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2. AretƝ, propriedade e valor

3.5. A cidade doente

Sócrates reconhece verdadeira esta cidade de necessidades limitadas, ele aceita a exigência de Glaucon, fazer do costume a medida dos bens e do necessário:

Seja – disse eu –. Compreendo. Não estamos apenas a examinar, ao que parece, a origem de uma cidade, mas uma cidade de luxo (IJȡȣij૵ıĮȞ ʌંȜȚȞ). Talvez não seja mau. Efetivamente, ao estudarmos uma cidade dessas, depressa podemos descobrir de onde surgem nas cidades a justiça e a injustiça. A verdadeira cidade parece-me ser aquela que descrevemos como uma coisa sã, mas se quiserdes, observaremos também a que está inchada de humores. Nada o impede. Bem, estas determinações não bastam, ao que parece, a certas pessoas, nem este passado, mas acrescentar- lhes-ão leitos, mesas e outros objetos, e ainda iguarias, perfumes e incenso, cortesãs e guloseimas, e cada uma destas coisas em toda a sua variedade. Em especial, não mais se colocará entre as coisas necessárias o que dissemos primeiro – habitações, vestuário e calçado –; ir-se-á buscar a pintura e o colorido, e entender-se-á que se deve possuir ouro, marfim e preciosidades dessa espécie. É ou não?

— É – respondeu ele.

— Portanto, temos de tornar a cidade maior. A que era sã não é bastante, mas temos de a encher de uma multidão de pessoas, que já não se encontra na cidade por ser necessária, como os caçadores de toda a espécie e imitadores, muitos dos quais são os que se ocupam de desenho e cores, muitos outros da arte das Musas, ou seja, os poetas e seus servidores – rapsodos, atores, coreutas, empresários, artífices que fabriquem toda a espécie de utensílios, sobretudo adereços femininos.

E, em especial, precisaremos de mais servidores. Ou não te parece que carecemos de pedagogos, amas, governantes, açafatas, cabeleireiros, e ainda cozinheiros e marchantes? E vamos precisar ainda de porqueiros. Isto era coisa que na nossa primeira cidade não existia – pois não era preciso para nada – mas nesta, também necessitamos deles. E ainda carecemos de todas as outras espécies de gado, não vá alguém quere comer delas. Não é assim?

— como não?

— Portanto, também sentiremos muito mais a necessidade de médicos, levando esta vida, de que anteriormente?

— Muito mais, certamente.

— E a região que então fora suficiente para alimentar a população outrora, de bastante que era, se tornará exígua. Ou o que havemos de dizer?

— É isso.

— Portanto, não teremos de ir tirar à terra dos nossos vizinhos, se queremos ter o suficiente para as pastagens e lavoura, e aqueles, por sua vez, não terão de tirar à nossa, se também eles se abandonarem ao desejo da posse ilimitada de riquezas, ultrapassando a fronteira do necessário?

— Será inteiramente forçoso, ó Sócrates.

— Havemos então de fazer guerra, depois disso, ó Glaucon? Ou como há de ser? — Tem de ser assim – respondeu. (Rep., II, 372e 2 – 373e 4).

Sócrates concorda em descrever a passagem da cidade sã para a cidade doente, porque ao examinar tal cidade é possível “descobrir de onde surgem nas cidades a justiça e a injustiça” (372e 4-6). A descrição da passagem da cidade sã para a cidade doente é uma maneira de descrever também que o limite natural dos apetites humanos ultrapassa o que a natureza impôs aos outros animais.

Três questões estão vinculadas neste texto que expõe a passagem do necessário aos apetites. O primeiro é sobre a inflamação da cidade, que é imputada a sua vida sensual (IJȡȣij੾), isto é, a uma falta de disciplina dos apetites. A segunda concerne à singularidade do objeto das necessidades humanas, que resulta em sua multiplicação indefinida. A última é a abertura da necessidade a uma segundo registro: não é apenas a necessidade natural, mas também, sob a forma destas necessidades indefinidas, o supérfluo que se torna necessário.

[...] tu glorificas os homens que têm regalado os Atenienses lhes empanturrando disto que eles desejam e, assim dizem que aqueles fizeram a grandeza da cidade, porém não se dão conta de que, por sua culpa a cidade está gangrenada. Pois, sem levar em conta a moderação e a justiça acumularam de pratos e arsenais, muralhas, rendas e tributos e outras variedades deste tipo. (Górgias, 518e 2 – 519a4).

Contudo, na República, a inflamação é relacionada à moleza (IJȡȣij੾). Este mal provém de um defeito de tensão nas partes da alma que é o lugar onde se produz o ardor (IJઁ șȣȝȠȚİįȑȢ) e o alimenta. Ou como explica Sócrates a propósito do tirano, a tryphƝ é o resultado de uma falta de coragem para disciplinar os apetites (Rep., IX, 590b 3-4). O thymoiedes é o meio que faz barreira à tendência espontânea dos apetites a se multiplicarem e é subordinado à parte racional da alma. A tryphƝ designa uma tensão das faculdades, uma indisciplina dos apetites que não sofrendo mais o prazo quanto a sua satisfação torna-se tirânica. Este desleixo não é nem uma inércia ou uma apatia nem uma simples pressão permanente dos apetites, mas um humor cambiante, um excesso de apatia incapaz de se satisfazer por algo e que exige sempre mais: “[...] a vida indolente desenvolve nas crianças um humor melancólico, tendente à cólera e muito facilmente movido pelas ninharias” (Leis, VII, 791d7-9).

É por isso que em numerosas passagens dos Diálogos, a tryphƝ é relacionada à riqueza. A busca pela riqueza aviva uma reflexão e supõe um esforço para obtê-la, com a sua possessão que, pelos recursos que ela oferece, não incita ao esforço físico ou moral. No Crítias, os Atlantes “não se deixam embriagar pela moleza (IJȡȣij੾) resultante da riqueza” (Crit., 121a3-5). Na República, Sócrates recomenda não introduzir a riqueza na cidade, “porque (a riqueza) dá origem ao luxo, à moleza (IJȡȣij੾) e ao gosto pelas novidades”. (Rep., IV, 422a1-2). Na transição da oligarquia para a democracia, a preocupação exclusiva com o enriquecimento por parte dos cidadãos torna os seus filhos dispersos, inativos físico e espiritualmente e moles para resistir ao prazer. (Rep., VIII, 556b10; 556c1-3).

A tryphƝ se opõe à aretƝ, que não é adquirida sem esforço, disciplina e controle de si. O pensamento ético e político de Platão tem como tema recorrente a oposição entre tryphƝ e aretƝ. (Leis X, 900e7-11).

A tryphƝ está unida a uma felicidade ilusória. A tryphƝ se opõe também ao rigor da disciplina filosófica e à prática inteligente da aretƝ que ela implica: aceitar a tryphƝ da cidade doente é, pois, por um lado, ressaltar a incompatibilidade fundamental entre a filosofia e sua exigência do rigor, e, por outro lado, das práticas sociais e políticas das cidades empíricas.

É possível compreender a segunda questão porque a tryphƝ é relacionada à singularidade e à multiplicação excessiva de necessidades. Se, para Glaucon, a cidade descrita por Sócrates é uma cidade de porcos (372d5) é porque ela não comporta este lugar para a singularidade do objeto de necessidade que é constitutivo dos apetites humanos. Sócrates não se equivoca, ele procede pela distinção mais evidente e particularmente entre os objetos. Na cidade doente, não é preciso apenas acrescentar coisas necessárias como habitações, vestuário e calçado, mas acrescentar-se-á a variedade de cada coisa (Rep. II, 373a2-7). E esta diversidade indefinida de espécies de objetos que é a manifestação material e econômica da tendência à limitação dos apetites humanos.

Como última questão, é porque a necessidade da cidade doente se aplica ao supérfluo. O melhor exemplo para ilustrar essa questão é sobre o divertimento da cidade. Ele já está presente na cidade de porcos, contudo, de maneira bem simples, não necessitando de nenhum artifício: na cidade sã, os homens são servidos em juncos ou em folhas limpas, reclinam-se em leitos de folhagem de alegra-campo e mirto, banqueteiam-se com os filhos, bebendo vinho, coroados de flores, e cantando hinos aos deuses (372b3-6). Apenas os recursos do corpo são suficientes para a diversão, se canta, não se toca música. Do mesmo modo, as coroas de flores não precisam de nenhuma ferramenta para ser confeccionadas. Na cidade de porcos, a diversão é, portanto, reduzida ao mínimo e não requer nenhuma atividade econômica. Na cidade doente, ao contrário, Sócrates inclui o divertimento ao número de atividades humanas necessárias, mas o inscreve na esfera econômica.

O Estrangeiro inclui o “divertimento”, que compreende a ornamentação da pintura, com todas as imitações que servem para produzir, sejam as técnicas, seja a música, que não são realizadas apenas para o deleite (Pol. 288c1-6). A diferença com relação à passagem da República é que no censo das artes auxiliares que definem o setor econômico, a presença do divertimento se impõe como uma necessidade, como um dado antropológico e não como um sintoma de uma doença em si mesma inevitável. Na República elas aparecem na cidade doente. O que é significativo é que Platão distingue que a economia não se limita a procurar apenas o que é vital no sentido estrito. A importância da diversão aponta que ela deve também satisfazer isto que corresponde a uma necessidade antropológica fundamental, a do prazer gratuito. Sua finalidade não é, pois, puramente utilitária, se se compreende por utilitário isto que satisfaz uma necessidade imediatamente vital. Ela visa à produção do útil, que é mais ampla do que o utilitário, precisamente nisto que o útil é aberto: a dimensão do gratuito. A economia tem por isso relação com o supérfluo. A questão é saber em qual limite.

A necessidade de bens apresenta dois aspectos. De um lado, ela se impõe como um fato natural que não pode faltar em encontrar toda a descrição da natureza humana: se alimentar é, por exemplo, a primeira e mais importante de todas as necessidades, pois é condição indispensável para a sobrevivência individual. Por outro lado, a necessidade de bens é expressa como tal (373a5) na variedade qualitativa e quantitativa de objetos particulares sobre os quais ela comporta: alimentar-se é uma necessidade universal, mas a relatividade coletiva e individual de regimes alimentares pode justificar uma outra necessidade, uma necessidade de segundo nível. O que a distingue da precedente não é o fato de ser menos necessária, mas de ser maleável, até certo ponto, sobre os planos quantitativos e qualitativos.