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As origens da noção de moeda – Marcel Mauss

Em seu estudo Les origines de la notion de monnaie, Marcel Mauss afirma que o dinheiro não é de modo nenhum um fato material ou físico, mas essencialmente é um fato social (MAUSS, 1914, p. 3).

Segundo Mauss, não há necessidade de estabelecer um começo absoluto, um nascimento ex nihilo, ao fazer estudo de uma instituição social, como é o dinheiro. Contradizendo a ideia recebida, observa-se, com efeito, que não haveria entre as sociedades conhecidas ou representadas por hipótese, nenhuma que foi desprovida por completo de noção ou meios análogos àqueles que são designados agora sob o nome de moeda. As pesquisas de Mauss são sob a forma mais primitiva, mais simples, mais elementar por assim dizer, da noção de dinheiro nas sociedades primitivas.

A hipótese defendida por Mauss é a de que certos termos utilizados em algumas dessas sociedades possuem sentido equivalente: de poder, de substância, de ação mágica, de coisa mágica (MAUSS, 1914, p. 4-5). Em outras sociedades, o dinheiro, ou tem um caráter de poder mágico-religioso, ou está unido à noção mais precisa de sacro, ou está relacionado à noção de talismã, como é o caso particular das tribos do noroeste americano. Para Mauss, em todo o caso, o caráter religioso e mágico do dinheiro, assim como, a noção de dinheiro, unida a um poder mágico, está presente em várias sociedades.

Segundo Mauss, o dinheiro, qualquer que seja a definição que se adote, é um padrão de valor e é também um valor de uso que não é fungível, que é permanente, transmissível, que pode ser objeto de transação e de usos sem ser deteriorado, mas que pode ser o meio de se procurar outros valores fungíveis, transitórios, de usufrutos, de prestações.

Mauss identifica que os talismãs nas sociedades primitivas têm essa função, cuja possessão pelo seu detentor lhe configuraria um poder que se tornava um poder de compra.

Nota-se que a análise de Les origines de la notion de monnaie é anterior a de Essai sur le don, entretanto, a intenção de saber como surgiu de repente uma noção de dinheiro, em grupos sociais que não tinham essa consciência, foi insuficiente. Não obstante, as investigações de como esses materiais começaram a manifestar-se na quantidade de dinheiro nas sociedades arcaicas e “primitivas” foi significativa.

Uma coisa, nas pesquisas de Mauss, é evidente: em muitas comunidades a noção de dinheiro se relacionava com a do poder mágico. Mas também o dinheiro — como medida de valor de uso, não fungível, permanente, transmissível, que se usa e serve para a transação sem se deteriorar — podia ser meio de compra para conseguir outros valores fungíveis, transitórios, usufrutos, prestações. Os talismãs também eram bens solicitados por todos, cuja possessão conferia um poder que se tornava poder de compra. Sua força obrigava aos súditos a prestar os serviços que pediam os chefes. Quando intervinha a ideia de “riqueza”, ainda que de modo muito vago, a riqueza dos chefes se expressava antes de tudo através de coisas que encarnavam seu poder e sua autoridade.

As observações de Malinowski e Simiand fizeram com que Mauss reconsiderasse o problema da origem da noção de dinheiro em uma nota elucidativa do segundo capítulo de Essai sur le don18.

Malinowski e Seligman fazem observações sobre o abuso do emprego da noção de dinheiro e consideram que não é possível aplicar-se aos braceletes ou às grandes lascas de pedras verdes, porque não eram, nem meios de intercâmbio e medidas de valor, nem objetos e símbolos de riqueza. Simiand fez objeções similares ao criticar o uso da própria noção de valor na descrição de sistemas sociais arcaicos e “primitivos”.

Todavia, como observa Mauss, se não se dá valor sem dinheiro e não se dá dinheiro antes que uns produtos especialmente apreciados, representantes materiais da riqueza tenham sido “despersonalizados” e só tenham relação com a autoridade pública, 

então valor e dinheiro são formas características da sociedade moderna de mercado, e apenas dela. Segundo Mauss, um uso tão restrito das categorias de valor e de dinheiro poderia resultar tão arbitrário como sua extensão ilimitada.

Em todas as sociedades arcaicas e “primitivas” — que não haviam amoedado e não amoedavam ouro, prata, nem bronze —, as conchas, as pedras e os metais preciosos haviam desempenhado funções de meio de troca e de pagamento, porém, não se equiparavam aos meios liberatórios modernos. Contudo, como afirma Mauss, além de sua natureza econômica e de seu valor, tinham mais um caráter mágico e eram principalmente talismãs. Além disso, ainda que tivessem uma circulação ampla dentro de uma sociedade e também entre as sociedades, todavia permaneceriam vinculados aos grupos e às pessoas. Tinham um valor subjetivo, individual, essencialmente instável, com relação ao número e a magnitude das transações nas quais intervinham.

Em outros termos, a função que tinham as coisas apreciadas nas sociedades arcaicas e “primitivas” correspondia à função que tinha o dinheiro na sociedade moderna. Não obstante, naquelas não se podia identificar um aspecto econômico em estado puro. Sua circulação envolvia instituições econômicas e não econômicas e situavam-se numa forma arcaica de troca que incluía — em um sistema único — matrimônio, serviços militares e jurídicos, cultos e riquezas.

Foi mais tarde que os objetos mágicos ou apreciados — adotados pelas comunidades previamente de poder de compra e usados para numerar as riquezas e fazê-las circular — se separaram dos grupos e das pessoas para serem instrumentos permanentes de medida do valor e também de medida universal, se não racional.

Para Mauss, os fatos sociais totais são mais que simples temas, elementos de instituições ou instituições complexas. São fenômenos jurídicos, econômicos, religiosos e também estéticos, morfológicos que envolvem toda a sociedade e suas instituições. O recurso do fato social total permite descrever as sociedades em estado dinâmico e fisiológico, não como se estivessem rígidas ou imutáveis, e, portanto, decompô-las e secioná-las em normas de direito, mitos, valores e preços.

Em suma, em virtude do fato social total, a realidade do social consiste em sua integração em sistema, e a dimensão propriamente sociológica coincide em seus múltiplos aspectos sincrônicos com a história.

Segundo Parise (2003, p. 19), na realidade, todos os grupos sociais nos quais se pode comprovar a existência do sistema do dom estão organizados pela consanguinidade. Em seu âmbito, o intercâmbio matrimonial possui um valor funcional permanente e assegura a existência do grupo como tal. Esse intercâmbio é o arquétipo de todas as manifestações baseadas na reciprocidade ou, dito de outra forma, nas três obrigações de dar, receber e corresponder, e constitui a trama básica na qual se produz a circulação das coisas, dos direitos e das pessoas. Por outro lado, quando superada a fase do dom, o intercâmbio passou a ser sobre todo intercâmbio econômico e surgiu uma ordem econômica que determinou os demais fenômenos socais, e quando os diferentes aspectos da vida social, até então unificados, se separaram e se estratificaram distinguindo-se uns dos outros, a estrutura da comunidade deixou de ser a de uma “árvore genealógica”: o grupo social já não era regido por laços de sangue, mas por relações de produção.

Ainda segundo Parise (2003, p 19), por conseguinte, as manifestações concretas do sistema do dom diferem entre si segundo suas formas de assentamento, produção e distribuição, mesmo que a comunidade, com um poder cada vez mais individualizado e uns grupos mais hierárquicos e organizados sobre bases locais, por sua própria dinâmica interna e só em presença de fatores externos, propicia situações que permitem superar esta fase do dom. Uma vez superada esta fase surge uma ordem econômica que serve de base para outros fenômenos sociais e os determina, porém, não em estado puro. A função determinante da economia se exerce por mediação de instâncias de caráter jurídico, político e religioso. As novas instituições podiam parecer uma continuação das antigas. Contudo, na realidade as velhas regras se separaram do “cordão umbilical” que as unia a uma estrutura social determinada, e sobreviveram nas novas condições como resíduos, como formas e funções distintas.

Para Parise, Mauss só se ocupou da substância do sistema do dom no direito e na economia gregos de forma indireta. Perfilhou seus temas na expressão “de casa em casa” de Píndaro (Olimpia, VII, 4) e nos parágrafos sobre eleutheriotƝs, megaloprépeia e megalopsychía de Aristóteles (Ética a Nicômaco, 1119b; 1126b). A partir disso, admitiu que na Grécia, do mesmo modo que em Roma, a distinção entre direitos reais e direitos pessoais, entre obrigação moral e contrato, entre ritos e interesses se manteve mediante a superação do sistema do dom e o desenvolvimento de novas formas de troca e de produção. Segundo Parise, Mauss não foi além disso. Um conhecimento limitado das normas e experiências jurídicas gregas o impediram de chegar a alguma conclusão sobre a função do dom antes de redigir os primeiros códigos (PARISE, 2003, p.20).

Segue-se agora uma apresentação e análise da noção de valor, baseada na interpretação de Louis Gernet19, que identifica a noção de valor e, de modo geral, a estimação dos bens na Grécia arcaica, dominadas por ideias e sentimentos múltiplos. Para Gernet (1995, p. 122), no período arcaico as atitudes mentais e corporais estavam associadas à própria ideia de valor, assim o autor relaciona a ideia de valor às questões psicológicas complexas. Por essa razão, um estudo sobre a origem do dinheiro não pode deixar de investigar a sua função simbólica.