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A cidade de Roma: microcosmo da decadência

No documento O império romano de Aurélio Vítor (páginas 122-143)

CAPÍTULO 2 – Império romano, uma história de decadência Reflexões sobre o passado

2.3 A cidade de Roma: microcosmo da decadência

“El problema de la decadência [...], diz Walbank (1987, p. 28), “es en sus raíces un

problema del hombre en sociedad”. Como apontamos acima, Aurélio Vítor assinalou em seu

texto o momento a partir do qual o mundo romano teria ingressado em um processo de declínio. O discurso decadentista, como observado na narrativa das Historiae abbreuiatae, fundamenta o exercício interpretativo levado a cabo pelo historiador e, pois, o escrutínio do mesmo nos permite compreender mediante quais condições o texto adquiriria sentido. Sendo assim, compete-nos interrogar quais seriam os sintomas de decadência que o historiador haveria de diagnosticar, enquanto ator social, no que tangia ao contexto em que se inseria.

Tendo em mente tais pressupostos, pautamo-nos na constatação de que, malgrado o caráter sintético de sua obra, Aurélio Vítor mostrou-se atento a determinadas situações que concerniam, em especial, à cidade de Roma ao longo da época imperial. Assim, propomos que as formas de inserção da Urbs, no interior das Historiae abbreuiatae, podem ser pensadas como um instrumento mediante o qual Aurélio Vítor procurou responder às transformações sociais que se processavam na época em que compôs sua obra, isto é, os meados do século IV. Muito embora o historiador residisse em Sírmio ao tempo em que redigiu a obra, o seu texto comportava certos elementos que parecem direcionados a um público mais familiarizado com a Urbs, na medida em que portariam um sentido singular apenas para aqueles potenciais leitores que conhecessem o espaço urbano de Roma com alguma profundidade.52 Tal se verifica, à guisa de ilustração, na passagem em que o historiador indicou dois prodígios que teriam antecipado o fim da dinastia dos Júlio-Cláudios (Hist. abbreu. 5.17). Um deles se referia à morte de determinadas galinhas, “das quais havia muitas e tão brancas e aptas [para fins] religiosos que atualmente (hodie) em Roma se reserva a elas um local” (grifo nosso). Flory (1989, p. 352) diz que a ligação estabelecida por Aurélio Vítor entre as aves e a religião remetia a um dado espaço, localizado a oeste do monte Viminal, em que provavelmente

52 Talvez para uma fração do público, que reunisse a capacidade de compreender e de responder a dadas referências culturais, a topografia da cidade pudesse exercer um papel mais saliente do que a cronologia dos fatos, conquanto mecanismo a conferir inteligibilidade ao passado (EDWARDS, 1996b, p. 42).

existia um galinhame, na metade do século IV, a fim de atender às necessidades das cerimônias rituais pagãs.53

Além disso, as Historiae abbreuiatae trazem informações acerca de eventos que diziam respeito à cidade de Roma em si, como se Aurélio Vítor estivesse a recolher parcos fragmentos de uma história local sob o domínio dos imperadores. Em Hist. abbreu. 30.2-31.1, o historiador destacou o fato de o Augusto Treboniano Galo e o César Volusiano terem se mantido em Roma, por causa de uma epidemia de peste que assolava a cidade no começo dos anos 250. Treboniano Galo e Volusiano teriam gozado de grande simpatia naquela ocasião, pois que se ocuparam das exéquias dos mais pobres com especial cuidado. As demandas dos habitantes da cidade também figuraram como o foco das atenções em Hist. abbreu. 35.7. Neste versículo, salientava-se o zelo com o qual Aureliano se encarregou da introdução do consumo da carne de porco na Urbs, para que a plebe romana não enfrentasse o problema da carestia de alimentos. Ademais, se reportava a supressão das denúncias fiscais e das acusações dos quadruplatores54, “que debilitaram lamentavelmente a cidade de Roma” (quae urbem

miserabiliter affecerant), uma vez que os registros e os demais documentos relativos à

questão teriam sido consumidos por um incêndio.

De modo similar, Aurélio Vítor sinalizou um episódio de transbordamento das águas do Tibre, como se verificaria por ocasião da chegada de Galieno ao poder (cf. Hist. abbreu. 32.3). No caso, o valor premonitório das enchentes do Tibre pode ser associado ao efeito mais primário que as cheias do rio causavam na cidade de Roma, isto é, a interrupção das atividades cotidianas, desde a circulação de pessoas até o cumprimento dos rituais religiosos

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Em fevereiro de 356, o imperador Constâncio II editou uma medida que previa pena capital para todos aqueles que comprovadamente se envolvessem com atos sacrificiais. Ao que parece, a lei foi direcionada, a princípio, para o prefeito pretoriano da Itália e da África, Flávio Tauro (cf. CTh. 16.10.6). Tilden (2006, p. 42) argumenta que a legislação antipagã promulgada por Constâncio II nos meados da década de 350 “should probably be viewed [...] as overturning the apparently pagan-friendly approach of Magnentius and enforcing the rule of Constantius and with that, his religion”. Todavia, é preciso recordar que a aplicação da lei passava pela ação diligente dos governadores de província e outros magistrados, entre os quais, naquele momento, se enumeravam ainda muitos não cristãos. Ademais, Watts (2011) ressalta que há uma vasta gama de indícios sobre a ocorrência de festivais públicos, ao longo de todo o século IV, em que se realizaram sacrifícios, sem mencionar que não se conhece registro de cidadão algum que tivesse sido acusado nos termos específicos da medida arrolada em CTh 16.10.6. Neste ensejo, a indicação feita por Aurélio Vítor ao lugar destinado às “galinhas brancas” em Roma comprova, de forma indireta, aquilo que Watts sublinha.

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A palavra “quadruplator”, durante a República, foi invocada para designar ora os delatores de um crime público, que agiam durante um processo visando à obtenção, como recompensa, de um quarto dos bens do condenado, ora aqueles que iniciavam os processos, como nos casos de usura, em que o montante da punição alcançava quatro vezes a soma dos bens extorquidos (a actio quadrupli). O emprego do vocábulo, nas Historiae abbreuiatae, não compreendia esses sentidos técnicos, que ao longo do período imperial viriam a se perder. “Quadruplator”, pois, se tornaria um sinônimo de “delator”. No entanto, Rivière (1997, p. 595) afirma que, no texto de Aurélio Vítor, o vocábulo pode ser tomado como uma redundância, cuja utilização teria sido inspirada pelos usos que os literatos dos períodos republicano e alto-imperial fizeram do termo, ou como uma maneira de diferenciar os acusadores que lançavam processos criminais daqueles que exercessem funções fiscais em benefício do Estado imperial.

(ALDRETE, 2006, p. 92). Partindo desta ótica, os tumultos que, potencialmente, seriam provocados em Roma por causa da inesperada subida das águas tiberinas, se articulariam aos desastres que, durante o governo de Galieno, se abateriam sobre o orbis Romanum como um todo. Assim, escreveu Aurélio Vítor que

deste modo, como se o vento soprasse de todos os lados, se misturavam os mais humildes com os maiores, os inferiores com os superiores, por todo o mundo. E, ao mesmo tempo, grassava em Roma uma peste, que amiúde surge [em tempos de] graves inquietudes e desespero dos espíritos (Hist.

abbreu. 33.4-5, grifo nosso).

A passagem acima esboça uma correlação que se observa em diferentes pontos da narrativa das Historiae abbreuiatae: Urbs et orbis se confundiriam de uma forma tal que, nos meandros do discurso composto por Aurélio Vítor, a cidade de Roma reflete – ou, se assim se quiser, reproduz em uma escala reduzida – as condições em que o Império se encontraria em dado momento. Notamos que essa perspectiva é subjacente à descrição efetuada acerca do comportamento que Galieno teria demonstrado em face do caos que exauria os ânimos de todos os que habitavam o Império:

Em Roma, Galieno improbamente persuadia aqueles que não tinham ciência da calamidade pública de que tudo estava tranquilo, e também com frequência, como de costume em circunstâncias que se produzem de acordo com a vontade pessoal, foram organizados jogos e também celebrações de triunfos, como se confirmassem de modo manifesto aquilo que se tinha simulado (Hist. abbreu. 33.15).

Ora, o simulacro que Galieno alardearia em Roma, além de iludir a todos os que ignoravam as condições em que o território imperial se encontrava naquela época, engloba outro significado. A manutenção das ações que ordinariamente caracterizavam a vida na cidade, com os seus jogos e suas cerimônias de triunfo, guardava a implícita percepção de que, proporcionalmente, a paz vigorava em todo o Império. Ou seja, a simulação que Galieno teria empreendido adquire ressonância conquanto se concebesse a Urbs como um microcosmo, sobre o qual se projetaria o mundo romano em sua totalidade.

Feito isto, voltemo-nos para o reinado de um dos antecessores de Galieno, qual seja, Filipe, o Árabe. No que tangia ao governo deste, Aurélio Vítor enfatizou que “se celebrou, com jogos de todo o tipo, o milésimo aniversário da cidade de Roma” (Hist. abbreu. 28.1). Essa constatação propiciou uma oportunidade para que se estabelecesse uma conexão entre o passado e o presente:

E posto que o nome me [faz] recordar, também em meu tempo (mea quoque

aetate), durante o consulado de Filipe55, depois de mil e cem anos não se celebrou o aniversário da cidade, como deveria suceder56, com cerimônia solene alguma: até o ponto de diminuir dia a dia o interesse pela cidade de

Roma (adeo in dies cura minima Romanis urbis). Algo que, de fato, foi dado a conhecer naquele tempo [ie., à época de Filipe, o Árabe] por prodígios e

presságios, dos quais gostaria de recordar brevemente um deles. Pois quando eram sacrificados alguns animais de acordo com as leis dos pontífices, no ventre de um porco apareceram os genitais de uma fêmea. Quanto a isso, os arúspices interpretaram como presságio da ruína dos pósteros e do recrudescimento dos vícios (Hist. abbreu. 28.2-5, grifo nosso).

Neste ponto do texto, Aurélio Vítor adicionou um novo elemento ao discurso decadentista que havia sido formulado em Hist. abbreu. 24.7-11. “Prodígios e presságios” anunciaram, nos anos em que Filipe, o Árabe, ocupou o trono imperial, “a ruína dos pósteros e o recrudescimento dos vícios”. Os mesmos portentos, ademais, prognosticaram que a cidade de Roma deixaria de suscitar o interesse, algo que seria comprovado pela ausência de celebrações a marcar, em 348, o milésimo centésimo aniversário da Urbs. Ainda que tais presságios tenham sido elaborados post euentum, no interior da narrativa de Aurélio Vítor acabariam por cumprir com uma função bastante significativa: o declínio dos valores romanos não se distinguiria do desinteresse perante aspectos tradicionais que concerniam à religião estatal romana. Um exemplo seria o festival da “Parília”, celebrado no dia 21 de abril, e que na era imperial havia perdido o seu caráter rústico e pastoril originário e se transformado, basicamente, na cerimônia pública em que se festejava o dies natalis Romae. Logo, os portentos observados ao tempo de Filipe, o Árabe, assinalavam que, no futuro – o qual, no texto, equivalia à época em que vivia o próprio Aurélio Vítor – se operaria uma ruptura com a ordem das coisas, evidenciada pela negligência para com a cidade de Roma e suas tradições.

Desta maneira, notamos nas Historiae abbreuiatae os vestígios de uma concepção que, em dados momentos, teria angustiado os romanos no decorrer da Antiguidade, isto é, a ideia de um fim iminente tanto da cidade de Roma quanto de seu império (SORDI, 1972, p.

55 Flávio Filipe, prefeito pretoriano do Oriente entre 344 e 351. Exerceu o consulado no ano de 348, ao lado de Flávio Sália. Homem vinculado à corte de Constâncio II, que o teria enviado em 351 para a Gália para que entabulasse negociações com o usurpador ocidental Magnêncio. Para tanto, cf. PLRE 1, p. 696. Na passagem acima, é interessante notar que Aurélio Vítor deixou latente o recurso retórico por ele utilizado. A ligação entre passado e presente se apoiava no fato de que um dos cônsules ordinários do ano de 348 era homônimo do monarca que havia regido o Império cem anos antes.

56 Aurélio Vítor ressaltou a posição ímpar desfrutada por Roma ao reportar que os oitocentos, os novecentos e os mil anos da cidade, desde a sua fundação, foram comemorados “de modo admirável” (Hist. abbreu. 4.13), “com magnificência” (Hist. abbreu. 15.4) e “com jogos de todo o tipo” (Hist. abbreu. 28.1). A indicação de todos esses episódios contrasta com a inexistência de festividades, no tocante aos mil e cem anos, completados em 348. Amplificava-se, pois, a perspectiva de que o tempo presente (“meu tempo”, como coloca Aurélio Vítor) se caracterizava pela impietas. Por outro lado, sugerimos que as referências às celebrações de outrora exprimem, no plano da narrativa, a ideia de que o historiador cumpriu, simbolicamente, com o seu dever em relação à cidade.

781). Sob uma perspectiva mais estrita, Chenault (2008, p. 60) propõe que devamos compreender as lamúrias de Aurélio Vítor como reação em face do status marginal para o qual a Urbs, do ponto de vista político, foi relegada desde a segunda metade do século III.

Julgamos oportuno apontar que a noção acerca da debilidade da cidade de Roma, no século IV, seria reiterada pelo historiador a partir da menção a um fato ocorrido um decênio antes do ano de 348, e que dizia respeito à morte de Constantino no mês de maio de 337. Aurélio Vítor indicou que o referido imperador faleceu nas cercanias de Nicomédia, complementando, mediante o uso de uma perífrase, que “seu corpo [ie., de Constantino] foi enterrado na cidade que leva seu nome” (Hist. abbreu. 41.16-17). Em seguida, Aurélio Vítor descreveu a aflição que teria se abatido sobre os habitantes da cidade de Roma, diante da notícia de que Constantino havia sido inumado na antiga Bizâncio (Hist. abbreu. 41.17).57 Do que se nota, por outro lado, uma recusa por parte de Aurélio Vítor em denominar, com todas as letras, a cidade de Constantinopla. Mesmo a referência feita à fundação daquela se revela lacônica. O autor limitou-se a reportar o fato de que Constantino, após sufocar a revolta de Calócero, “desviou enormemente sua atenção” para a tarefa de fundar uma localidade (Hist.

abbreu. 41.12).

Faz-se escusado reconhecer que se focar no “não dito”, naquilo que o historiador não explicitou, resulta em uma arriscada tarefa. A princípio, o silêncio a respeito de algum evento ou tema poderia derivar do desconhecimento ou de uma supressão deliberada por parte do escritor, se este avaliasse, por exemplo, a matéria abordada como irrelevante para os seus propósitos. Contudo, esta assertiva se enfraquece diante daquilo que se lê em Hist. abbreu. 41.12 ou 41.17. A existência de Constantinopla não pôde ser ignorada. Por sua vez, há de se atestar que o autor de um compêndio, como Aurélio Vítor, poderia lançar mão de recursos retóricos como a omissão ou a síntese a fim de compor o seu discurso.58

Porém, o emudecimento em relação à Constantinopla não condizia com a importância que a referida cidade amealhou a partir de meados do século IV, dado este que dificilmente escaparia ao conhecimento de um membro da “burocracia” imperial. Roman (2001, p. 472-

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O caráter da informação nos leva a crer que a mesma derivasse da prática da autopsia, método comum aos historiadores que, desde Tucídides, se ocupassem da escrita da história (quase)contemporânea. Van Dam (2009, p. 58-59) argumenta que, embora os tricennalia de Constantino tivessem sido celebrados em Constantinopla (sinalizando, pois, que a casa reinante se inclinava para a fronteira norte e oriental do Império), os habitantes de Roma alimentavam a expectativa de que o imperador fosse enterrado na Urbs. O Senado e o povo de Roma aguardaram, em vão, o traslado do corpo do falecido soberano, para que procedessem aos ritos usuais da consecratio. Isso extraiu dos senadores a tradicional prerrogativa de emitir um ajuizamento póstumo acerca dos imperadores, não obstante o Senado ter aprovado, algum tempo depois, um decreto reconhecendo a apoteose de Constantino, enumerando-o assim entre os diui.

473) lembra que Constantinopla assumiria as feições de capital imperial somente com os filhos de Constantino. Quando este efetuou os rituais de consagração da cidade, fundada sobre o solo da antiga Bizâncio, Constantinopla se situaria enquanto símbolo maior da reunificação das duas partes, as de língua grega e latina, que formavam o Império, e que teria se concretizado após a vitória de Constantino sobre Licínio, no ano de 324. Mas esse mundo romano, ecumênico, se alicerçaria sobre novas bases: o cristianismo.

Entretanto, ao permanecer boa parte de seus últimos anos de vida em Constantinopla, o imperador Constantino reforçou a impressão de que o núcleo do poder romano gradualmente se deslocava para o interior das terras de fala grega. O equilíbrio simbólico entre “Oriente helênico” e “Ocidente latino”, que se articularia com a fundação de Constantinopla, não se aplicaria às realidades do poder. Por sua vez, Constâncio II, em particular, iniciou um vasto programa de edificações em Constantinopla, de uma envergadura tamanha que o orador Temístio (Orat. 3.40c) afirmaria que a cidade em questão pertencia, antes, a Constâncio II, e não a Constantino.59

Portanto, uma série de alterações institucionais e administrativas, levada a cabo sob o governo de Constâncio II, findaria por conferir a Constantinopla os traços de efetiva capital imperial no Oriente. Constantino já havia instituído um Senado para a cidade, o que implicou a divisão da ordem senatorial em duas frações diferentes, a oriental e a ocidental. Porém, o Senado constantinopolitano se assemelhava ainda a uma cúria de um grande centro urbano. Os seus membros, por exemplo, foram agraciados apenas com o título de “clari”, em posição inferior se cotejados com os “clarissimi” que compunham a ancestral contraparte locada em Roma. No entanto, no ano de 357, ou mesmo antes, Constâncio II contemplou os senadores de Constantinopla com a “clarissima dignitas”, transformando o Senado da cidade em um órgão parelho e semelhante ao Senado romano. Em termos práticos, a elite senatorial foi cindida em duas partes que compreendiam interesses, filiações e relações com o poder imperial de natureza diversa.

Além disso, a partir dos anos 359-360, Constantinopla, que até então havia sido administrada por procônsules, ficaria sob a autoridade de um “praefectus urbi”, nos mesmos moldes do magistrado encarregado da administração da cidade de Roma. Ora, o Império

59 Em verdade, Constâncio II envolveu-se em diversas campanhas militares, imperativo que o impeliu a permanecer por longas temporadas em diferentes cidades. Nos anos 340, assim como nos últimos dois anos de seu reinado, o soberano passou seus invernos em Antioquia, próxima à fronteira com o Império sassânida. T. Barnes (1980, p. 161), inclusive, chega a afirmar que a “ameaça persa” determinou quais os lugares em que Constâncio II veio a residir. Por seu turno, a revolta e usurpação de Magnêncio forçou Constâncio II a se revezar entre cidades como Sírmio e Milão. Em dezembro de 361, porém, os restos mortais do soberano foram sepultados em Constantinopla.

romano congregava uma sociedade de “ordens”, com hierarquias definidas. As distinções de “classe” ou estatuto social não somente eram regulamentadas por lei, mas se encontravam visíveis e perenemente reiteradas na vida cotidiana, por meio de padrões de comportamento e pela exibição de símbolos de status, como o uso do anel de ouro e da toga laticlava por parte dos senadores ou mesmo do cingulum adornado, no caso dos soldados (MATTHEWS, 2000, p. 434). Logo, o fato de Constantinopla ter se convertido, no decurso de uma geração, no local em que germinaria outro Senado60, acarretava consequências de amplo espectro, na medida em a nova instituição garantia benefícios sociais e privilégios jurídicos a indivíduos e grupos que se encontravam excluídos do universo predominantemente latino composto por Roma e pelas áreas ocidentais (SKINNER, 2000, p. 370).61

Ou seja, em meio à ideologia dinástica da era constantiniana, Constâncio II figurava como aquele que havia dado continuidade às diretrizes do reinado de seu pai, como se consistisse em um imitator Constantini. Temístio (Orat. 4.58b) sublinhou os profundos vínculos que ligariam Constâncio II a Constantino, que se desvelariam, inclusive, por intermédio da elevação de Constâncio II à dignidade de César. Isto havia ocorrido em 8 de novembro de 324, no mesmo ano em que Constantino, subjugado o seu rival Licínio, deu início ao projeto de fundação da cidade que carregaria o seu nome. Saliente-se que Constantinopla fora escolhida, de modo consciente, para se tornar o centro político de uma dinastia, expressão tangível da aquisição, por parte de Constantino, do poder sobre todo o

imperium Romanum, quando da derrota que impôs a Licínio. Portanto, “Constantius’ political carrer […] was intimately associated with his father’s eponymous city and so with the institution of Constantine’s new political order” (HUMPHREYS, 1997, p. 451). Dito de outra

maneira, a cidade de Constantinopla representava um local fortemente associado a Constâncio II e às mudanças políticas e culturais que se desenrolavam ao tempo em que as Historiae

abbreuiatae foram elaboradas.

Isto não significa, entretanto, que Constâncio II tivesse ignorado, por completo, a

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