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A cidade e o comércio em via pública: origens comuns

Refletir para recortar e abordar

1 | O COMÉRCIO INFORMAL E SUAS REPERCUSSÕES

1.1 Os contextos da atividade

1.1.4 A cidade e o comércio em via pública: origens comuns

A cidade, contexto original do comércio informal, remonta mais de 5.000 anos acolhendo e atuando com esta atividade entre outras no cotidiano das pessoas. Uma das vertentes históricas sobre a origem das cidades descreve um incremento na população das aldeias do Oriente Próximo, principalmente de especialistas – artesãos, mercadores, guerreiros e sacerdotes – o que resultou na necessidade da produção de um excedente de alimentos. O estabelecimento e a manutenção destes especialistas, com funções diferentes daqueles que cultivavam a terra, caracterizou a organização social que, junto à invenção da escrita, estabeleceram o advento da cidade nas civilizações oriental e ocidental (BENEVOLO, 2011, p. 10).

Desde então, os mercadores estão presentes nas ruas, inclusive como responsáveis pela formação desta estrutura social. O comércio é uma das principais atividades humanas, e está na base da organização social disposta em funções de subgrupos especializados de um coletivo. A complexidade das atividades de subsistência vai aumentando com a caracterizada vida em sociedade nas cidades. O incremento por meio da especialização aconteceu como nas outras atividades, mas o complexar da atividade de mercador, base da formação burguesa, não retira completamente esta atividade das ruas. O comércio se subdivide por meio de seus atores: os que mantêm a origem nas ruas e os que ascendem dentro de uma organização social que os distingue.

Na Idade Média, um processo de ressurgimento das cidades se inicia e com ele os mercadores se tornam maioria, assim como os artesãos. Vivem às margens da organização feudal e refugiam-se nas cidades, por não encontrarem trabalho nos campos. Fatores como escassez dos meios, raridade de técnicos especialistas, falta de cultura artística organizada, urgência da necessidade de defesa e sobrevivência levaram a uma adaptação dessas pessoas ao ambiente natural, de maneira liberta e confiante, em que simplificaram, deformaram e estabeleceram novas instalações, sem o respeito ao que ali havia previamente – ruínas ou paisagens (op. cit., p. 255).

Aumento da população e da complexidade das atividades para dar suporte à vida de um modo geral são fatores que baseiam comportamentos que observamos até hoje,

no seio de qualquer cidade. A indisciplina como reação ao estabelecido, consequentemente, está presente desde o início.

Apesar da liberdade de concepção formal que as cidades medievais apresentavam, por orientação cultural, eram previstos espaços destinados ao comércio e outras atividades em via pública.

As ruas não são todas iguais, mas existe uma gradação contínua de artérias principais e secundárias; as praças não são recintos independentes das ruas, mas largos ligados estreitamente às ruas que para elas convergem. Somente as ruas secundárias são simples passagens: todas as outras se prestam a vários usos: ao tráfego, à parada, ao comércio, às reuniões. (BENEVOLO, 2011, p. 269).

Nem sempre as atividades prosaicas do cotidiano das ruas de uma cidade foram ignorados. Em meio àquela formação irregular, a ordem vigente contemplava alguns usos. Poderia até dizer que se tratava de uma incipiente setorização, que respeitava a diversidade de ações possíveis no espaço urbano.

Com a Revolução Industrial, a rapidez das transformações e suas repercussões na vida social foram tão intensas que os problemas decorrentes começam a aparecer e com eles as possíveis “soluções”. As classes “dominantes” são aconselhadas a investirem no campo imobiliário, aproveitando-se da iniciativa privada e, ao mesmo tempo, da “desordem urbana sem sofrer-lhe as consequências.” (op. cit., p. 552).

Com o intuito comum de sanar os problemas oriundos das transformações desenfreadas das cidades industriais, representantes de grupos que começavam a se distinguir socialmente, buscam soluções calculadas por meio de reformas setoriais, ou pela idealização, na teoria, de setores habitacionais completamente novos. Mas, tratava-se de uma situação que se aprofundava cada vez mais em seu perfil de estratificação social, com repercussão na configuração das cidades.

De ambientes puramente naturais a construídos, passando pela formação de aldeia, a origem de uma cidade se caracteriza por um incremento da complexidade de formas de trabalho para atender a uma população crescente. Neste processo, a diferenciação entre as pessoas, pelos papéis que exercem nesta estrutura de

atividades é um dos principais traços. Segundo Benevolo, dois tipos básicos de grupos de pessoas emergem desta diferenciação.

Nasce, assim, o contraste entre dois grupos sociais, dominantes e subalternos: mas, entrementes, as indústrias e os serviços já podem se desenvolver através da especialização, e a produção agrícola pode crescer

utilizando estes serviços e estes instrumentos. A sociedade se torna capaz

de evoluir e de projetar a sua evolução. (BENEVOLO, 2011, p. 23).

A diferenciação em apenas dois grupos – “dominantes e subalternos” – talvez possa suprir uma análise sobre a vida social daquele tempo, porém, rapidamente, esta classificação se torna insuficiente e esconde os diversos matizes que o aumento das relações entre indivíduos, grupos e ambientes cria na vida social das cidades, com a “evolução”, citada pelo autor.

O modelo de cidade pós-liberal, estabelecido após as revoluções de 1848, repercute até hoje no tipo de organização que temos nas cidades. O limite fixado entre administração pública e propriedade privada torna-se mais definido, acarretando na dependência da determinação de um ou de outro, para a utilização dos espaços urbanizados. O desenho da cidade é formado pelas linhas de limite entre os espaços público e privado e esta organização, que acontece do centro para a periferia, encarece o custo da moradia e desloca os itens necessários ao funcionamento da cidade (armazéns, indústrias etc.) para o subúrbio e com eles a classe mais pobre.

Em relação aos problemas causados por este modelo, como grande densidade no centro e carência de moradias acessíveis economicamente, são tomadas medidas paliativas, como construções de parques públicos e casas populares. Quanto à forma, um misto de destruição de itens antigos e manutenção de monumentos, ruas e praças principais, caracterizou as medidas neste sentido. A ordem para efetivar as transformações necessárias para a resolução dos problemas da cidade vem de forma que a diferenciação entre técnicos e artistas se torna cada vez maior, sendo que aqueles devem executar as medidas impostas e torná-las aceitáveis, e estes devem trabalhar somente sobre os aspectos exteriores da cidade (op. cit., p. 573- 586).

Estes fatores dizem respeito à situação da maior parte das cidades ocidentais europeias, na segunda metade do século XIX, mas parece que estamos falando sobre cidades contemporâneas, de modo geral, guardando as devidas especificidades e atualizações.

Industriais, liberais, pós-liberais, modernas, contemporâneas (pós-modernas ou hipermodernas), ao longo da evolução, as cidades guardam algumas dicotomias sociais – dominantes-dominados, público-privado, individual-coletivo – como traço inerente. A atividade do comércio informal nasce com e permanece na cidade. Os aspectos que a formam são de base universal.

Sirvo-me destes breves aspectos e momentos da história da cidade, para trazer à pesquisa as origens da situação atual, que há muito é marcada pela distinção entre diversos grupos e seus interesses, no que se refere ao oferecido, de moradias a serviços públicos.