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Galieno e a (quase) ruína do Estado romano

No documento O império romano de Aurélio Vítor (páginas 104-122)

CAPÍTULO 2 – Império romano, uma história de decadência Reflexões sobre o passado

2.2 Galieno e a (quase) ruína do Estado romano

O reinado do imperador Galieno equivale a um ponto emblemático na narrativa das

Historiae abbreuiatae. O período compreendido entre 253 e 268, no qual Galieno ostentou a

púrpura, recebeu especial atenção por parte de Aurélio Vítor, em que pese a natureza abreviada de seu relato. Contudo, o historiador compôs um painel verdadeiramente sombrio acerca da era de Galieno, de maneira que a transforma em “une sorte de tableau d’ensemble

de la grande crise du troisième siècle” (DUFRAIGNE, 1975, p. 167).

Autores como Eutrópio salientariam que o filho de Valeriano “primeiro regeu o Império com êxito”, para em seguida complementar que “ao final [governou] de maneira perniciosa”. Eutrópio afirmou ainda que Galieno “durante muito tempo foi plácido e tranquilo, logo depois, se abandonando a todo tipo de lascívia, soltou as rédeas do governo por desídia e desesperança” (Eutr., 9.8.1)27, conduta esta que provocou a insurgência de Póstumo, nas Gálias, e Odenato de Palmira, no limes oriental, a fim de que o Império fosse salvaguardado (Eutr., 9.11.1).

Já o autor da HA se mostrou ainda mais incisivo em relação a Galieno. Diz-se que o monarca “[...] desperdiçou seus dias e noites no vinho e na devassidão e permitiu que o mundo fosse devastado por usurpadores em número de vinte, a ponto de até mesmo mulheres governarem melhor do que ele” (HA, Gall. 16.1). Ademais, Galieno teria se regozijado ao saber do falecimento de Valeriano, pois que a morte de seu pai garantia a ele a condição de único imperador. Porém, ao assumir o trono, causou a ruína da res publica, em razão do modo de vida que cultivava (HA, Gall. 1.1). Por fim, à falta de pietas se adicionava a crueldade,

na medida em que homens como Maximino, o Trácio, alheios aos valores culturais romanos (embora nascidos em áreas provinciais), assumissem o poder imperial.

26 Como apontado pelo próprio historiador, ao mencionar que o pai de Galieno, o imperador Valeriano (253- 260), precedia de “ilustre estirpe (genere claro)” (Hist. abbreu. 32.2).

27 Eutrópio se norteou por um pressuposto bastante comum, no que tangia ao topos do tirano entre os autores greco-romanos: aquele do promissor início do monarca, que paulatinamente desvelava o seu caráter desvirtuado e corrompido (cf. SCHEID, 1982, p. 179).

traço dos mais salientes que se observaria no comportamento de Galieno, de forma tal que todos o temiam (HA, Tyr. Trig. 9.3; 26.1).

Aurélio Vítor reproduziu um quadro similar. Galieno, amigo “de rufiões e amantes do vinho”, não passaria de um “líder covarde”, cuja negligência provocou uma série de tumultos em diferentes províncias romanas (cf. Hist. abbreu. 33.6; 33.17). Mas, ao contrário das demais fontes, somente as Historiae abbreuiatae tocaram em um intrigante fato. Aurélio Vítor revelaria que

certamente aos senadores, além do mal-estar geral do mundo romano, os incitava o ultraje à sua própria ordem, pois [Galieno] foi o primeiro que, por medo de sua própria indolência e de que o poder imperial passasse para as mãos dos nobres mais distintos, proibiu os senadores de seguir a carreira militar e servir ao exército (Hist. abbreu. 33.33-34).

Em Hist. abbreu. 37.5, o historiador viria a retomar esse tópico, sinalizando que a referida proibição decorreria de um ato jurídico, quer dizer, de um pretenso edito promulgado por Galieno (Gallieni edicto). Ou seja, o veto lançado aos senadores configurava, segundo Aurélio Vítor, um indício nítido acerca do caráter deturpado do príncipe, que teria promovido uma injúria à dignitas da preclara ordem senatorial (ANTIQUEIRA, 2011a, p. 123).

Den Boer (1972, p. 75-76) propõe que a tradição histórica, de raiz latina, veiculada por Aurélio Vítor no tocante ao reinado de Galieno, fundamenta-se em três fatores. O primeiro concerniria ao já mencionado “edito”, que teria motivado a aversão dos senadores em relação à memória do soberano.28 Em segundo lugar, a nobreza romana ter-se-ia indisposto com o imperador pelo fato de Galieno ter contribuído para a perda da importância da Urbs enquanto centro político do Império, considerando-se que as operações militares de Galieno tiveram como base a cidade de Milão. E, finalmente, a política de tolerância religiosa favorecida por Galieno, que interrompeu o ciclo de perseguições aos cristãos (como empreendido por Décio e Valeriano), teria desagradado aos membros de uma Cúria romana que, nos meados do século III, era quase que totalmente pagã. Sendo assim, a representação negativa que as

28 A despeito da dificuldade em se estabelecer a historicidade do edito de Galieno, cabe sublinhar que certas evidências epigráficas apontam que, nos anos 260, tornou-se corrente a substituição dos legados senatoriais por prefeitos equestres, no que se referia ao comando das legiões. Neste sentido, a exclusão dos senadores configurou uma medida técnica, que visava assegurar maior eficácia às empresas bélicas romanas, em um contexto em que a conjunção de ataques externos e a eclosão de várias revoltas internas demandava a adoção de novas práticas, por parte do Augusto legítimo, a fim de garantir a unidade do Império. Logo, o possível edito não objetivava, de maneira deliberada, enfraquecer politicamente a ordem senatorial. Os integrantes desta, porém, embora mais afeitos às letras do que às armas, jamais aceitariam de forma plácida tal interdito, na medida em que a proibição se chocava com o orgulho “de casta”, com o apego aos valores marciais que faziam parte dos mores maiorum. Neste caso, era imperativo que a memória de Galieno fosse vilipendiada (ANTIQUEIRA, 2011a, p. 134).

Historiae abbreuiatae (e mesmo outras fontes latinas do século IV) trazem acerca de Galieno

se alicerçaria na desafeição acalentada pelos integrantes do Senado de Roma diante de um monarca cujas ações políticas e militares contrariaram os seus interesses.

Devemos, no entanto, matizar os argumentos apresentados por den Boer. A partir da segunda metade do século III, as necessidades defensivas impeliram os principes a se fixarem em cidades próximas às fronteiras mais ameaçadas. Imperadores como Aureliano e Probo, aos quais Aurélio Vítor devotou, em linhas gerais, uma narrativa favorável, seguiram uma política orientada em função das demandas militares e, pois, passaram a maior parte de seus reinados em áreas provinciais, e não na cidade de Roma. Portanto, isto não conforma uma marca peculiar do governo de Galieno, mas constituiu a regra também para os seus sucessores.

Há que se destacar que o historiador informasse que Galieno “havia partido da cidade de Roma”, como se vê em Hist. abbreu. 33.16. Contudo, essa constatação não nos permite ratificar a proposta de den Boer. De acordo com Aurélio Vítor, Galieno somente deixou a

Urbs para combater um de seus comandantes militares, Auréolo, que marchava em direção à

cidade (Hist. abbreu. 33.17). Em verdade, a permanência de Galieno em Roma é vista como fruto da socordia do imperador, cuja apatia manteve-o afastado do campo de batalha. Neste caso, Galieno teria levado uma vida dissoluta no interior da cidade, enquanto que os bárbaros dilapidavam as províncias e os usurpadores gálicos extraíam-lhe parte da autoridade.29

Finalmente, cabe pontuar a postura de Galieno em relação ao cristianismo. Nos primeiros dois séculos da era imperial, a perseguição aos cristãos assumiu uma faceta local e esporádica. Os magistrados urbanos, dada a ausência de uma política coerente emanada da corte imperial, agiram usualmente em resposta a agitações populares pontuais. Este quadro conheceria alteração significativa apenas nos meados do século III, a partir dos reinados de Décio e de Valeriano, que promoveram tentativas coordenadas, voltadas para todo o Império, no sentido de impor uma unidade religiosa; os “desviantes” cristãos, ao se recusarem a participar de atos sacrificiais ordenados por Décio, tornar-se-iam altamente suspeitos aos olhos das autoridades imperiais, tanto do ponto de vista “político” quanto “religioso”.

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Até os meados do século II, era corrente a noção de que a permanência contínua do princeps, na cidade de Roma, exprimia a quietude que vigoraria em todas as partes do território imperial (em que pese o fato de que as várias e extensas viagens do imperador Adriano contradissessem tal percepção). Além disso, ainda no século I, era possível que grandes campanhas militares fossem empreendidas sem que o soberano acompanhasse as tropas, como foi o caso da guerra contra os partas durante o reinado de Nero, em que as forças romanas foram lideradas por Domício Córbulo. No entanto, aclara Millar (1982, p. 22) que uma alteração significativa se operou a partir da época de Marco Aurélio e perdurou até o final do século IV: preconizava-se que todo conflito bélico, fosse de natureza defensiva ou ofensiva, requeria a presença do imperador ao lado de seus comandados. Aurélio Vítor, ao condenar a reclusão de Galieno no interior da Urbs, fornecia uma evidência indireta acerca da perspectiva sublinhada por Millar.

Subsequentemente, os cristãos e sua igreja constituiriam um alvo primordial da perseguição levada a cabo pelo Estado (GADDIS, 2005, p. 32-33). Em 258, Valeriano enviou ao Senado uma oratio a fim de obter apoio da Cúria em sua campanha contra os cristãos, sobretudo aqueles que pertencessem às camadas superiores. O documento previa, notadamente, punições para os membros das ordens senatorial e equestre que professassem o cristianismo. De acordo com Haas (1983, p. 143), Valeriano ansiava por reforçar os rituais destinados aos deuses como forma de dirimir as crises econômica e militar que acometiam várias porções do território imperial na segunda metade da década de 250. A concretização da pax deorum, por sua vez, envolveria o firme restabelecimento dos cultos tradicionais no âmago dos grupos aristocráticos, em especial daqueles que residissem na Urbs, o centro concreto e simbólico da religião politeísta romana.

Em que pese, pois, o fato de o cristianismo ter se transformado, nos anos 250, em um fator que demandou uma atuação política que emanasse diretamente do núcleo do poder imperial – inclusive mobilizando o Senado, como vimos no parágrafo anterior –, resulta difícil assegurar em que grau a anulação das medidas persecutórias promulgadas por Valeriano teria estimulado, ainda na década de 260, uma oposição do ordo senatorius em relação a Galieno. Faz-se preciso relembrar que a perseguição aos cristãos somente voltaria a configurar um assunto de Estado ao final da época da Primeira Tetrarquia, quatro decênios mais tarde. Portanto, os sucessores imediatos de Galieno assumiram posição idêntica à dele, no que tangia à igreja cristã. Galieno, ao revogar os atos de seu pai, buscava canalizar todos os recursos à disposição no sentido de enfrentar as questões mais prementes de seu tempo: as invasões externas e as revoltas internas. O imperador “had quite enough dissidents to deal with in the

political and military arenas without creating more in the religious sphere as well”

(SOUTHERN, 2004, p. 81).30

Zecchini (1993, p. 108), por sua vez, garante que esta tradição negativa respeitante a Galieno se desenvolveu nas primeiras décadas do século IV, em paralelo à abolição das celebrações do “dies natalis” do diuus Galieno. No mesmo período teria sido formatada a KG,

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A época de Galieno se caracterizava por grande complexidade. Filelênico, Galieno procurou efetivar um programa político e cultural baseado no retorno aos valores do helenismo, promovendo, por exemplo, os mistérios de Elêusis como forma de conferir prestígio ao paganismo greco-romano. Paralelo a isto, decretou, como vimos, o fim da perseguição que Décio e Valeriano haviam lançado contra os cristãos. Além disso, Galieno implementou reformas na estrutura do exército imperial e nas estratégias de combate, algo que contribuiu enormemente para a ascensão política e social dos oficiais advindos das províncias danubianas, pouco afinados com as práticas culturais e religiosas incentivadas pelo imperador. Galieno havia buscado, porém, enquadrá-los dentro da perspectiva de que defendiam um Império cuja razão de ser se encontrava em uma cultura mais refinada, filosófica e literária, e não apenas nos valores marciais. Em resumo, Galieno dependia da solidariedade dos “ilíricos” a fim de resguardar a importância da Itália e de Roma (GAGÉ, 1975, p. 830-831).

que veicularia uma apreciação negativa sobre Galieno e influenciaria autores como Aurélio Vítor. Ainda de acordo com Zecchini, Constantino teria intervindo diretamente nos registros dos “natales Caesarum”, ação que resultou em uma releitura do passado romano, própria de um soberano que se via enquanto “refundador” do Império, e que teria excluído as festividades relativas aos diui Cláudio, Caracala e Galieno, entre outros.

De toda maneira, as Historiae abbreuiatae fornecem uma visão funesta acerca dos anos em que Galieno esteve à frente do Império. Assim sendo, um sombrio portento se observaria por ocasião da ascensão do imperador, como informa Aurélio Vítor:

O Senado nomeou o filho [de Valeriano], Galieno, como César e imediatamente o Tibre, no pico do verão, transbordou como se parecesse um dilúvio. Os adivinhos predisseram [que se tratava de] algo pernicioso ao Estado (perniciosum rei publicae) por causa do caráter vacilante (fluxo

ingenio) do jovem, pois que [Galieno] ao ser chamado, veio da Etrúria, de

onde corre o mencionado rio (Hist. abbreu. 32.3-4).

Enjuto Sánchez (2004, p. 149) esclarece que os autores antigos, ao exporem um acontecimento ou reflexão partindo de uma referência a um presságio qualquer, buscavam predispor o “lector a ver en la narración posterior sucesos poco habituales, fuera del orden

cósmico de las cosas, siendo dichos fenômenos las señales de que se ha trastocado dicho equilibrio que caracterizaba el mundo romano”. Por isso, a subida anormal do nível do Tibre,

fenômeno espantoso, assume na obra uma função precisa, a de antecipar o sentido dos eventos que seriam abordados na sequência imediata do texto, isto é, os desastres que se abateriam sobre o Império. Relatos deste tipo permitem que nos aproximemos das percepções que um historiador como Aurélio Vítor nutria acerca do poder e de suas formas de representação no interior dos círculos sociais “pagãos” (REQUENA, 2003, p. 87).

Feito isto, quiçá possamos enxergar no presságio que acompanha a elevação de Galieno uma crítica a seu pai, Valeriano, na medida em que este teria ignorado os sinais emitidos pelas divindades, que preconizavam a infelicidade que tomaria conta da res publica sob a autoridade de seu filho. A derrota e consequente morte de Valeriano, por obra dos persas comandados pelo rei Sapor I (cf. Hist. abbreu. 32.5), equivale na narrativa a um evento que Aurélio Vítor utilizou a fim de iluminar a validade da predição dos adivinhos.

Todavia, o historiador modelou o texto de tal maneira que não se vinculava ao César Galieno os signos de uma conduta repreensível. Como vimos, Aurélio Vítor diz que, após a ascensão de Valeriano, o Senado elevou Galieno à condição de César, associando-o a seu pai (cf. Hist. abbreu. 32.3). Durante o período em que o Augusto Valeriano se envolvia em uma

guerra “incerta e diuturna” contra os persas (Hist. abbreu. 32.5), Galieno combatia “vigorosamente” os invasores germanos na Gália (Hist. abbreu. 33.1). Quer dizer, enquanto subordinado ao imperador senior, Galieno teria demonstrado algum valor.

Ademais, Aurélio Vítor escreveu que Valeriano perdera sua vida no conflito contra Sapor I, ao sexto ano de seu governo (isto é, em 259). “Por volta da mesma época” (sub idem

tempus), a notícia da calamidade (clades) ocorrida com Valeriano teria excitado os ânimos na

Ilíria, para onde marchou Galieno a fim de suprimir as revoltas de Ingênuo e Regaliano (Hist.

abbreu. 33.2). A vitória sobre os rebeldes ilíricos configura o único elemento louvável em

meio à narrativa dedicada aos nove anos em que Galieno exerceu, segundo Aurélio Vítor, o poder imperial como o único Augusto reinante.31 Portanto, constatamos que, nas páginas das

Historiae abbreuiatae, Valeriano foi apresentado como um desafortunado imperador, que

sucumbe ante os persas “em meio a uma traição” orquestrada por Sapor I. Logo, durante a longa guerra travada no Oriente, Valeriano não teria negligenciado as áreas ocidentais, uma vez que seu filho, o César Galieno, combatia com sucesso os germanos na Gália.

Com efeito, quando da chegada de Valeriano ao trono, em setembro de 253, Galieno foi agraciado com o título de César. Porém, muito provavelmente já no ano seguinte, seu pai o elevou à condição de Augusto, de modo que coube a Galieno a administração da parte ocidental do Império. Valeriano, por sua vez, encarregou-se da tarefa de velar pela proteção das áreas orientais. Províncias como a Síria e a Mesopotâmia atraíam a cobiça da dinastia sassânida que havia reconstruído o poderio persa no Oriente, ao passo que a Ásia Menor, em especial as cidades romanas banhadas pelo mar Negro, sofria com as recorrentes invasões perpetradas pelos godos.

Diante disso, cabe atentarmos para os relatos compostos por Eutrópio e pelo autor do

Epitome. Em Eutr. 9.7.1, lê-se igualmente que Galieno recebeu as insígnias de César após a

aclamação de seu pai. Todavia, Eutrópio considerou que o reinado de ambos teria sido “pernicioso”, e não apenas por causa do infortúnio de Valeriano – que envelheceria do modo mais desonroso possível, feito escravo por Sapor I – mas também pela “desídia” de ambos os governantes. Tornado Augusto depois da captura de seu pai, o “jovem” Galieno teria exibido um comportamento modelar de início, empreendendo grandes feitos em terras gálicas e

31 Em verdade, Aurélio Vítor também reportou que Galieno havia conferido a seu filho, Salonino, a dignidade de César (cf. Hist. abbreu. 33.3), ilustrando que o soberano teria compartilhado o poder com outro membro de sua família, mesmo depois do falecimento de Valeriano. Entretanto, a inserção do César Salonino na narrativa se limita a essa simples informação; nem mesmo foram assinaladas as circunstâncias relativas ao fim da vida do filho de Galieno, morto em Colônia quando da eclosão da revolta comandada pelo usurpador Póstumo em 260.

ilíricas; porém, pouco depois, viria a dar as costas ao solene dever de preservar o Estado romano (Eutr., 9.8.1).

O Epitome, por seu turno, traça um perfil mais acerbo sobre Valeriano, se comparado com Galieno. Valeriano foi retratado como “estúpido e assaz indolente, e inadequado para exercer qualquer ofício público devido aos seus feitos e capacidade de julgamento” (Epit. 32.1). Na sequência, ignora-se que Galieno teria sido nomeado César, informando-se que tanto o pai quanto o filho governaram o Império em conjunto e ambos na condição de Augusti (Epit. 32.2). Assim, prescindindo de maior exatidão cronológica, o Epitome lista o surgimento de diferentes usurpadores durante o reinado dos dois (his imperantibus) (Epit. 32.3). No tocante a Galieno, após a morte de seu pai, meramente se reporta a paixão desmedida que o soberano teria alimentado tanto por sua esposa quanto por uma concubina de origem marcomana. Por fim, o autor do Epitome relatou de que forma Galieno veio a falecer, dispensando comentários acerca da eventual mocidade do imperador, pois que se indicava corretamente que o mesmo morreu aos cinquenta anos de idade (Epit. 33.1-3).

Portanto, as Historiae abbreuiatae não ecoaram essa tradição negativa a respeito de Valeriano, que se observa no Breviário eutropiano e, sobremaneira, no Epitome. Inclinamo- nos a considerar que a derrota sofrida pelo pai de Galieno frente aos persas, em 259 ou no ano seguinte, determinou sua sorte nos meandros da tradição histórica pagã, na medida em que o inaudito aprisionamento de um governante dos romanos seria julgado como ignominioso. Contudo, Aurélio Vítor procurou dirimir o significado do revés de Valeriano. A morte deste, sendo assim, figura como o primeiro dos muitos desastres que consumiriam o mundo romano, como anunciado pelo portento assinalado em Hist. abbreu. 32.3-4. Por outro lado, a imagem de “bom César” que se projeta a respeito de Galieno, ressoaria igualmente a marcada hierarquização do poder imperial, em particular após a era tetrárquica. Os Césares estavam vinculados ao(s) Augusto(s) e a estes, em última instância, competiria a autoridade nominal sobre o Império como um todo.32 Neste caso, a bem-sucedida ação do César Galieno contra os germanos na Gália derivaria, implicitamente, dos consilia do Augusto Valeriano33, de quem Aurélio Vítor diminuiria as faltas a fim de vilipendiar, em contraste, o filho Galieno.

32 Veyne (2002, p. 72) advoga que a concepção de poder que foi se sedimentando durante o período imperial conformava-se à sensação de que não havia senão um líder entre todos os romanos, singular por natureza. Essa ótica pode ser encontrada na referência que Aurélio Vítor estabelece acerca das relações mantidas no interior do colegiado tetrárquico, como se nota em Hist. abbreu. 39.29, e que se retrojeta na transmissão do poder de Trajano em favor de Adriano: “a partir de então, foi introduzido na res publica a separação dos títulos de César e

No documento O império romano de Aurélio Vítor (páginas 104-122)