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A composição do ponto de comércio – uma ‘abordagem ecológica’

Refletir para recortar e abordar

1 | O COMÉRCIO INFORMAL E SUAS REPERCUSSÕES

1.3 As implicações do design na atividade

1.3.3 A composição do ponto de comércio – uma ‘abordagem ecológica’

Para abordar o aspecto social do design na atividade em questão, analiso os efeitos da composição dos elementos físicos sobre seus agentes, na medida da satisfação de suas expectativas. Parto, então, do que lá está, em cada ponto de comércio observado, como variável independente.

Antes da análise de qualquer ocorrência dentro do design como um fenômeno, estudá-lo em sua completude é observar duas fases importantes de sua existência. A primeira diz respeito ao processo pelo qual o fenômeno foi gerado. Uma vez concebido, a atuação em si, representada pelo seu uso, e a interação com o meio – espaço e outros objetos – completam o fenômeno como um sistema. O design como um fenômeno encerra em qualquer um de seus resultados a interface entre sua geração e atuação.

O resultado de design observado e analisado, é fruto do trabalho do comerciante e engloba todo o sistema descrito nos três âmbitos principais: contexto, atividade e interface. O processo de concepção deste sistema, resumidamente, se dá em primeiro lugar, pela escolha do lugar e, a partir disso, pela composição dos aparatos para o funcionamento da atividade, relacionando-os com o lugar e com o que lá já está, em termos de elementos físicos.

Na análise da atividade, o ponto de partida é a configuração geral da situação, no que tange aos atributos dos três âmbitos identificados, que possibilitam copresença, permanência e ações do desenrolar da atividade. Com isso, analiso a conjunção dos elementos físicos e do espaço, o que me auxilia entender o efeito da forma resultante desta conjugação nos agentes e ações da atividade.

Antes de interagirem como um sistema, os elementos físicos são dispostos no espaço por meio de uma composição. No campo do design, temos o conceito de composição como o artefato, ou conjunto de artefatos dispostos e integrados como um todo, resultado do ato projetual. É crucial o entendimento do efeito da composição formal do ponto de comércio como um todo no sistema de encontros do lugar em que se insere. Este é um dos aspectos, ou variáveis, que falam sobre a qualidade do ponto de comércio, atendendo a sua função básica de venda de produtos e, subsequente ou consequentemente, como promotor de vida social. Com um mesmo espaço, a composição pode ser feita de várias maneiras diferentes. A interpretação de quem compõe e a variação da disposição dos elementos distinguem a composição e isso interfere sobremaneira no contexto da atividade.

Busco seguir uma sequência hipotética de procedimentos por parte do comerciante como designer, quando da escolha do lugar para a composição de seu próprio posto de trabalho. A ambiência decorre das propriedades do lugar que serão percebidas pelo comerciante. Ali é um bom lugar para se estar e montar o seu ponto. Para a composição dos elementos físicos que dão suporte à atividade, um outro tipo de percepção é acionada. É um olhar mais direcionado para o que o ambiente proporciona, além de ser bom para se estar. Estão em jogo as propriedades do que faz parte daquele ambiente e que beneficiam o funcionamento da atividade. O que dali ele pode aproveitar para, a partir disso, iniciar a sua composição?

O entendimento da estrutura da composição em termos visuais se mantém na seara das investigações sobre a percepção humana, com diversas linhas de pensamento, que de certa forma se complementam em suas divergências. A Teoria da Affordance, traduzida para o português como Teoria da Abordagem Ecológica, defende a percepção animal humana como aquela que envolve de modo inseparável um dado ambiente e seu observador. James Jerome Gibson tem no conceito de ecologia a referência para a defesa desta teoria e nega a sua abordagem como fenomenológica ou física (GIBSON, 1986).

A peculiaridade de proporcionar (afford em inglês) mutuamente benefícios (ou prejuízos), na relação dos seres entre si e com o meio em que vivem, levou Gibson a cunhar o termo affordance para denominar a teoria por ele fundamentada. Para

isso, conceitua ambiente como os arredores daquele que o percebe e nele exerce determinado comportamento, o animal/humano (Ibidem). Fisicamente, define ambiente como o conjunto de superfícies que separam substâncias do meio em que vivemos, animais e humanos. Diz que a composição e o leiaute destas superfícies, possivelmente, constituem o que elas possibilitam, oferecem.

Utiliza, também, o conceito de nicho, no embasamento de sua teoria, como um conjunto de affordances, referindo-se não ao lugar onde vivem mas como vivem os animais/humanos neste lugar. “Em ecologia um nicho é uma configuração de características ambientais que são adequados para um animal, no qual ele se encaixa metaforicamente.” (Ibidem)38

Affordance é o que pode ser percebido nos objetos e no espaço que compõem o ambiente e, por isso, uma unidade relativa a quem a percebe. É uma relação direta funcional entre o animal/humano e seu meio. Trata-se de distinguir as qualidades do meio para perceber o que ele oferece e aprender a usá-lo. E este conceito é estendido, por Gibson, para a questão social quando considera a relação entre humanos. “Comportamento proporciona comportamento, e todo o assunto da psicologia e das ciências sociais pode ser pensado como uma elaboração deste fato básico.” (Ibidem)39. Esta constatação é de grande relevância na análise do sistema da atividade, uma vez que as posições que as pessoas envolvidas ocupam e como o fazem na composição do ponto de venda, diz muito sobre a operacionalidade da composição e seu desempenho social. A percepção que o cliente, por exemplo, tem do comportamento do vendedor ou de seu ajudante implicará em seu próprio comportamento durante a sua estada ali.

Uma affordance pode ser natural ou mesmo construída e é sempre invariante, pois está sempre lá para ser percebida. O que mudam são as expectativas e necessidades humanas. Por se tratar da relação direta entre meio e observador, as informações tanto de um quanto do outro se complementam na formação de um ambiente ocupado, utilizado. O que o observador perceber como affordance no meio                                                                                                                

38 In ecology a niche is a setting of environmental features that are suitable for an animal, into which it

fits metaphorically. (Tradução livre)

39

Behavior affords behavior, and the whole subject matter of psychology and of the social sciences can be thought of as an elaboration of this basic fact. (Tradução livre)

em que está, vai dizer muito sobre ambos. Gibson resume, assim, a Teoria da Affordance como uma nova abordagem da psicologia que envolve a noção de propriedades invariantes do meio que relacionam dois extremos: as necessidades de um observador às superfícies que o ambiente oferece (Ibidem).

A preocupação com o modo como as pessoas interagem com os artefatos do cotidiano, levou Donald Norman a adotar os princípios da affordance no campo do design. Contudo, como sua pesquisa anterior se voltava para o estudo dos erros cometidos por parte do design e da engenharia, no projeto e fabricação de objetos ineficientes, ou excluídos da categoria do bom design, sua apropriação da teoria aconteceu de maneira redirecionada ou adaptada para o fazer design.

Para muitos pesquisadores, defensores da teoria da affordance original, Norman se apropriou dela de maneira equivocada. Enquanto o conceito original versa sobre uma percepção do meio por parte do observador, uma relação direta indicando a possibilidade e como usá-lo, Norman acredita

que as affordances dependem da nossa interpretação mental dos objetos, e consequentemente do conhecimento e experiências anteriores de cada indivíduo. (...) Essa visão é coerente com a teoria dos modelos mentais, uma vez que pressupõe um sistema cognitivo capaz de gerar representações dos objetos e de processar mentalmente as informações do ambiente. (SANT’ANNA, 2013, p. )

Em sua adaptação, Norman insere, ou modifica o modo como as affordances acontecem. Desta vez, elas são construídas cognitivamente. Pode-se fazer, então, uma comparação do tipo: affordance pela percepção de Gibson e affordance pela cognição de Norman. Tanto uma quanto a outra, dependendo do que se vai analisar, são de extrema importância no campo do design, especificamente. Concluo, então, que existem dois modelos de affordance, o de Gibson e o de Norman, e não uma apropriação equivocada da teoria do primeiro pelo segundo.

O modelo de affordance de Norman se aplica a problemas cujo foco principal é o “design apropriado e centrado no humano” (NORMAN, 2006, p. 15). Para ele, não existe erro humano, mas objetos mal projetados que levam ao uso equivocado, ou simplesmente, mau uso. Em seu estudo, affordance é um dos quatro princípios de

design, entre modelos conceituais, feedback (ou retorno de informações) e restrições; está em um nível que avançou para a sua aplicação em projetos, “para que designers se certifiquem de que seus produtos sejam compreendidos e usáveis” (opus cit, p. 11). Acredito que aí reside a diferença entre os dois modelos de affordance.

Contudo, mesmo sendo a tese desenvolvida também e principalmente sob o viés do design, a apropriação da Teoria da Abordagem Ecológica se dá aqui sobre o modelo de Gibson. Avalio o quanto o que está disponível no contexto, no lugar escolhido, proporciona à atividade e como é percebido e apropriado pelo comerciante. Apesar de utilizar o que foi percebido, não considero que houve um acionamento de bagagem de conhecimento específica e significativa para tal. Este modelo se aproxima do nível inconsciente, cunhado por Holanda, montando um perfil de atuação do comerciante, no que diz respeito à composição que possibilita o funcionamento da atividade.

Conclusão do capítulo

O estudo da atividade do comércio informal no espaço urbano conduziu a um recorte referencial em que foram visitadas obras e textos nas áreas de arquitetura, design, psicologia (percepção), sociologia e “ciência dos sistemas”.

Uma das primeiras delimitações do problema foi encarar a atividade como um sistema constituído de três âmbitos: atividade, contexto e interface (entre ambos). A organização deste sistema foi motivada, primeiramente, pelos aspectos do lugar, no que se refere à forma do espaço escolhido para a atividade. Para entender esta lógica, me apoiei nos princípios da Teoria da Sintaxe Espacial. Por intermédio desta teoria entrei em contato com os conceitos de lugar (convexidade) e de possibilidades de movimento e visibilidade (axialidade) pela configuração do espaço urbano, que são caros na análise da repercussão do contexto de cada ponto de comércio observado nos aspectos sociológicos e funcionais do exercício da atividade .

Outros aspectos de natureza física são os desencadeados pelos elementos da arquitetura, que suportam a atividade em conjunto com os levados e montados pelo

comerciante. Parti da Teoria Geral dos Sistemas, com base na qual tracei as relações de complexidade entre lugar, elementos físicos e seus agentes. Foi possível, a partir daí, proceder com o desenvolvimento do estudo sobre a hipótese do sistema atividade/interface/contexto.

Com base na Teoria das Práticas Cotidianas, o comportamento da indisciplina foi esmiuçado, resultando na compreensão de que o comerciante age por meio de táticas para driblar as condições materiais e sociais a ele colocadas pelas estratégias de quem as oferece. Na análise ele é conjugado com o sistema material que engloba lugar, elementos físicos da arquitetura e paisagem e artefatos envolvidos.

A pesquisa sobre percepção ecológica, com base na Teoria da Abordagem Ecológica (Affordance) referencia as soluções dos comerciantes na montagem de seus postos de trabalho, na medida em que se beneficiam dos atributos de configuração do lugar escolhido para completar a composição, com os elementos que leva para montar.

A partir deste referencial teórico, pela conjugação das quatro teorias abordadas, parto para a descrição e explicação do método que a complementa, além de possibilitar e nortear o trabalho de campo desenvolvido.