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O cristianismo ou o interdito do silêncio

No documento O império romano de Aurélio Vítor (páginas 143-155)

CAPÍTULO 2 – Império romano, uma história de decadência Reflexões sobre o passado

2.4 O cristianismo ou o interdito do silêncio

Constantino, diz Aurélio Vítor, “[...] desviou enormemente sua atenção para a fundação de uma cidade e para dar forma a uma religião [...]” (Hist. abbreu. 41.12). A quietude de Aurélio Vítor diante de Constantinopla respondia, dentro do modelo discursivo adotado pelo historiador, ao enfraquecimento da cidade de Roma e dos valores a ela conectados. Posto assim, a inexistência de referências nominais a Constantinopla evidencia uma opção deliberada, e não fortuita, por parte do historiador. Ademais, julgamos que o mesmo pode ser afirmado, em princípio, no que respeitava à religião para a qual a dinastia Constantiniana havia se voltado, isto é, o cristianismo.

Escrevendo sob o governo de um cristão ariano, como era o caso do imperador Constâncio II, poder-se-ia presumir, de imediato, que o silêncio de Aurélio Vítor derivasse de um descontentamento porventura alimentado no que concernia às práticas religiosas engrandecidas pela família então reinante. Neste sentido, Falque (1999, p. 170) garante que o historiador “no presta atención al cristianismo, al compartir de los ideales y la ideología de

los paganos; por ello, [...] no hace ninguna referencia a la conversión de Constantino”. Alan

Cameron (1977, p. 8), por sua vez, apresenta a obra de autores como Aurélio Vítor enquanto fruto de uma espécie de “conspiração do silêncio” em face da cristianização da sociedade, marcada pela ausência de qualquer preocupação com fatos relativos à nova religião.84

Aceitar a ótica de que Aurélio Vítor se enumerava entre os autores “pagãos” não significa reduzir as relações sociais que se travavam no século IV a uma dicotomia entre paganismo e cristianismo, tampouco crer na ideia de que o historiador, ao não se converter à fé cristã, haveria de forçosamente conceber a si mesmo como um indivíduo que compartilharia quaisquer práticas religiosas com outros “pagãos” de seu tempo. Em oposição ao que postula C. Starr (1956, p. 586), afirmamos que a negligência perante a temática do cristianismo não fazia de Aurélio Vítor um homem necessariamente preso à religiosidade pagã. Por outro lado, discordamos do argumento proposto por Baldwin (1978, p. 203) de que narrativas de dimensões reduzidas, como as Historiae abbreuiatae, não fornecessem

84 Lana (1979, p. 22-23) assegura que escritores como Aurélio Vítor teriam ignorado a religião cristã e, pois, se abstiveram da tentativa de empreender uma efetiva valoração da realidade em que se inseriam, postura esta que os privava da possibilidade de apreender a dinâmica política da história imperial. Desta forma, continua Lana, a a redação de uma história que silenciasse a respeito do cristianismo se amparava, aos olhos de Aurélio Vítor, em um quimérico anseio de cancelar o tempo e fazer com que o Deus cristão desaparecesse. Pretendemos demonstrar que a falta de menções ao cristianismo resultava, ao contrário do que sugere Lana, de uma reflexão acurada que Aurélio Vítor efetuou acerca das relações entre o presente e o passado do Império romano.

evidências internas suficientes que permitissem atestar com segurança quais seriam as atitudes religiosas e mentais defendidas por seus autores.

Cabe salientar, além disso, que a adoção do cristianismo, por parte de Constantino e de seus descendentes, não produziu os mesmos efeitos, nem gerou as mesmas respostas, ao longo de todas as áreas que integravam o território do Império (T. BARNES, 1981, p. 245). Essa observação carece ser levada em conta na medida em que as Historiae abbreuiatae parecem se sustentar, largamente, sobre um ponto de vista “latinocêntrico”. Em 306, Constantino emergiria como sucessor de seu pai, na pars Occidentis, posicionando-se como defensor da tolerância religiosa. No ano seguinte, Constantino aceitou sem hesitação o título de pontífice máximo, o qual ele manteria até o leito de morte. Ou seja, o imperador se conformou aos padrões de comportamento comuns a seus predecessores não cristãos.85

Por seu turno, a morte de Maxêncio na Ponte Mílvia fez com que Constantino figurasse enquanto soberano incontestável de toda a fração ocidental do Império. Se com o imperador Licínio, o Augusto que reinava sobre as províncias orientais, havia a necessidade de se estabelecer um compromisso, a partir de 313 Constantino pôde anunciar abertamente entre os ocidentais, por meio de missivas públicas e atos legislativos, que havia abraçado a crença no Deus cristão. À maneira dos “imperatores” de antanho, os quais, mediante oferendas e a construção de templos dispensavam honras ao deus que os havia conduzido à vitória, Constantino procurou favorecer a divindade a qual creditara o sucesso alcançado no campo de batalha. Em um sentido estrito, Constantino não se desvencilhou das práticas ancestrais (LANE FOX, 1989, p. 622).

Com efeito, o cristianismo não apregoava uma transformação nas bases sociais e econômicas do mundo imperial ou se opunha às formas de dependência individual ou à escravidão existentes. Lembra Lane Fox (1989, p. 21) que, após a conversão de Constantino, as instituições sociais romanas mantiveram-se vigentes, tal como no passado. Quer dizer, os militares não abandonaram os castra (e as eventuais rebeliões entre os soldados não tinham por mote a defesa de uma crença religiosa), as distinções jurídicas entre os cidadãos não foram abolidas e tampouco as desigualdades no tocante às formas de propriedade e de acesso à terra. Em que pese isto, o ato de Constantino engendraria significativas mudanças. O cristianismo passou a abarcar um razoável número de almas durante toda a época

85 Do mesmo modo, seus filhos, ainda que cristãos, não ousaram recusar o pontificado máximo. Constantino e seus herdeiros, inclusive, não romperam por completo com o usual gesto de subsidiar os tradicionais cultos romanos. Isto valia também para Constâncio II que, ao visitar a cidade de Roma no ano de 357, ordenou que o Altar da Vitória fosse removido do interior da Cúria. Todavia, o mesmo Constâncio II, por força das obrigações inerentes ao pontificado máximo, indicou novos integrantes aos diversos colégios sacerdotais pagãos.

constantiniana, em meio a uma expansão que atingiu regiões situadas além dos limites das cidades, pois que até então as comunidades cristãs concentravam-se em áreas urbanas. Recordemos também dos privilégios legais que Constantino e seus filhos concederam aos membros da Igreja cristã: os clérigos foram eximidos do cumprimento das obrigações cívicas, os munera que pesavam sobre os ombros dos curiales, sem mencionar a concessão de atribuições judiciais aos bispos em alguns casos de litígio, bem como a validade das heranças legadas à Igreja, ainda que não estivessem formalizadas por via testamentária.

Sendo assim, o suporte que a dinastia Constantiniana forneceu aos cristãos não implicava que os imperadores negligenciassem suas tradicionais funções públicas ou empreendessem um programa amplo e sistemático de proibição dos rituais pagãos. Constantino e seus sucessores imediatos, ainda que assumissem a posição de patronos da fé de uma então minoria cristã, moviam-se em um terreno pantanoso, pois tinham de lidar com uma aristocracia regional e senatorial e com forças militares que permaneceram, em sua maioria, “pagãs”, sobretudo no Ocidente do Império (LANE FOX, 1989, p. 666).

Neste contexto, poderia Aurélio Vítor ter deixado de “prestar atenção ao cristianismo”?86 Sublinhemos que o fato de não ter adotado o cristianismo, como se deduz pela inexistência de maiores indicações ao novo credo nas Historiae abbreuiatae, não configura uma explicação suficiente para a ausência de referências claras a temas como a conversão de Constantino ou a fundação de Constantinopla. Similarmente, o historiador ignorou as questões administrativas e institucionais relativas à era constantiniana, para as quais se revelou atento, porém, nas demais seções de sua obra. Assim posto, coisa alguma se lê a respeito do volumoso corpus jurídico editado sob a rubrica de Constantino e Constâncio II, do qual parte considerável legislava a respeito do cristianismo e estabelecia privilégios especiais e isenções fiscais aos integrantes da Igreja. Tampouco Aurélio Vítor se pronunciou acerca dos templos cristãos erguidos na cidade de Roma durante o governo de Constantino (como a Basílica Sessoriana, misto de palácio e igreja em que residiu Helena, a mãe do imperador, e a dedicação da Basílica do Salvador87, que se localizava no interior da cidade).88

86 Faz-se oportuno, a nosso ver, salientar que a adoção do cristianismo, por parte de Constantino e seus sucessores, não significava meramente a escolha entre um ou outro sistema religioso. À medida que a corte imperial promovia a fé cristã, ela ratificava um novo princípio ordenador da vida em comunidade, de modo que ganhava força uma modalidade alternativa de compreensão do lugar do indivíduo na sociedade que implicaria o desnorteamento daqueles que permanecessem agarrados aos valores e normas tradicionais. Não se tratava, pois, da possibilidade ou não de se adaptar o “Deus cristão” ao panteão romano, mas sim de uma transformação que afetava o sentido da própria prática religiosa, qual seja, o de fornecer os meios para que se efetivasse o ordenamento ideológico da sociedade como um todo (JUDGE, 1983, p. 13; p. 23).

87 A futura Basílica de São João de Latrão. 88

Millar (1986, p. 299) destaca o quão infrequente teriam sido as ocasiões em que os imperadores custearam, pessoalmente, projetos edilícios de larga envergadura em áreas fora da Urbs ou em locais que não tivessem

Soa implausível que Aurélio Vítor desconhecesse a opção religiosa dos soberanos de seu tempo. A África romana, região em que o historiador provavelmente havia nascido, foi palco de acirradas disputas entre ortodoxos e donatistas durante toda a primeira metade do século IV. Após sua conversão, Constantino interveio diretamente na questão, a fim de assegurar a unidade doutrinária da Igreja. Para tanto, o referido monarca determinou, por intermédio de um edito promulgado em 317, que todas as propriedades ligadas aos templos donatistas fossem confiscadas. Quatro anos mais tarde, Constantino lançaria um novo edito, garantindo a tolerância ao culto donatista nas províncias romanas do Norte da África, para que se apaziguassem as querelas religiosas naquelas áreas (Averil CAMERON, 1993, p. 56).

Ademais, um acontecimento particular sucedeu-se em Sírmio, no momento em que Aurélio Vítor já residiria naquela localidade, e que demandou a presença do imperador reinante. Em maio de 359, foi realizado um concílio na mencionada cidade panônica, sob a supervisão de Constâncio II em pessoa. Este, seguindo a política eclesiástica de seu pai, pautada na busca pela harmonização da comunidade cristã por meio do debate, da persuasão e, se necessário, da coerção89, procurou assentar uma solução de compromisso a fim de pôr termo à polêmica cristológica que opunha nicenos e arianos.

Em Sírmio, os prelados reunidos90 determinaram que o Filho de Deus seria “semelhante” (homoios) ao Pai, porém proibiram que se empregassem conceitos referentes à

ousia (“essência”, “substância”) ao se descrever a natureza da relação entre Pai e Filho. No

outono do mesmo ano de 359, deu-se a realização simultânea dos denominados “concílios gêmeos”, em que os bispos da parte ocidental do Império se encontraram em Rímini, ao passo que o episcopado oriental se agrupou na cidade de Selêucia (na Isáuria romana). A intenção de Constâncio II era a de que ambos os concílios aceitassem a solução adotada em Sírmio, o chamado “Credo Datado”, que atendia aos seus interesses (HUMPHREYS, 1997, p. 454).91 No entanto, dado o fracasso de suas pretensões, o imperador convocaria um novo concílio, ocorrido em Constantinopla durante o mês de janeiro de 360, para que a fórmula sirmiana

vinculação direta com aquela. Constantino, entretanto, além da fundação de Constantinopla, ordenou e/ou financiou boa parte dos recursos para a ereção de grandes igrejas em diferentes pontos do território imperial, entre os anos de 313 e 337. De acordo com Lane Fox (1989, p. 623), a busca pela publicização da religião cristã conduziu à realização de um vasto programa de construções em pedra, que soberano algum na Antiguidade jamais realizou. Aurélio Vítor, porém, não se manifestou acerca desse processo.

89 Para tanto, cf. López Sánchez (2000, p. 64).

90 T. Barnes (2001, p. 230) levanta dúvidas quanto à ocorrência de um efetivo concílio ecumênico em Sírmio, no ano de 359. Na referida data, alega o estudioso, tão somente um grupo de bispos teria se reunido, com o objetivo de chancelar o credo homoiano que Constâncio II desejava estender a todos os cristãos.

91 Constâncio II defendia uma espécie de arianismo moderado e, pois, apegou-se à doutrina teológica homoiana, segundo a qual o Filho seria “similar” ao Pai. Desta forma, não se tocava diretamente na espinhosa questão da “substância” de Cristo, que opunha os partidários da ortodoxia trinitária nicena e aqueles que professavam o subordinacionismo ariano (HUMPHREYS, 1997, p. 448).

fosse oficialmente reconhecida no seio da Igreja e, assim, cessassem as disputas entre seus súditos cristãos.

Debate cristológico à parte, a formalização do “Credo Datado” em maio de 359 nos leva a considerar o fato de que Constâncio II esteve presente em Sírmio exatamente no momento em que Aurélio Vítor compunha sua obra ou, ao menos, acalentava a intenção de escrevê-la.92 Diante disso, julgamos adequado supor que o historiador dispusesse das condições de ter acompanhado o debate que ali se desenrolou, mas, posto não comungasse da fé cristã, não nutria a intenção de informar e menos ainda de refletir acerca da política religiosa de Constâncio II.93 De todo modo, Aurélio Vítor elaborou sua obra imerso em um ambiente em que o cristianismo se fazia sentir, de maneira bem próxima.

Como compreender, pois, a postura do historiador frente a esse contexto? A atmosfera pagã que se conota a partir da leitura da obra parece indicar a resposta mais adequada. Mas em que sentido? Alan Cameron e Averil Cameron (1964, p. 327) propõem que as convenções do gênero historiográfico na Antiguidade romana impediam que os autores introduzissem em seus textos uma terminologia cristã sem que ameaçassem o caráter “clássico” – quer dizer, “não cristão” – da narrativa como um todo. Porém, esta colocação ilumina apenas de modo parcial as possíveis razões que induziram Aurélio Vítor a tacitamente excluir toda e qualquer menção explícita ao cristianismo. Vale lembrar, pelo contrário, que escritores aparentemente “pagãos” como Eutrópio e o autor do Epitome não se furtaram a mencionar eventos ou concepções relacionadas ao cristianismo94 – ainda que, não nos esqueçamos, ambos compusessem suas respectivas obras em momento posterior ao de Aurélio Vítor.

Por outro lado, reputamos equivocado que se avalie as Historiae abbreuiatae como uma obra panfletária, uma peça de manifesta oposição à fé cristã cultivada pelos imperadores e por uma parcela dos funcionários imperiais nos meados do século IV. Como adverte Syme (2001, p. 212-213), assumir a proposição de que um autor escreve a fim de defender algum

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Mazzarino (2005, p. 706) aclara que o episcopado ilírico havia se tornado assaz poderoso em meados do século IV, o que impulsionou, inclusive, a criação da prefeitura do pretório da Ilíria – quer dizer, a instituição em que Aurélio Vítor teria exercido as funções de numerário. Além disso, durante o concílio de Rímini a política imperial em relação à Igreja adquiriu contornos mais definidos: em continuidade à prática imunitária de Constantino, foi estabelecido o princípio da distinção entre as propriedades da Igreja, isentas de impostos, e as propriedades dos clérigos, sujeitas aos munera curialia.

93 Após a vitória sobre Magnêncio em 353 e o apontamento de Juliano como César em 355, para que a ordem na fronteira renana pudesse ser reestabelecida, Constâncio II pôde centrar o seu foco, na segunda metade da década de 350, nas disputas eclesiásticas que envolviam os adeptos do arianismo e da doutrina nicena.

94 Diz Eutrópio (10.16.3) que Juliano perseguiu “excessivamente” a religião cristã, embora tivesse se abstido de derramar sangue. Já no Epitome lemos que o mesmo Juliano cultuava os deuses de maneira “supersticiosa” (Epit. 43.7) e, mais ainda, que os pais de Teodósio assim o denominaram porque haviam sido advertidos em um sonho para tanto. Em tempo, o próprio autor do Epitome informava que o nome do imperador significava, em língua latina, “dado por Deus” (deo datus) (Epit. 48.2).

tipo de política ou crença religiosa implica afirmar que a narrativa foi estruturada e orientada com vistas a alcançar um único, e delimitado, alvo. O texto de Aurélio Vítor não se coaduna, pois, com tamanha perspectiva. Vale destacar também que havia uma unidade diacrônica no plano das mentalidades, de forma que os literatos, independente da inclinação religiosa, operavam dentro de um universo cultural comum, ressignificado em função de objetivos e de motivações específicas (INGLEBERT, 1996, p. 566-567). Tais condições permitiram que o Império se cristianizasse sem que, todavia, fosse necessário renegar-se por inteiro.95

Bowersock (1986, p. 300) aponta que os intelectuais de cunho pagão empreenderam um esforço no sentido de introduzir a dinastia Constantiniana dentro dos quadros tradicionais de pensamento. No momento em que Constantino abraçou a religião cristã, as noções que circulavam na sociedade imperial, no que tangia ao mundo sobrenatural, vinculavam-se a diferentes perspectivas “pagãs”. Logo, não surpreende que Aurélio Vítor interpretasse os reinados de Constantino e de seus filhos de acordo com as concepções comuns à escrita da história em Roma desde as épocas republicana e alto-imperial, malgrado as alterações políticas, institucionais e culturais associadas ao fato de os governantes romanos assumirem a crença monoteísta cristã. Cabe recordar, além disso, que a emergência de uma estrutura eclesiástica ligada à figura do imperador gerava um choque de interesses entre o Estado romano e a Igreja. A distinção entre religião e política, cara aos judeus e aos cristãos, carecia de todo fundamento aos olhos dos “não cristãos”, dos “pagãos”. Para estes, a observância dos ritos religiosos estava profundamente amarrada ao serviço e à lealdade para com a res publica (BOWERSOCK, 1986, p. 298).

Neste contexto, a indisposição diante do cristianismo, como se infere a partir do silêncio do historiador em face do tema, sinaliza a fidelidade de Aurélio Vítor àquilo que definiríamos como os tradicionais “fundamentos teóricos do poder político imperial- romano”.96 Em outras palavras, ainda que os principais agentes do poder no interior da sociedade se voltassem para o Deus cristão, Aurélio Vítor reportou ao público a história de um Império que, mesmo no presente, não se dissociava dos valores e das práticas pagãs, ou antes, “não cristãs”.

Tal se nota, pois, mediante um elemento para o qual o historiador recorreu em diferentes pontos de sua narrativa: o prodigium. Este representava um canal difuso de contato

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No plano da escrita da história, esse processo se verificava por meio da (aparente) “neutralidade”, em matéria de religião, que caracterizou os compêndios “pagãos” no século IV, que propiciaram um campo fértil que os cristãos puderam cultivar visando seus próprios interesses (MOMIGLIANO, 1993, p. 101). Isto esclarece porque autores cristãos como Jerônimo e Sulpício Severo, ao elaborarem suas respectivas crônicas, não teriam sentido maiores dificuldades ao consultarem as Historiae abbreuiatae.

com o universo divino97, um fenômeno que, em suma, dizia respeito ao “núcleo” da religiosidade pagã na Antiguidade greco-romana, qual seja, a busca dos homens por honrar os deuses e evitar os infortúnios resultantes em casos de negligentia deorum (LANE FOX, 1989, p. 38). Fatos pertinentes ao reinado do cristão Constantino foram interpretados por Aurélio Vítor a partir da suposta ocorrência de certos prodígios. Logo, em Hist. abbreu. 41.7, apresentava-se a conclusão de que a aliança entre Constantino e Licínio não perduraria e tampouco favoreceria os envolvidos na mesma, pois que, quando a concórdia foi estabelecida entre os Augusti, um eclipse do sol obscureceu a luz do dia. Mais adiante, Aurélio Vítor escreveria que Constante foi associado ao poder, na condição de César, após a vitória de seu pai ante os godos e os sármatas. Porém, na noite seguinte à elevação de Constante, “a face do céu” ardeu como se consumida pelo fogo, algo que atestava a desordem que tomaria conta da

res publica por causa da ascensão do jovem soberano (Hist. abbreu. 41.13-14).98

A despeito da brevidade do relato, Aurélio Vítor cedeu espaço a esse aspecto pertinente à cosmovisão pagã e, enquanto tal, encarado como importante fator no desenrolar da vida cotidiana, um domínio em que os deuses revelavam o interesse que nutriam acerca do devir de Roma.99 Sinal de fissuras na relação entre a coletividade e os deuses, os pagãos geralmente concebiam os prodígios como fatores negativos, prenúncios de um desastre. Tratar-se-ia de fenômenos que preconizariam o descontentamento das divindades em relação

No documento O império romano de Aurélio Vítor (páginas 143-155)