kant (1993, p. 81), ponderará que “os espectadores existem apenas no plural. O espectador

não está envolvido no ato, mas está sempre envolvido com seus companheiros espectadores”. Coloca-se aqui a exigência da comunicabilidade dos resultados sob a forma do exercício da faculdade do juízo – a ser abordada adiante – que eles têm em comum, mesmo porque a realidade daquilo sobre o qual refletiu o espectador está a depender da imprescindível presença de outros espectadores.

288 Cf. VE, 2009, p. 25.

289 Idem, p. 41.

290 Cf. MERLEAU-PONTY, 1999, p. 1-20. Nesse Prefácio, o autorsintetiza, de forma magistral, a sua resposta à

pergunta “o que é fenomenologia?”.

adequado para a atividade do pensamento, para as operações do nosso espírito”292. Convencida de que, na linguagem metafórica, é superada tanto a brecha entre a invisibilidade do pensamento e sua representação na fala quanto a anacrônica dicotomia dos dois mundos293, Hannah Arendt concluirá que “a metáfora, servindo de ponte ao abismo entre as atividades espirituais e o mundo das aparências, foi certamente o maior dom que a linguagem poderia conceder ao pensamento e consequentemente à filosofia”294.

Além de servir-se das metáforas, a atividade de pensar não se dá sem a faculdade da imaginação. Sucintamente, esclarece a própria Arendt: “Todo ato espiritual repousa na faculdade do espírito de ter presente para si o que se encontra ausente dos sentidos”295. Esse dom de associar representações quando não mais se conta com a presença do objeto, articula- se em dois momentos, segundo a consideração arendtiana: num primeiro, a imaginação promove a retirada do mundo das aparências, tornando distante o próximo; e, num segundo, ela torna presente o que está ausente aos sentidos, aproximando o distante296. Nesse jogo de distanciamento e de aproximação, possibilitado pelo dom da imaginação, pelo qual o espírito afasta-se das urgências da vida cotidiana, o pensamento, em sua espontaneidade – prescinde de regras, de lugar, de tempo, de quaisquer encadeamentos –, pode, situando-se entre o que não é mais e o que ainda não é, formular suas questões e perspectivar, de variadas formas, a possibilidade de respondê-las.

É pertinente reiterar que não obstante as diferenças, acentuadas por Hannah Arendt, entre o âmbito do pensar e a esfera da política, conforme enfatizado anteriormente297, nada mais

292 Idem, p. 48.

293 Cf. Ibid., p. 25.

294 VE, 2009, p. 125.

295 Idem, p. 94 (destaque da autora).

296 Cf. JARDIM, 2011, p. 127-8. Sobre a imaginação, sugere-se conferir os apontamentos da própria Arendt

reunidos no texto Da imaginação (Cf. LFPK, 1993, p. 101-107) e, em última instância, reportar a Kant (Cf. 2013, B151, p. 151) e, ainda, ao fragmento 4 de Parmênides, que diz: “Contempla como, pelo espírito, o ausente, com certeza, se torna presente” (BORNHEIM, 1993, p. 55).

297 Nas últimas páginas do tópico 2.1.4 (Cf. nota 188) deste trabalho encontra-se um rápido paralelo entre o pensar

e o agir político. A este, vale acrescentar duas breves objeções distintivas, referentes à espacialidade e à temporalidade: enquanto a ação política encontra-se espacialmente situada no mundo da concretude, o pensamento ou, como diz a própria autora, “o ego pensante, movendo-se entre universais e essências invisíveis, não se encontra,