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Aurélio Vítor e o munus do historiador

No documento O império romano de Aurélio Vítor (páginas 81-93)

CAPÍTULO 1 – História abreviada ou biografia dos Césares?

1.5 Aurélio Vítor e o munus do historiador

Uma das funções que se atribuía comumente à escrita da história no mundo greco- romano, diz Hedrick Junior (2000, p. 131), vinculava-se ao propósito de reabilitação dos fatos do passado, isto é, a intenção de se dar voz àquilo que se mantinha em silêncio nos interstícios da memória coletiva. Em outras palavras, o discurso historiográfico reuniria a capacidade de trazer à tona os elementos de antanho, os quais, distantes do tempo presente, haviam caído no esquecimento. Neste sentido, ao comporem suas narrativas, os historiadores impediriam que fragmentos do passado perecessem por completo e escapassem ao conhecimento dos homens.

A escrita da história emergia, portanto, associada ao ato de recordar. Essa “função comemorativa”118 da história remontava a Heródoto, que no prólogo às Histórias exprimiu o intuito de conservar “os grandes e maravilhosos feitos dos helenos e dos bárbaros para não serem esquecidos e não ficarem sem glória”.119 Séculos mais tarde, em seus Anais, Tácito iria se expressar acerca daquilo que reputou como a “principal função da história” (praecipuum

munus annalium):

Não aspiro, de modo algum, relatar as opiniões que foram estabelecidas [no Senado], exceto aquelas insignes por serem honoráveis ou notáveis por serem vergonhosas, pois considero que a principal função da história seja não deixar no silêncio as virtudes, ao passo que [desperte] a aversão da posteridade pelos perversos ditos e fatos e o temor da infâmia (Tac., Ann. 3.65.1).

Cabe salientar que Tácito preconizou, em primeiro lugar, qual deveria ser o papel da história no que tangia aos bons valores, às virtudes (uirtutes), para em seguida definir a relevância de se registrar igualmente maus modelos (prauis dictis factisque). Logo, o historiador estaria obrigado a registrar em seu texto os mais variados tipos de exemplos, quer fossem positivos ou negativos (LUCE, 1991, p. 2907). Ademais, se a narrativa histórica rememora os bons exemplos do passado, mantendo-os vivos no presente, por outro lado funcionaria como um instrumento de dissuasão dos leitores, no que concernia aos fatos

118

Do latim “commemorare”, que evocava a ideia de “trazer à memória”, de “fazer recordar” e assim por diante. 119 Emprega-se aqui a tradução realizada por Ribeiro Júnior (2002, p. 29).

eivados de vícios, uma vez que Tácito chamou a atenção para o julgamento que os pósteros fariam com base no relato que o historiador elaboraria. Tendo em vista que determinados acontecimentos e personalidades, se abarcados por uma obra de história, jamais se misturariam às brumas do olvido imposto pelo passar dos anos, o historiador “taciteano” poderia impedir “[...] bad men from their impulse to do evil because in [his] pages they will

receive everlasting opprobrium” (LUCE, 1991, p. 2913).

Sendo assim, um trabalho como os Anais de Tácito dirigiram-se ao elogio das virtudes, ao fustigar dos vícios e, consequentemente, voltavam-se à instrução dos homens, na medida em que os indivíduos perversos viessem a temer o julgamento da posteridade. Tácito compreendia, pois, seu discurso histórico nos termos de uma função moralizadora, educativa e preventiva, uma vez que não objetivava apenas compor um testemunho dos eventos, mas uma narrativa que lhe permitisse ajuizar e mensurar as ações e o comportamento das personagens históricas (CIZEK, 1991, p. 141).

Dois séculos e meio depois, concepções similares às taciteanas integrariam o texto de Aurélio Vítor, que assim se referia à importância da história:

A menos que a isso [ie., a concessão póstuma de honrarias àqueles que não as merecessem] resistisse a credibilidade da história (fides gestarum rerum), que nem permite privar as pessoas honestas da recompensa de serem recordadas, tampouco conceder aos ímprobos fama ilustre e eterna, em vão se buscaria a virtude, pois que esta verdadeira e única honra aos piores seria atribuída gratuitamente e subtraída de maneira ímpia aos bons (Hist. abbreu. 33.26)

Aurélio Vítor conferia à história um papel semelhante ao que Tácito havia antes postulado. Ambos abordaram a questão da dicotomia entre boas e más pessoas ou ações, do que a história daria o devido testemunho: os bons exemplos seriam rememorados, de acordo com a sua própria essência. Desta forma, Aurélio Vítor pretendia que sua obra assumisse uma “função comemorativa”, pois aqueles que tivessem cultivado uma conduta virtuosa jamais seriam olvidados, como se se tratasse de um prêmio que os pósteros outorgariam. Por isto mesmo, não seria possível extrair da narrativa os modelos negativos. Estes não poderiam alcançar a posteridade senão conforme aquilo que haviam sido no passado, uma vez que não se deveria “conceder aos ímprobos fama ilustre e eterna”.

Mais importante ainda, a fala de Aurélio Vítor toca em dois pontos fundamentais. Primeiramente, compreende-se a história sob uma dimensão especialmente moralizadora, na trilha seguida por Tácito e o “praecipuum munus annalium”. Nestes termos, a história se

confunde com uma guardiã da moral120, pois os bons exemplos nela incluídos garantiriam que os seres humanos não buscassem, em vão, pela virtude, ao mesmo tempo em que não se atribuiria uma glória imerecida aos péssimos indivíduos. Ora, Edwards (1996a, p. 4) sublinha que os discursos moralizantes em Roma estavam profundamente implicados nas estruturas do poder. Feito isto, pensamos a construção da memória do passado romano como um espaço de poder e, logo, Aurélio Vítor reivindicava para a história um papel crucial, qual seja, assegurar à geração presente e às futuras que a uirtus representa uma honraria que, no passado, apenas os boni poderiam reclamar para si. À maneira de Tácito, o autor tardo-antigo almejava elaborar um relato que testemunhasse e igualmente emitisse um julgamento acerca dos fatos selecionados para integrar o seu texto.121

Em segundo lugar, a fides da narrativa histórica residiria, justamente, no fato de se apresentar tanto os bons quanto os maus exemplos e, por conseguinte, o historiador teria que legá-los à posteridade tendo em vista o modo como teriam se configurado no passado. Porém, a fides assinalada por Aurélio Vítor não correspondia à (busca por) uma objetividade absoluta, mas antes à honestidade do autor em sua tarefa de escrever a história, à probidade da narrativa, como ensina Cizek (1994, p. 112).

A nosso ver, Aurélio Vítor se guiou por tal perspectiva ao elaborar o seu texto, de forma que a mesma assumiria, pois, as feições de método expositivo. Quer dizer, a narrativa se sustenta sobre uma dicotomia entre atos concebidos como positivos ou negativos, que merecem o louvor ou, quando for o caso, uma reprimenda por parte do autor. Mas os retratos pincelados por Aurélio Vítor, no que respeita aos imperadores romanos, não se mostram absolutos ou inflexíveis; pode-se apontar o emprego de cores intermediárias, que resultam no estabelecimento de representações matizadas acerca das personagens centrais do texto. Sendo assim, o relato tangente a um único monarca apresentaria tanto qualidades quanto vícios122, condição esta que traz ao relato a impressão de confiabilidade – a fides que se indica em Hist.

120 Dufraigne (1975, p. 165-166) prefere salientar que esta concepção pouco tinha de original, podendo ser encontrada, por exemplo, no prefácio da Biblioteca Histórica de Diodoro Sículo (1.2). Por seu turno, Aurélio Vítor daria à noção uma roupagem toda particular, ilustrando a missão que definiu para seu próprio labor. 121

C. Starr (1956, p. 574) advoga em favor da ideia de que as Historiae abbreuiatae lançam uma possível luz sobre os modos de pensar e expressam as inquietações e aspirações dos integrantes de burocracia imperial nos meados do século IV, assim como uma visão do passado corrente no interior das camadas razoavelmente letradas, mas que não pertenciam aos círculos mais elevados da sociedade daquele período. Ainda que se possa concordar com a proposta lançada por C. Starr, devemos enfatizar que, em Hist. abbreu. 33.26, Aurélio Vítor definiu um recorte entre honesti/boni, de um lado, e improbi/pessimi, de outro, sem que se identificassem tais elementos sociais com qualquer grupo em específico. Esta postura permitia ao historiador, por exemplo, criticar ou salientar a inaptidão e a fraqueza dos senadores em diversos momentos da história imperial (cf. Hist. abbreu. 3.18-19; 25.2; 37.5-7). Quanto a isto, ver Cap. 4, seção 4.3.

abbreu. 33.26. Aurélio Vítor tencionava expressar, em sua narrativa, uma ideia de apego aos

fatos ou, antes, projetar uma ótica de verossimilhança.

Por certo, cabe destacar que Aurélio Vítor abandonou tal princípio metodológico em dois momentos distintos de seu relato. O texto das Historiae abbreuiatae não exibe nem ao menos um aspecto favorável em relação ao governo de Tibério (14-37). O sucessor de Augusto, enquanto homem de Estado, ausentou-se da narrativa. O historiador parece furtar de Tibério a condição de sujeito ativo no tocante à exígua expansão do território imperial, ao afirmar que “se criou” a província da Capadócia, logo no começo de seu reinado (Hist.

abbreu. 2.3). O mesmo se aplica no que dizia respeito às vitórias obtidas diante dos

“bárbaros” nas fronteiras reno-danubianas, uma vez que “reprimiram-se” as nefastas ações de banditismo empreendidas pelos gétulos liderados por Tacfarinas, ao passo que se diz que o rei dos suevos, Marobodo, “foi habilmente capturado” (Hist. abbreu. 2.3-4). Aurélio Vítor parece insinuar que os êxitos militares, obtidos durante a época de Tibério, foram protagonizados por terceiros, sem a participação e/ou influência do imperador, como se os responsáveis pelas vitórias no campo de batalha, embora inominados, se contrapusessem ao dissoluto princeps.

Neste ensejo, somente no que respeitava à constituição dos “castra praetoria” é que Aurélio Vítor conferiu um papel determinante ao imperador, que se pode deduzir da informação de que Tibério “reduziu” os pretorianos a um acampamento próximo da cidade de Roma, sob a responsabilidade da prefeitura do pretório (Hist. abbreu. 2.4). Por ironia, os pretorianos (ou, mais propriamente, os homens de armas como um todo) atuariam como elemento de desordem no interior da narrativa até que as coortes pretorianas, “mais inclinadas à sublevação do que à proteção da cidade de Roma”, fossem suprimidas após a vitória de Constantino sobre Maxêncio (cf. Hist. abbreu. 40.25). Logo, as ações de Tibério restringem- se, na narrativa, à dissimulação e à entrega aos vícios mais degradantes, sem distinção de idade ou sexo (Hist. abbreu. 2.1). Em outras palavras, no entender de Aurélio Vítor, Tibério não cumpriu com os atributos pertinentes ao imperator, ou seja, a “cura rei publicae”.

O segundo ponto se refere ao curto reinado de Macrino (217-218) e de seu filho, Diadúmeno e, pois, revela certa idiossincrasia. Aurélio Vítor destinou parcas linhas, no interior da narrativa, ao governo dos supracitados monarcas, chegando mesmo a utilizar a frase “nihil reperimus”123 em relação às duas personagens. Malgrado isto, Aurélio Vítor

123 Eutrópio (8.21.1) compartilha tal perspectiva, ao postular que Macrino e seu filho “não engendraram nada de memorável por causa da brevidade do reinado [de ambos]”. Isto ajuda a explicar o fato de os dois não equivalerem senão a nomes que foram incluídos no Breviário eutropiano. Contudo, a despeito dos quatorze meses em que governaram o Império, Aurélio Vítor procurou, diferentemente de Eutrópio, definir o caráter de ambos e as circunstâncias que envolveram a ascensão e a queda de Macrino e de Diadúmeno.

destacaria que tanto Macrino quanto o César Diadúmeno eram dotados de um “caráter cruel e imoderado” (saeuos atque inciuiles animos). Além disso, Aurélio Vítor informou apenas o fato de “Opílio Macrino [...] ocupar a prefeitura do pretório” e ter sido o escolhido das legiões para suceder a Caracala (Hist. abbreu. 22.1). Sendo assim, vale registrar que Tibério e Macrino, retratados pelo historiador como “maus” imperadores por completo – sem que lhes fosse atribuída virtude alguma – estivessem vinculados à guarda pretoriana, uma das instituições que, nas páginas das Historiae abbreuiatae, emergem como fator de desestabilização da ordem social e política no decorrer da história do Império romano.124

Posto isto, salientemos que Townend (1967, p. 82) assegura que as biografias suetonianas quase sempre expunham uma mistura de pontos positivos e negativos acerca dos governantes retratados, de uma maneira tal que caberia aos leitores a tarefa de formular um ajuizamento a respeito dos imperadores.125 Contudo, podemos argumentar que Aurélio Vítor nutriu uma concepção de história paralela àquela que tangia, por exemplo, ao preceito do “praecipuum munus” defendido por Tácito.126

Cabe ressaltar, uma vez mais, que a existência de elementos biográficos em uma obra não a transforma, por consequência, em uma biografia.127 Sendo assim, faz-se plausível apontar que a empreitada de Aurélio Vítor se filiava às bases constitutivas da própria historiografia romana. Neste caso, as Historiae abbreuiatae não figurariam enquanto exemplo do obscurecimento das concepções de história e biografia na Roma imperial, mas antes atestavam a pertinência de preceitos metodológicos que se enraizavam nas Histórias polibianas ou se observavam também na salustiana Guerra de Catilina. Tratar-se-ia, pois, da busca por uma avaliação psicológica como fundamento de causalidade na história, e não um procedimento que visava apenas à construção de personagens a fim de louvá-las ou condená- las em razão de suas ações. O desvendar da lógica dos acontecimentos envolvia o

124 Para tanto, cf. Cap. 3, p. 213 ss.

125 Procedimento que fora levado ao extremo no relativo a Calígula, por exemplo: em Cal. 22.1, Suetônio enfatizaria que “até este ponto sobre o imperador, mas daqui em diante sobre o monstro se relatará”. Como quer La Penna (1978 apud GIUA, 1990, p. 557), “la paradossalità del ritratto”, o amálgama entre virtudes e vícios, a compor a representação de um único monarca , também pode ser apontada em Tácito, como se observa nos casos do imperador Tito, no que respeitava à sua trajetória anterior à ancensão ao trono (Tac., Hist. 2.2), e de Tibério (Tac., Ann. 6.51).

126

Embora resulte impossível afirmamos que Aurélio Vítor foi um leitor das obras taciteanas, a ideia da “fides rerum gestarum” talvez sugira que Aurélio Vítor não se serviu de Tácito apenas, como defende Rohrbacher (2002, p. 45), enquanto um modelo estilístico. Além disso, quiçá a similitude observada entre a postura de Tácito e a de Aurélio Vítor, no tocante à função da história, demonstre que Aurélio Vítor baseou-se em diversas outras fontes, para além da propalada KG, visto que a perspectiva da “credibilidade da história” não encontra guarida no texto de Eutrópio e no Epitome (ainda que se afirmasse, em Epit. 3.6, que se legaria à posteridade informações sobre Calígula na medida em que pudessem servir para evitar que os ímprobos emulassem os atos daquele monarca, por temerem a fama que viriam a adquirir).

127

Dito de outra maneira, os modos do discurso presentes em um texto não se confundem, estritamente, com o gênero literário ao qual um texto pertenceria.

enaltecimento e o vitupério, mas com vistas à verdade, e não à amplificação retórica. Portanto, poder-se-ia afirmar que Aurélio Vítor teria percorrido um caminho próprio do gênero histórico, e não necessariamente do biográfico, como indica Sebastiani (informação verbal).128 Esta trilha, aberta por historiadores como Políbio, resultava no fato de o material biográfico, quer dizer, a presença de elementos concernentes à vida de uma personalidade, mostrar-se não apenas apropriado como necessário ao relato historiográfico, na medida em que as qualidades e os defeitos individuais pudessem afetar o encadeamento dos eventos (FARRINGTON, 2011, p. 328; p. 336).

Isto posto, retomemos a análise das concepções trabalhadas por Aurélio Vítor em Hist.

abbreu. 33.26. Neste versículo, se atestava também a existência de uma “verdadeira e única

honra” (uerum atque unicum decus). Nota-se, pois, uma tentativa de retomada do conceito de “uerum” ou “ueritas”, que talvez assinalasse que o autor objetivava manifestar a sua devoção à “verdade”, ao empreender a tarefa de narrar a história do Império romano. Desta forma, a afirmação da verdade por parte de Aurélio Vítor não se resumia àquilo que Desideri (1995) aponta como uma convenção que se cristaliza nos interstícios da produção historiográfica greco-romana a qual, entretanto, “non troverebbe in realtà conferma nel concreto modus

operandi dei singoli scrittori”, atados às demandas literárias e retóricas que se interpunham ao

ofício do historiador antigo.

Por isto, ao longo do texto de Aurélio Vítor verificamos a inserção de algumas observações a fim de evidenciar aos potenciais leitores que a narrativa dos fatos teria obedecido ao critério da verdade. Isto é, ainda que se tratasse de uma estratégia de persuasão, Aurélio Vítor lançou mão dos pressupostos comuns à escrita da história entre os antigos, para que se cumprissem com as expectativas que o público nutriria em relação ao gênero e, pois, sedimentar sua posição enquanto “scriptor historicus”. Devemos recordar, ademais, que o processo determinante da “verdade”, nos meandros da historiografia grega e romana, resultava um tanto quanto óbvio, na medida em que se acreditava que, ao se extrair de uma obra quaisquer indícios flagrantes de favoritismo ou hostilidade dirigidos a outrem, alcançar- se-ia à verdade (LUCE, 1989, p. 17). Neste sentido, as assertivas quanto à imparcialidade de um relato emanavam, sobretudo, de historiadores ocupados com eventos contemporâneos e/ou pertencentes ao passado recente, caso em que Aurélio Vítor também se enquadraria.

128 Sugestão fornecida por Sebastiani durante a realização do Exame de Qualificação relativo ao presente trabalho, ocorrido em 07 dez. 2010. Bird (1994, p. xxi) afirma que Aurélio Vítor “was intent upon writing history than biography”. Contudo, Bird não se propôs a desenvolver sua hipótese com a devida profundidade.

Aurélio Vítor, portanto, almejava atestar para os leitores a excelência de seu labor, sua autoridade enquanto historiador, ao transmitir uma percepção de si próprio como narrador imparcial, em função do propalado apego à credibilidade dos fatos. Neste ensejo, ao comentar a respeito da ascensão de provinciais ao trono imperial, Aurélio Vítor sublinhou a importância de tais indivíduos para o engrandecimento da cidade de Roma. Esta conclusão seria fruto dos esforços despendidos para a escritura da obra, visto o autor afirmar, à moda de Salústio, que havia ouvido e lido muitas coisas (cf. Hist. abbreu. 11.13). Assim, Aurélio Vítor expunha ao público leitor uma ponderação “objetiva”, pois que alicerçada sobre uma alegada atividade de pesquisa. O mesmo pode ser aplicado para Hist. abbreu. 22.3, passagem em que se registra a advertência de que “nada encontramos (nihil reperimus)” acerca de Macrino e seu filho, Diadúmeno. A alegação de que coisa alguma havia sido encontrada a respeito de Macrino implicaria, em princípio, que o autor teria procedido à busca por material acerca do reinado daquele para que, enfim, se extraíssem informações a serem incluídas nas Historiae

abbreuiatae.129

O ato de “ouvir e ler” sustenta a percepção de um historiador que teria empreendido uma efetiva inquirição, coletando e selecionando certos dados, a fim de compor seu relato. “A tarefa de investigação”, atestou Políbio em meio às críticas que dirigiu a Timeu de Tauromênio, “é a parte mais importante da história” (Polyb. 12.4c.3). Mas a empreitada indicada por Políbio se assentava na percepção direta e visual de um acontecimento. Em verdade, um procedimento desta monta não estava desprovido de limitações.130 A maior parte

129 Desta maneira, se justificariam os reduzidos quatro versículos destinados ao governo de Macrino (cf. Hist. abbreu. 22.1-4), muito embora Macrino tivesse reinado por mais de um ano. Malgrado a escassa importância que Aurélio Vítor conferiu a Macrino, a probidade da narrativa passava, pois, pela referência a todos os purpurati (ou, mais precisamente, àqueles que se reputava por “legítimos”), uma vez que, como lembra Veyne (2002, p. 72), se era imperador “por estado” e não “por ação”. Significa dizer que, à medida que um indivíduo alcançasse o trono e fosse concebido como governante “legítimo”, forçosamente teria de ser mencionado em toda obra que se ocupasse da história imperial. Portanto, na condição de imperador “legítimo”, Macrino se enumerava dentre as personagens com as quais o historiador do século IV haveria de lidar, ao se voltar para o passado, tal como se procederia com relação a longevos soberanos. Entretanto, se os atos do monarca fossem considerados pouco relevantes, poder-se-ia devotar aos mesmos um espaço reduzido ou simplesmente ignorá-los. Subsiste, em suma, o imperativo de se incluir tais personagens na obra, independente do caráter ou relevância que possuíssem (cf., por exemplo, Hist. abbreu. 5.4). Isto, porém, não seria válido para os “usurpadores”. Daí que Aurélio Vítor pudesse desconsiderar indivíduos como Avídio Cássio (que reclamou a púrpura durante três meses, na Síria e no Egito, durante o ano de 175) ou Taurino, que se fez imperador em 232, contando com o apoio da legião

No documento O império romano de Aurélio Vítor (páginas 81-93)