• Nenhum resultado encontrado

2. AretƝ, propriedade e valor

3.4. A descrição da cidade sã

A combinação do princípio antropológico da multiplicidade das necessidades e do princípio da unicidade das tarefas tem por consequência inevitável a multiplicidade concomitante de agentes econômicos e de objetos e funções necessárias à sobrevivência da cidade:

— Logo, ó Adimanto, são precisos mais de quatro cidadãos para os fornecimentos de que falamos. Com efeito, não será o lavrador em pessoa, ao que parece, que fará o arado para si, se quer que seja perfeito, nem a enxada, nem os demais utensílios de lavoura. Nem por sua vez, o pedreiro, também esse precisa de muita coisa. E do mesmo modo o tecelão e o sapateiro. Ou não?

— É verdade.

— Ora os carpinteiros, ferreiros e tantos outros artífices desta espécie, associando- se à nossa pequena cidade, tornam-na mais povoada.

— Absolutamente.

— Mas não seria mesmo grande, se lhe acrescentássemos boieiros, pastores e os outros guardadores de gado, a fim de que os lavradores tivessem bois para lavrar, e os pedreiros, juntamente com os lavradores, pudessem servir-se de animais de tiro para os transportes, e os tecelões e sapateiros, de peles e de lãs?

— Não seria de modo algum uma cidade pequena, se tivesse isso tudo – replicou ele.

— Mas – disse eu – fundar esta mesma cidade num lugar tal que não precisasse de importar nada, é quase impossível.

— Precisará, pois, de outras pessoas ainda, que lhe tragam de outra cidade aquilo de que carece.

— Precisará.

— Mas, certamente, esse mensageiro, se for de mãos vazias, sem nada levar daquilo que precisam as pessoas de junto das quais há de trazer o necessário para a sua cidade, regressará de mãos vazias? Não é assim?

— Assim me parece.

— Portanto, é preciso, não só que se produza o suficiente nessa cidade, mas também produtos na qualidade e quantidade que eles necessitarem.

— É preciso.

— então a nossa cidade carece de mais lavradores e de mais dos restantes artífices. — De mais, com efeito.

— E, em especial, de mais mensageiros, dos que exportam e importam os produtos. Esses são os comerciantes, não é assim?

— Absolutamente.

— E se o comércio se fizer por mar, haverá ainda necessidade de muitos outros homens instruídos na labuta marítima.

— De muitos, sim.

— E então? Na mesma cidade, de que modo trocarão eles entre si os seus produtos? Por causa deles é que estabelecemos uma sociedade e fundamos uma cidade. — É evidente – respondeu ele – que por meio de compra e venda.

— Daí resultará para nós um mercado e a moeda, sinal dos resultados das trocas comerciais.

— Absolutamente.

— Mas se o lavrador, ou qualquer outro trabalhador, tiver trazido ao mercado algum dos seus produtos, e não chegar ao mesmo tempo em que os que precisam de adquirir a sua mercadoria, há de ficar sentado na praça pública, sem se ocupar da sua atividade?

— De modo algum – respondeu ele –. Mas há pessoas que, ao verem isso, se colocam neste serviço. Nas cidades bem administradas, são geralmente os mais débeis fisicamente, e inúteis para qualquer trabalho. De fato, têm de permanecer ali na praça pública, para comprar, por dinheiro, e novamente para vender, por dinheiro, aos que necessitam fazer alguma compra.

— é então essa necessidade – disse eu – que fará surgir os retalhistas, na nossa cidade. Ou não chamamos retalhistas aos que se instalam no mercado, para serem intermediários na compra e venda, ao passo que os que andam a viajar pelas cidades são os negociantes?

— Absolutamente.

— Há ainda uns outros servidores, segundo julgo, que, pelo seu intelecto, não seriam muito dignos de serem admitidos na nossa comunidade, mas são possuidores de uma força física suficiente para trabalhos pesados. Esses, vendem a utilidade da sua força e, como chamam ao seu preço salário, designam-se, julgo eu, por assalariados. Não é assim?

— Certamente.

— São um complemento da cidade estes assalariados, ao que parece. — Acho que sim.

— Ora então, ó Adimanto, já a nossa cidade aumentou até ficar completa? — Talvez. (Rep., II, 370c8 – 371e13).

Toda essa descrição se situa no aumento necessário das necessidades. Cada trabalho e serviço suplementares implicam o complemento de uma outra atividade ou produto da atividade: o lavrador precisará dos utensílios para a lavoura, do mesmo modo que o pedreiro, o tecelão e o sapateiro. As condições geográficas imperfeitas (370e 6-8) obrigarão do mesmo modo a introduzir os comerciantes. Apesar de os comerciantes aumentarem a produção do necessário (371c 7 – 371d 1-9), pois aumentam os meios para produzir o necessário, ainda não implicaria a desmedida. A cidade pode parecer completa (371e 10) para tanto que o necessário está submetido a uma medida estável, determinada naturalmente. Nesse estágio o modo de vida é simples e são satisfeitos os bens elementares, moderados pelas necessidades naturais:

— Examinemos, pois, em primeiro lugar, de que maneira irão viver as pessoas assim organizadas. Será de outro modo que não seja produzir trigo, vinho, vestuário e calçado? E, depois de terem construído casas, trabalharão, no verão, quase nus e descalços, mas, no inverno, suficientemente vestidos e calçados. Alimentar-se-ão

amassada; com isso farão uma boa massa e pães, que serão servidos em juncos ou em folhas limpas, reclinar-se-ão em leitos de folhagem de alegra-campo e mirto; banquetear-se-ão, eles e os filhos bebendo por cima vinho, coroados de flores, e cantando hino aos deuses, num agradável convívio uns com os outros, sem terem filhos acima da proporção dos seus haveres, com receio da penúria ou da guerra. Tomando a palavra Glaucon disse: — Põe os homens a banquetear-se sem conduto, ao que parece!

— Falas a verdade – repliquei –. Tinha-me esquecido, que também hão de ter um conduto. É evidente que hão de fazer cozidos com sal, azeitona, queijo, bolbos e legumes, coisas que há no campo. Houvemos mesmo de servi-lhes sobremesa de figos, grão-de-bico e favas, e torrarão ao fogo bagas de murta e bolotas, enquanto bebem moderadamente. E assim passarão a vida em paz e com saúde, morrerão velhos, como é natural, e transmitirão aos seus descendentes uma vida da mesma qualidade.

— Se estivesses a organizar, ó Sócrates – interveio ele – uma cidade de porcos, não precisavas de outra forragem para eles.

— Mas então como há de ser, ó Glaucon?

— O costume – respondeu ele –. Acho que devem reclinar-se em leitos, se não quiserem que se sintam infelizes, e que jantem, à mesa, iguarias como hoje há, e sobremesas. (Rep., II, 372a 3 – 372e 1).

Ao desejo de ter sempre mais e sobretudo mais do que os outros, a pleonexia, que, segundo Glaucon e Adimanto, anima a maior parte dos homens (Rep., II, 358c 3-4), Sócrates opõe nesta passagem o que ele estima ser “a verdadeira cidade”, no sentido de que ela é sã (372e 5-7). Em que sentido deve-se interpretar “a verdadeira cidade é aquela que é sã” (ਲ ਕȜȘșȚȞ੽ ʌȩȜȚȢ, 372e 5-7)? O adjetivo alƝthinos reflete em Platão ao caráter autêntico de uma coisa, por oposição a todo caráter aparente ou toda falsificação que busquem usurpar um título e uma função. Platão utiliza o termo para designar um verdadeiro governante (Rep., I, 347d 5), um verdadeiro legislador (Rep., IV, 427a 4), o regime autêntico por oposição ao falso (Pol., 301a), ou ainda os verdadeiros agricultores, daqueles que não se ocupam da agricultura (Crit., 111e 3). Neste sentido, uma coisa verdadeira é uma coisa que é “realmente”, não compreendida num sentido existencial, mas em um sentido “essencial”. Qualificando esta cidade de “verdadeira cidade é aquela sã”, Sócrates propõe a Glaucon um duplo modelo a ser atingido.

Para Glaucon, a humanidade é diferente por relação à natureza: ser homem consiste em sentir as necessidades mais variadas e mais numerosas que os animais, a situar-

se sob a regra do uso e não sob aquela da necessidade natural. E Sócrates concorda com Glaucon.

Ao contrário do que se observa nos outros animais, a necessidade humana não é uma pura determinação natural, não é uma falta que se satisfaz e renasce em intervalos regulares, sem jamais ultrapassar a medida disto que a necessidade natural impõe, mas se exprime sempre sob a forma de desejo insaciável, aos quais cada sociedade, em função de seus costumes e de seus valores, isto é, de seus usos (ȞȠȝȓȗİIJĮȚ, 372d 7), outorga suas formas e suas expressões singulares.

As sociedades empíricas, imperfeitas, para Platão, outorgam aos apetites sua “medida”, ou seja, sempre sua desmedida. Formando pouco a pouco pelas determinações históricas e culturais das sociedades onde eles aparecem, e que não fazem mais do que revezar sua tendência natural à expansão, os apetites sensíveis acentuam todas as relações humanas de sua insaciabilidade. É por isso que Glaucon julga erigir o fato presente (372e 1) em costume, pois é isto que se converterá à extensão dos apetites humanos. Se para Sócrates, a humanidade não se limita à vida dos porcos, isto é, todavia, a condição do nível dos apetites ligados ao corpo. A humanidade verdadeira não é possível pela limitação destes apetites ao necessário, isto que supõe a determinação de uma regra ou de uma medida não disto que lhe permite seus recursos (372b 8); com moderação (ȝİIJȡȓȦȢ, 372d 1), cuja vida animal oferece precisamente o modelo. Assim é possível compreender a inversão do valor simbólico do porco. Para Platão o porco simboliza a ignorância (Laques, 196c 10 – 197a 1). Para Sócrates, a bestialidade não se diferencia por relação ao uso (ȞȠȝȓȗİIJĮȚ, 372d 7), ou seja, aos costumes, como é para Glaucon, mas por um desregramento patológico dos apetites e inflamação indefinida das necessidades. Paradoxalmente, é pois a regularização e a limitação dos apetites dos animais que servem de modelo ao homem. Com esta diferença essencial que a limitação

é natural ao animal, mas não no homem, ela não pode ser outra coisa que o resultado de uma educação e de uma política.

É por isso que a cidade sã representa do mesmo modo um modelo econômico a seguir. É necessário organizar a economia da cidade justa de tal modo que ela limite os apetites ao necessário, de maneira a evitar os conflitos interiores e exteriores.

Esta cidade sã é uma cidade verdadeiramente e exclusivamente econômica: a economia por si mesma regula as relações sociais sem que haja a necessidade de se recorrer a uma instância política que lhe fornecerá uma regra. Mas para que exista uma cidade deste tipo é preciso que o homem seja totalmente animalizado. Reivindicando sob a forma anódina e aparentemente inofensiva dos pratos e do mobiliário (372c 2-3; d7; e1), surge a cidade doente e a desmedida econômica. Uma sociedade humana que ultrapassa o estado de uma “sociedade de porcos” parece tombar em definitivo no turbilhão de desejos ilimitados que a penetra, apesar dos melhores dispositivos institucionais e educativos. Por fim surge inexoravelmente o defeito diante do inimigo ou a dissolução interior na anarquia ou na tirania.