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O problema do mérito como critério para a reciprocidade proporcional

CAPÍTULO IV A RIQUEZA COMO UM INSTRUMENTO DE AÇÃO E COMO

4. A relação de proporção na distribuição justa

4.1. O problema do mérito como critério para a reciprocidade proporcional

individual, mas na distribuição no Estado, como uma forma de justiça política. A transposição dessa relação de proporcionalidade na distribuição justa é feita de modo abstrato.

A igualdade, portanto, só pode ser igualdade de proporção: o indivíduo A está para o indivíduo B como o objeto a está para o objeto b; o justo na distribuição consiste numa certa proporção.

A proporção engloba numa e mesma igualdade os quatro termos na troca, é a única a incluir os quatro termos mínimos, ou seja, a equiparar duas relações, a relacionar duas díades (dois indivíduos e dois objetos) heterogêneas:

Com efeito, a proporção é uma igualdade de razões, envolvendo no mínimo quatro elementos (é evidente que a proporção descontínua envolve quatro elementos, mas acontece o mesmo com a proporção contínua, pois ela usa um elemento como se tratasse de dois e o menciona duas vezes; por exemplo, ‘a linha A está para a linha B assim como a B está para a linha C’; a linha B foi mencionada então duas vezes, de tal forma que se a linha B for considerada duas vezes os elementos proporcionais serão quatro); o justo envolve também quatro elementos no mínimo, e a razão existente entre um par de elementos é igual à razão existente entre o outro par, pois há uma distinção equivalente entre os indivíduos e as coisas (Et. Nic. V, 3, 1131b 8-10).

Aristóteles identifica essa espécie de proporção como proporção geométrica, pois é na proporção geométrica que a soma do primeiro e do terceiro termos está para a soma do segundo e do quarto assim como um elemento de cada par de elementos está para outro elemento. Segundo Aristóteles, a proporção em que se baseia a justiça distributiva não é uma proporção contínua, pois seus segundo e terceiro termos — alguém que recebe parte de alguma coisa e uma participação na coisa — não constituem um mesmo elemento.

O justo e o injusto para a justiça corretiva também é o igual e o desigual. Mas ao passo que na justiça distributiva igualdade significa proporcionalidade geométrica, na justiça corretiva trata-se de proporção aritmética (ਕȞĮȜȠȖȓĮȞ ਕȡȚșȝȘIJȚț੾) (Et. Nic. V, 4, 1132 a3) de igualdade quantitativa no sentido corrente. Contudo, a igualdade aritmética não pode reger a troca como constitutiva da sociedade. A igualdade aritmética intervém quando se trata de corrigir, retificar ou reparar. É somente quando se trata de corrigir desigualdades que a lei deve estabelecer uma igualdade numérica entre os indivíduos, “tratá-los como se fossem iguais” (ȤȡોIJĮȚ ੪Ȣ ੅ıȠȚȢ) (Et. Nic. V, 4, 1132a3), punindo por exemplo o adultério ou o roubo, julgando a ação em si, independentemente do caráter do indivíduo julgado. A lei contempla somente o aspecto distintivo da justiça e trata as partes como iguais, considerando apenas se uma das partes cometeu e a outra sofreu a injustiça. O juiz procura então igualar ganhos e perdas adquiridos e sofridos pelas partes, e fazendo isso, os mede.

Transformando assim paixão e ação em ganho e perda medidos, o juiz corrige subtraindo, por exemplo, ao que lesou uma quantidade igual à perdida pelo lesado:

Os nomes perda e ganho, [...] provêm da linguagem das trocas voluntárias. Dizemos que uma pessoa obtém um ganho quando ela tem mais do que aquilo que lhe pertencia; ela está sujeita a uma perda quando tem menos do que tinha anteriormente, por exemplo, nas vendas, nas compras e em todas as trocas[...]. Quando ao contrário, obtemos nem mais nem menos do que tínhamos e que a igualdade é garantida, dizemos que cada um tem aquilo que lhe pertence e que não há nem perda nem ganho. Assim, o justo é um meio entre o ganho e a perda, no que concerne às transações não voluntárias e ele consiste em dispor depois de uma quantidade igual à que havia antes (Et. Nic. V, 4, 1132b13-14).

Um exemplo do que é a proporção aritmética é primeiramente mencionado no Livro II da Ética a Nicômaco, na seguinte citação: “Por exemplo, se dez é muito e dois é pouco, seis é o meio termo, considerado em relação ao objeto, pois este meio termo excede e é excedido por uma quantidade igual. Tal é a média segundo a proporção aritmética” (Et. Nic. II, 6, 1106b6). Também é a primeira vez que Aristóteles indica que a igualdade aritmética não pode equiparar indivíduos:

Mas o meio termo em relação a nós não deve ser considerado de maneira idêntica; se dez minas71 de alimento é demais para uma pessoa ingerir e duas minas são muito pouco, não se segue necessariamente que o treinador prescreverá seis minas, pois isto também pode ser demais para uma pessoa que ingere o alimento, ou então pode ser muito pouco – muito pouco para Mílon72 e demais para um principiante em exercícios atléticos (Et. Nic. II, 6, 1106b7).

Utilizando o dinheiro como exemplo para uma distribuição proporcional significaria: um indivíduo A está para um indivíduo B em relação ao seu valor (ਕȟȓĮ), assim também o ganho monetário x e o ganho monetário y devem estar numa relação igualitária entre si. Ou no sentido da total proporcionalidade: a distribuição é justa quando o indivíduo A, com a sua soma monetária recebida, está para o indivíduo B, com a sua soma monetária recebida, do mesmo modo que o indivíduo A está para o indivíduo B. Contudo, essa versão quantitativa da justiça distributiva só é evidente para bens materiais, como o dinheiro, que pode ser expresso em números. Não obstante, mesmo nesses casos resta saber como é possível calcular em números a relação proporcional entre pessoas ou seu valor (ਕȟȓĮ). Para



71 Medida de peso equivalente a cerca de 600g. 72 Atleta do século VI a.C.

Aristóteles o que é justo, o mediano, está na proporção. Injusto é o que se contrapõe a essa proporção no sentido do excesso (ʌȜİ૙ȠȞ) ou da falta (਩ȜĮIJIJȠȞ) (Et. Nic. V, 3, 1131b16ss).

Aristóteles também aborda a questão da justiça relacionada com a distribuição na Política. Na Política o tema da justiça diz respeito a uma forma de justiça política. Isto é, o problema é saber quem deve reger o Estado e qual é a distribuição das funções regentes que é justa. Do mesmo modo que na Ética a Nicômaco, Aristóteles menciona na Política que o justo na distribuição deve residir na igualdade; como também indica que o critério da igualdade é o valor (ਕȟȓĮ) dos indivíduos. Mas alude que essa axia não é um valor interno do indivíduo, mas um valor que advém à pessoa por sua contribuição para a comunidade política ou para o seu telos:

Por exemplo: há quem considere que a justiça consiste na igualdade. Assim é, com efeito, mas não para todos e apenas para os que são iguais. Outros consideram que é justa a desigualdade; e na verdade assim é, mas unicamente para aqueles que são desiguais e não para todos. Ambos os arguentes ignoram os destinatários dos princípios da justiça e comentem erros de juízo. A razão é que estão a julgar em causa própria, e na maior parte dos casos os homens são maus juízes quando os seus próprios interesses estão em causa. E como a justiça é relativa às pessoas, e uma distribuição justa é aquela em que os valores relativos das coisas correspondem aos das pessoas que as recebem – ponto que já tratamos na Ética – os que advogam a oligarquia e a democracia concordam no que constitui a igualdade das coisas, mas discordam no que constitui a igualdade dos indivíduos. (Pol. III, 9, 1280a11ss)73.

Para Aristóteles, o fim da polis não é apenas uma aliança estabelecida para defender-se das ameaças externas ou como uma mera comunidade econômica. O fim da polis



73Para as citações foram cotejadas e utilizadas as seguintes traduções: ARISTÓTELES. Política. Tradução e

notas de António Campelo Amaral e Carlos de Carvalho Gomes. Lisboa: Vega Universidade/Ciências Sociais e Políticas, 1998. ARISTOTLE. The complete works of Aristotle. The revised Oxford Translation. Edited by Jonathan Barnes. v. 2. Bollingen series LXXI.2. Princeton University Press, 1995. ARISTOTE. Politique. Nouvelle traduction avec introduction, notes et index par J. Tricot. Paris: Vrin, 1982.

 

para Aristóteles é o bem viver de todos, a vida comum, plena e autárquica na qual todos realizam a eudaimonia (Et. Nic. V, 5, 1134a26 ss; Pol. III, 9, 1280b40 ss).

Como este fim é algo complexo, conduz Aristóteles à concepção de que diversos grupos podem contribuir para tal fim, em todo caso em níveis distintos. E é nesta questão que reside o problema: segundo Aristóteles, o justo em termos de distribuição deve ser de acordo com o mérito (Et. Nic. V, 3, 1130a22-26), contudo, a dificuldade se apresenta em determinar o critério de valor (ਕȟȓĮ) nas partilhas, ou seja, o que determina esse mérito. O problema é que tanto os regimes democráticos quanto os regimes oligárquicos baseiam-se num postulado deficiente de justiça. Para eles a justiça baseia-se numa concepção quantitativa e simétrica de igualdade, em detrimento de uma concepção proporcional e ponderada: os democratas revoltam-se contra os oligarcas porque julgam que, por serem a maioria, o justo é que todos possuam exatamente o mesmo, pelo fato de todos serem igualmente livres; os oligarcas revoltam-se pelos motivos contrários, ou seja, por serem poucos, julgam que o justo é que sejam todos totalmente desiguais, devido ao fato de nem todos possuírem riqueza igual. Entretanto, a justiça na distribuição deve ser em sentido absoluto e proporcional, mas numa perspectiva determinada e parcial: os oligarcas reclamam a desigualdade total apenas com base nas partes partilhadas, esquecendo que todos são iguais na condição livre; os democratas, por sua vez reclamam uma igualdade total apenas na base das partes partilhadas, esquecendo que nem todos possuem identicamente o mesmo.

O critério para impedir a distribuição equivocada de funções é a impossibilidade objetiva para determinar esse mérito. O justo em termos de distribuição em Aristóteles não está fundamentado no mérito entendido como dignidade do indivíduo, ou seja, como algo interior ao indivíduo, mas pelo mérito entendido como capacidade. Ou seja, cada um deve receber de acordo com as suas capacidades, em outros termos, proporcional ao que cada um traz a ȤȡİȓĮ (necessidade/utilidade) comum.

estava ciente de seu lugar ou de sua função no todo; e que esse lugar ou essa função resultam das capacidades próprias; que ela os aceita e por essa razão não ultrapassa os limites que lhes são estabelecidos.