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A tradição epitomatória latina na segunda metade do século IV

No documento O império romano de Aurélio Vítor (páginas 44-61)

CAPÍTULO 1 – História abreviada ou biografia dos Césares?

1.3 A tradição epitomatória latina na segunda metade do século IV

A segunda metade do século IV, conforme L’Huillier (1997, p. 320), viu surgir um número razoável de compêndios em língua latina. No que dizia respeito aos textos versados em história, os epítomes ou breviários51 – dos quais, em geral, se tomam como exemplos as obras escritas por Aurélio Vítor, Eutrópio e Festo, bem como o Epitome – contribuíram para configurar o quadro apontado por L’Huillier.52 Os livros compostos pelos referidos autores teriam por função primordial a perpetuação do conhecimento acerca do passado romano, atendendo às necessidades de uma nova classe governante imperial que emergiu no bojo das alterações políticas e sociais que marcaram o Império a partir do final do século III. Essa camada dirigente advinha das mais diversas províncias (ou mesmo de regiões situadas além

50 Conceito empregado por Gay (1990, p. 23) a fim de se referir à “percepção total do historiador sobre o passado” e as “limitações dentro das quais trabalha”, que findam por deixar suas marcas no estilo literário cultivado pelo autor.

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Certos estudiosos, dentre os quais Dufraigne (1975, p. xli), Herzog e Schmidt (1989, p. 173) e Marincola (1997, p. 28), garantem que os termos epítome e breviário correspondiam a duas modalidades distintas de texto. Neste caso, o “epítome” equivaleria, em específico, a um resumo elaborado a partir de uma única obra, ao passo que o “breviário” concerniria a uma sucinta obra de história cuja composição se basearia em mais de uma fonte e que apresentaria, logo, uma fisionomia própria. Por isso mesmo é que o anônimo texto que fecha as edições teubnerianas da obra de Aurélio Vítor, organizadas originalmente por Pichlmayr, tem sido usualmente denominado Epitome de Caesaribus, pois se acreditava tratar-se de um sumário das Historiae abbreuiatae. Entretanto, Cizek (1994, p. 108) assegura que o vocábulo “breuiarium” exprimia apenas uma das formas latinas adotadas para se referir aos epítomes, ou resumos, como designado pelos gregos. Conforme Cizek, utilizaremos em nosso trabalho os termos “epítome” e “breviário” a partir de uma acepção mais ampla, enquanto sinônimos que definem uma “espécie” de texto no interior da produção historiográfica latina.

52 Ainda que o Epitome, como defende Festy (apud Callu, 1999, p. 607), tenha sido composto entre os anos de 406-408, podemos enumerá-la ao lado das obras descritas acima, uma vez que o Epitome serviu-se das obras escritas por Aurélio Vítor e Eutrópio, por exemplo (SEHLMEYER, 2009, p. 294).

das fronteiras imperiais) e, de maneira geral, desconhecia ou pouco recordava dos fatos elementares e das principais personagens relativas à história romana.53

Neste caso, os breviários supriam tal carência, ao transmitir de modo prático e didático um panorama acerca dos mais relevantes feitos pertinentes à civilização romana, que deveriam, em princípio, ser do conhecimento daqueles que, no presente, se encontravam diretamente envolvidos na administração, na defesa e na manutenção do Estado imperial (MOMIGLIANO, 1993a, p. 100). Por seu turno, Dihle (1994, p. 475) assegura que, após a derrota do imperador Valente diante dos godos em Adrianópolis, no ano de 378, a sensação de segurança partilhada pelos habitantes do Império foi se esvaecendo. Diante disto, os breviários latinos teriam preservado, de um modo conciso e facilmente compreensível, a lembrança dos eventos de outrora, em face de um aparente temor vivenciado no Ocidente de que toda uma tradição histórica viesse a desaparecer nos interstícios dos tumultos militares e políticos que se avolumaram no século V.

Contudo, não se deve tomar a quase ignorância acerca da história romana, por parte destes novos grupos sociais que se formaram ou ascenderam na sociedade tardo-imperial, como um sinal inconteste de ausência de letramento.54 Muitos dos que serviram aos filhos de Constantino e aos Valentinianos, ocupando postos-chave no interior do exército romano e dispondo de grande influência no âmago das cortes imperiais, tinham por origem as pequenas cidades espalhadas ao longo do vale do Danúbio. Esses indivíduos descendiam de pequenos proprietários e integrantes das cúrias locais e, assim sendo, tiveram a oportunidade de se instruir nas letras, ainda que poucos deles se aprofundassem nos estudos da retórica.55

Sob o governo de Constantino e de seus filhos, por outro lado, novos atores sociais passaram a integrar o cenário político imperial. A adoção do cristianismo por parte de Constantino, no desenlace da guerra civil que o opôs a Maxêncio (306-312), resultou na

53 Quando o mesmo tipo de demanda eventualmente surgiu entre os habitantes das províncias helenófonas, a medida adotada consistiu na tradução do breviário de Eutrópio, menos rebuscado. Temos notícia da existência de, pelo menos, três diferentes versões em grego do Breviário eutropiano, que remontam ao período tardo-antigo (CROKE; EMMETT, 1983, p. 2). Além disso, Momigliano (1993a, p. 101) chama a atenção para o tom neutro que regia os discursos dos epitomadores pagãos no que tangia à religião, o que teria permitido que os autores cristãos os empregassem para seus próprios fins. Isto ajuda a esclarecer uma das razões pelas quais a obra de Eutrópio conheceu boa fortuna no Oriente grego, área em que o cristianismo contava com maior número de adeptos, nos meados do século quarto, se confrontado com o Ocidente latino. Quanto a Aurélio Vítor, sabe-se que escritores cristãos como Jerônimo e Sulpício Severo tiveram acesso a sua obra (BESSONE, 1980, p. 436). 54 “The three epitomators [ie., Aurélio Vítor, Eutrópio e Festo] betray the low standards still prevalent in the days of Julian and Valentianian. Otherwise, who would have made the effort of writing, who would have read these meagre compilations?” (SYME, 2001, p. 105).

55 Tratar-se-ia de homens que, durante a Antiguidade Tardia, seriam considerados “litterati” pelo simples fato de reunirem a habilidade de ler e escrever em latim ou em grego. A definição do termo “litteratus”, assim, variava em função do contexto em que poderia ser empregado, referindo-se tanto ao homem culto, julgado como “civilizado”, quanto àquele que não dispunha senão de um nível básico de letramento (HARRIS, 1991, p. 285).

promoção de adeptos da fé cristã no âmago da administração do Estado romano. Muitos daqueles que integravam esta “aristocracia cristã de ofício” careciam de um conhecimento, mesmo que superficial, a respeito dos acontecimentos relativos ao passado de Roma (Alan CAMERON, 1977, p. 8). Cabe, finalmente, salientar que a fundação de Constantinopla em 330, sobre o solo da antiga Bizâncio, implicou o estabelecimento de um novo Senado, para além do vetusto órgão existente na cidade de Roma. De maneira gradativa, oficiais ligados à corte de Constâncio II, governantes provinciais e membros das aristocracias locais no Oriente tomaram assento no Senado de Constantinopla, ao qual foram conferidos variados privilégios jurídicos e benesses materiais. Os senadores constantinopolitanos, em geral, cumpriam com os requisitos pertinentes à cultura letrada. Entretanto, imersos em uma área helenófona, careciam de maior conhecimento do latim e, igualmente, da história romana. Logo, como lembra Momigliano (1993a, p. 101), “também eles necessitavam de breviários”.

No caso dos soldados, ademais, deve-se salientar que estavam habituados aos assuntos que condiziam ao dia a dia do acampamento militar, mas careciam de experiência política e administrativa. Faltava-lhes, nos dizeres de Kenney (1982, p. 736), um “senso mais completo” da grandeza do Império do qual faziam parte, e dos problemas enfrentados e solucionados, ou não, pelos governantes de antanho. Neste ensejo, os breviários de história possibilitar-lhes-iam ultrapassar os estreitos limites temporais e espaciais aos quais estavam confinados e, pois, absorver lições de longa data mediante o contato com determinados compêndios que abrangiam quer fossem os quatro séculos de história imperial, quer fossem os mais de mil anos de história romana, desde a lendária fundação da cidade de Roma.56

Outro ponto relevante, como indicado por Bonamente (2003, p. 88), reside no fato de que a composição de uma concisa narrativa se encaixava adequadamente às circunstâncias pessoais vivenciadas por autores como Aurélio Vítor ou Eutrópio. Em outras palavras, indivíduos que exerciam funções em diferentes escalões da administração imperial e, por conseguinte, impossibilitados de devotar um extenso otium ao cumprimento da tarefa de redigir uma obra versada em história. Com efeito, estamos diante de autores bem distantes da

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Bonamente (2003, p. 88-89) destaca ainda que os epitomadores do século IV alimentavam o desejo de serem lidos, ou se fazerem ouvir, na corte imperial (o que não significa que tivessem alcançado o objetivo pretendido). Eutrópio e (ao que parece) Festo dirigiram suas obras a Valente, um dos imperadores reinantes em fins da década de 360, algo que, no entender de Bonamente, Aurélio Vítor supostamente teria feito em relação ao monarca vivente em 360-361 (no caso, Constâncio II). Porém, a hipótese de Bonamente carece de maior fundamento, no que tange a Aurélio Vítor, pois que este não dedicou seu livro a Constâncio II. Por fim, cabe sublinhar que, ao contrário dos breviários de Eutrópio e Festo, as Historiae abbreuiatae abrangem o reinado do monarca que ainda governava e, neste caso, Aurélio Vítor correria o risco (considerando-se a sugestão de Bonamente, ressalve-se) de estabelecer um panorama histórico que poderia desagradar justamente àquele para quem a obra seria eventualmente destinada!

tradicional figura do senador romano que se dedicava à tarefa de escrever a história romana, como ilustrado, no passado, por literatos como Salústio ou Tácito.

A ausência de senadores a navegar pelos mares da historiografia latina no século IV pode ser compreendida se levarmos em conta o processo de enfraquecimento político enfrentado pela ordem senatorial romana desde o século III, especialmente a partir das reformas institucionais e administrativas levadas a cabo por Diocleciano. Sob Constantino e seus filhos, os senadores retomaram – ainda que de modo parcial, se cotejado com o Alto Império – uma participação mais efetiva nos assuntos públicos, no bojo de uma redefinição e de um alargamento do “clarissimado”, como explificado pela criação do Senado de Constantinopla (CHASTAGNOL, 1992, p. 253). A aristocracia senatorial no Ocidente, embora mantivesse sua imensa riqueza fundiária e muito de seu prestígio social intactos, viu- se deslocada do centro do poder no decorrer da época tardo-imperial. Por conseguinte, os membros do Senado da cidade de Roma, sobretudo, conviviam com um sentimento de perda de identidade, pois tinham ciência da antiguidade e da relevância da instituição da qual faziam parte e da efetiva autoridade política que almejavam, tal como outrora, possuir.

Neste ensejo, Kenney (1982, p. 687-688) garante que a camada senatorial no Ocidente latino, na condição de produtores e consumidores de obras literárias, tendeu a centrar suas atenções no passado, como se assumissem uma postura de antiquários.57 Isto evidenciaria o pesar que sentiam em relação ao presente, marcado pelo limitado papel que dispunham na condução do Estado imperial, bem como pela ascensão do cristianismo em detrimento dos priscos cultos pagãos. Por sua vez, mesmo o propósito dos epitomadores latinos do século IV, no sentido de promover e difundir, de modo simples e pragmático, o conhecimento sobre os fatos e personagens mais importantes da história romana, pode ser tomado enquanto “the

expression of a reflective desire to bring the past back to life” (BONAMENTE, 2003, p. 86).

Sendo assim, embora tais breviários tivessem por objetivo a divulgação do passado romano, tratar-se-ia de um tipo de discurso historiográfico cuja forma, definida justamente pela breuitas, atendia às necessidades dos novos grupos dirigentes que viriam a ocupar as funções públicas anteriormente concentradas nas mãos dos senadores da cidade de Roma.58

57 Quer dizer, o interesse pelo passado não estimulava tanto uma atividade historiográfica, mas antes impulsionava uma tentativa de se resgatar objetos e elementos diversos que contivessem traços dos mais antigos costumes e instituições romanas. Para tanto, ver Maslakov (1983, p. 100).

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Faz-se oportuno apontar que a difusão dos compêndios ganhou impulso com o avanço dos códices, que a partir do século IV foram gradativamente tomando o lugar do rolo de pergaminho como suporte fundamental dos registros escritos. A princípio, os códices eram avaliados como livros de baixa qualidade, que circulavam no interior das camadas sociais menos abastadas. No entanto, de fins do século III em diante, novos grupos sociais até então sem papel político significativo ascendem ao poder, e igualmente aspiraram ingressar no universo da palavra escrita, a fim de que manifestassem “oficialmente” sua cultura. Destaca-se, portanto, a emergência de um

Por outro lado, é possível preconizar que o fruto do labor dos epitomadores latinos da segunda metade do século IV dificilmente apeteceria àquela elite culta, letrada, que tomava assento no Senado da Urbs aeterna, visto que uma narrativa histórica de pequena extensão pouco acrescentaria aos saberes, acerca do passado, que varões como Nicômaco Flaviano ou Quinto Aurélio Símaco cultivavam.

A intenção de se redigir uma obra em conformidade aos parâmetros da brevidade seria devidamente registrada por autores como Eutrópio e Festo.59 Aurélio Vítor, por sua vez, ainda que não tivesse redigido um prefácio ao seu texto, externou uma preocupação no sentido de se abordar os eventos de uma maneira sucinta; é o que se nota, por exemplo, em Hist. abbreu. 28.3, passagem esta em que Aurélio Vítor sinalizou a ocorrência de alguns presságios e prodígios ao tempo do imperador Filipe, o Árabe (244-249), indicando o seu desejo de “recordar brevemente” (memorare breui libet) pelo menos um daqueles fenômenos.60

Uma vez apontadas as características e os pressupostos que teriam norteado a composição dos breviários latinos no século IV, devemos avaliar as especificidades da obra de Aurélio Vítor. Considerando-se a forma pela qual a narrativa das Historiae abbreuiatae foi estruturada, as reflexões acerca da história de Roma que a obra contém e os diversos elementos que compõem o discurso formulado por Aurélio Vítor, defendemos a proposta de que o autor pretendesse dialogar com leitores distintos daqueles que consumiriam um compêndio de história no século IV.

Bird (1994, p. xix), no entanto, argumenta que o estilo narrativo de Aurélio Vítor, marcado muitas vezes por uma disposição de palavras assaz tortuosa e por um grande número de metáforas, correspondeu ao principal fator a elucidar a “falta de popularidade” que caracterizaria a inserção das Historiae abbreuiatae no período tardo-antigo, em oposição da narrativa simples e direta que autores como Eutrópio teriam composto. Todavia, consideramos lícito indagar se os elementos mais peculiares da escrita cultivada por Aurélio Vítor não configurariam, pelo contrário, um indício das pretensões alimentadas pelo autor, com vistas a atingir uma fração mais culta, refinada, que integrava o público leitor latino no século IV. Isto significa, conforme Ribeiro (1999, p. 347), que o texto

novo público leitor, que se beneficia das praticidades inerentes aos códices (mais fáceis de transportar e melhor adaptados à leitura que os rolos), que adquiririam grande qualidade na passagem do século IV para o V (CAVALLO, 1992, p. 83-85).

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Em seu prólogo, Eutrópio afirmava que “recolheu em uma breve narrativa (breui narratione collegi)” os dados tidos por mais eminentes que integravam a história romana, desde a fundação da cidade. Por sua vez, Festo, possivelmente dirigindo-se a Valente, solicitava que o monarca aceitasse “aquilo [ie., os fatos relatados na obra] que foi enumerado de forma mais breve do que [palavras] brevemente ditas (quod breuiter dictis breuius computetur)” (Fest. 1).

persegue uma estratégia e, por isso, é fundamental conhecer quem ele define como leitor. Em outras palavras, um texto não é reflexo, porém arma. Um pensador político não procura refletir o seu tempo e sociedade; quer produzir efeitos. E estes ele visa através de sua arma específica, o texto. A designação do leitor é, portanto, a de quem deverá ser afetado pelo texto. Os leitores constituem o campo de eficácia própria do discurso [...] (grifo do autor).

Sugerimos, pois, que um dos pontos cruciais a diferenciar Aurélio Vítor, em relação aos epitomadores do século IV, reside nos possíveis leitores a quem as Historiae abbreuiatae se destinariam.61 Assim sendo, a obra de Aurélio Vítor não se assemelha aos demais epítomes latinos na medida em que não objetivava promover e divulgar, de modo simplificado, um panorama informativo acerca de dados acontecimentos históricos e de personalidades de vulto, mas sim tecer uma interpretação a respeito da história imperial romana em seu todo62, como veremos no decorrer dos capítulos subsequentes. Ainda que consagrasse a brevidade enquanto princípio narrativo, Aurélio Vítor definiu, como público em potencial, uma modalidade de leitores que não se confundia com homens que possuíssem um limitado nível de letramento, caso de um imperador como, por exemplo, Valente.63

E quais seriam as possíveis “pistas” que o texto de Aurélio Vítor teria nos deixado, e que nos permitiriam conceber com quem o autor pretendeu dialogar e dirigir suas reflexões? As remissões a elementos pertinentes às épocas monárquica e republicana da história romana podem ser compreendidas enquanto vestígios significativos. Por isto, faz-se salutar destacarmos ao menos três dessas alusões pontuadas por Aurélio Vítor em seu texto. A primeira tange à figura de Numa Pompílio64, lendária personagem de origem sabina que teria assumido o trono em Roma após a morte de Rômulo, fundador da cidade e primeiro rei dos

61 Como quer Pelling (2000, p. 246), os textos possuem um público e são elaborados visando atingir pessoais reais. Ao lidar com fontes literárias, o historiador deve escrutinar, na medida do possível, qual o público que o próprio texto em si projeta; é lícito, assim sendo, investigar os eventuais leitores “inscritos no texto” e inferir o que se puder a respeito deles.

62 Festo, ao tornar clara a sua ambição de escrever um relato o mais sucinto possível, enfatizava que apenas “assinalará os feitos dos romanos” (res gestas signabo) sem que, no entanto, se alongasse na elaboração (e, pois, na explicação) dos fatos (non eloquar) (Fest. 1).

63 A julgar por aquilo que Amiano Marcelino registrou em diferentes passagens de suas Histórias, a rudeza e falta de educação marcaram o comportamento de Valente (cf. Amm. Marc. 29.2.18; 30.4.2). Malgrado tais considerações, Alföldi (1952, p. 117-119) discorre sobre o fato de Valente não ter se desvencilhado do imperativo, particularmente enfatizado pelas camadas sociais superiores, de que o soberano deveria reverenciar as mais diversas manifestações artísticas; ao que parece, o monarca em questão se esforçou por promover ocasiões para a declamação retórica, mesmo quando se encontrava nos acampamentos militares.

64 Bird (1986, p. 244) proclama que a memória histórica acerca de Numa Pompílio conheceu reputação notável no século IV, como comprovado pela historiografia latina do período, que encontrou no segundo rei de Roma um útil exemplum a ser trabalhado. Na seção imperial de seu Breviário, Eutrópio (8.8.1) enaltece as virtudes de Antonino Pio, ao cotejá-las como semelhantes àqueles que Numa teria demonstrado. Igualmente, no interior da Vita Antonini Pii se estabeleceu uma comparação entre Numa e Antonino Pio, baseado na perspectiva de que o imperador do século II teria dedicado especial atenção aos ritos religiosos, pois que dotado de pietas semelhante àquela com a qual o lendário rei romano estava associado (cf. HA, Pius 13).

romanos. Aurélio Vítor afirmou em Hist. abbreu. 1.3 que, contando desde Numa Pompílio, Augusto foi o terceiro dentre os líderes romanos a ordenar que as portas do templo de Jano fossem fechadas. Essa informação complementava a frase que a antecede, em meio a qual se lê que o filho adotivo de Júlio César pacificou “a ferocidade dos povos externos, com exceção da Germânia” (Hist. abbreu. 1.2).

Na sequência do texto, ao introduzir o reinado de Adriano (117-138), Aurélio Vítor sublinhou que o imperador havia retornado a Roma depois de ter restabelecido a paz no Oriente (Hist. abbreu. 14.1). Na sequência do texto, se escreve que:

Ali [i.e., na cidade de Roma], seja à maneira dos gregos ou de Numa Pompílio, [Adriano] começou a se ocupar (curare occepit) dos cultos religiosos, das leis, das escolas e dos professores, a ponto de ter inclusive fundado uma escola para as artes liberais (ludum ingenuarum artium), a qual chamam de Ateneu (Hist. abbreu. 14.2-3).

Desta forma, as alusões ao rei Numa Pompílio, embora vinculadas a dois imperadores distintos – isto é, Augusto e Adriano – se inserem em contextos similares. De acordo com Aurélio Vítor, tanto Augusto quanto Adriano asseguraram a pacificação de certas regiões que compunham o Império. Em razão disso, o autor os associa a Numa Pompílio. Este, ao

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