• Nenhum resultado encontrado

A inversão e a conversão da quantidade em qualidade e do ter em ser: a

2. AretƝ, propriedade e valor

3.7. A inversão e a conversão da quantidade em qualidade e do ter em ser: a

Platão utiliza os termos pleonexia e pleonekhein para designar uma relação desequilibrada entre dois ou mais elementos. Estas expressões, cujo sentido é relativo, traduzem a ideia de uma superioridade. O verbo pleonadzǀ significa “ter demasiado”, “transbordar”, “ser imoderado”, “ensoberbece-se”, “exagerar”. Platão utiliza os termos pleonexia e pleonekhein com o sentido de “ter mais do que a sua justa parte de qualquer coisa”. Considerado como um estado de desequilíbrio, a pleonexia é um fenômeno universal. A presença deste conceito sobre os planos cosmológico, físico, antropológico e político permitem constituir uma teoria unitária do mal, o qual é então pensado em termos de relação e não em termos de essência.

O mal não é, com efeito, imputável nem ao homem nem ao universo, mas a certas relações desregradas do homem a si mesmo e do homem com o mundo. A ação política deve, portanto, segundo Platão, atuar sobre estas relações reformando a educação e a cidade.

Nas Leis, o conceito de pleonexia é importado ao domínio das relações humanas e políticas, como também, das doenças físicas, das catástrofes climáticas e da injustiça na política. Todas são provocadas por um desequilíbrio e uma desmedida:

[...] o que nos destrói é a iniquidade e a insolência combinadas com a loucura, e o que nos salva, a justiça e temperança combinadas com a sabedoria. [...] Mas asseveramos que a falta aqui mencionada, a extorsão ou ganho excessivo é o que é chamado no caso dos corpos de carne de doença, no caso das estações e dos anos de pestilência e no caso dos Estados e formas de governo, recebe o nome de injustiça. (Leis X, 906a8-10; 906c3-7).

Para Platão, a saúde se baseia na harmonia de certos fatores do corpo (o calor e o frio, a umidade e a secura); toda vez que qualquer um dos fatores desses pares de opostos apresentar-se em excesso (ʌȜİȠȞİȟȓĮ) a enfermidade se instala. O mesmo acontece no domínio atmosférico, causando geadas, granizo e doenças nos cereais, como por exemplo, a mangra no trigo. A analogia se aplica de modo metafórico, no corpo político, gerando injustiça. Da desordem climática à injustiça passando pela doença, a pleonexia é, portanto, a ruptura da harmonia de uma totalidade complexa.

Na esfera dos assuntos humanos a pleonexia não deve ser reduzida apenas à superioridade em riquezas ou em bens, mas também de uma tendência a querer dominar, uma “vontade de poder” universal. É o que mostra a narrativa de Giges na República (II 359c-e e 360a-b). Na interpretação de Glaucon sobre a justiça, os homens são justos não por vontade, mas pela impossibilidade de cometerem injustiças (II 359b6-8). Se o poder de fazer o que quiser fosse dado ao homem, sua conduta seria regida pela paixão. De modo que, mesmo aquele que por convenção é forçado a respeitar a igualdade, revelaria a sua ambição, devido à pleonexia, que toda natureza (ʌ઼ıĮ ijȪıȚȢ) persegue como um bem (II 359c3-5). A narrativa do ancestral de Giges ilustra este princípio antropológico: o anel que o torna invisível o induz a “seduzir a mulher do soberano, e com o auxílio dela, atacar e matar o rei e se assenhorear do poder” (II 360a9; b1-2).

Neste exemplo, a pleonexia não implica apenas a procura de uma vantagem material. Implica no desejo de dominar o outro. O ancestral de Giges se utiliza da invisibilidade não para se

agir entre os homens de modo “igual aos deuses” (II 360c2-3), ultrapassando o sentimento de finitude. Secundário da pleonexia, o desejo de enriquecer à expensa do outro, pode ser identificado na seguinte exposição:

[...] o injusto, preocupando-se com alcançar uma coisa real, e não vivendo para a aparência, não quer parecer injusto, mas sê-lo. [...] manda na cidade, por parecer justo; em seguida, pode desposar uma mulher da família quem quiser, dar as filhas em casamento a quem lhe aprouver, fazer alianças, formar empresas com quem desejar, e em tudo isto ganha e lucra por não se incomodar com a injustiça. [...] é ele que prevalece e leva vantagem aos adversários; essa vantagem fá-lo enriquecer [...]. (Rep. II, 362a4-6; b1-7; c1).

O discurso de Glaucon se assemelha ao de Adimanto, que julga que o homem injusto constrói uma fachada dissimuladora em trono de si mesmo e de seus atos, e tira proveito da lição dos oradores “para dominar impunemente” os seus semelhantes, e para se enriquecer (Rep. II, 365c1; d7).

A procura pelo enriquecimento e pela ostentação é a espécie mais comum da pleonexia pois, assim como o dinheiro, ela é um agente de conversão da quantidade em qualidade, do ter em ser, o que explica o sentido de “ter mais do que a sua parte em relação ao outro”. Esta é a expressão mais frequente desta tendência à dominação que constitui a pleonexia.

O ter, sejam os bens ou uma posição social, seria o signo do ser. Nos apetites, o ter comuta o ser por uma medida de aparência sensível. É possível compreender porque a pleonexia se manifesta sobretudo na procura pelo enriquecimento e pela ostentação: para “levar vantagem sobre”, é necessário “ter mais que” os outros e o exibir.

Fazendo uma analogia, é possível identificar que a relação entre timƝ e aretƝ em Homero é substituída em Platão pela relação tryphƝ e ijȚȜȠȤȡȘȝĮIJȓĮ (amor ao dinheiro). Assim como, a relação timƝ e moira (਩ȝȝȠȡİ IJȚȝોȢ) é substituída em Platão pela relação pleonexia e dysnomia.

A rivalidade em Homero é uma condição essencial para o reconhecimento pelo outro. A riqueza representada pelos signos pré-monetários são os signos exteriores dessa excelência. A relação timƝ e moira era condição essencial para uma repartição proporcional. A pleonexia

gera outro tipo de rivalidade. Não é mais uma rivalidade relacionada à timƝ, mas apenas um desejo de “levar vantagem e ter mais do que o outro”. E é esta rivalidade, cuja pleonexia é a causa, que conduz a cidade à decomposição.

A pleonexia intensifica o desejo de possessão material. Platão no Banquete faz uma analogia entre “a lei do amor” e o desejo de dominação (ʌȜİȠȞİȟȓĮ) dos governantes:

[...] a lei do amor nas demais cidades é fácil de entender, pois é simples a sua determinação [...]. entre os bárbaros, com efeito, por causa das tiranias, é uma coisa feia esse amor [...] é que, imagino, não aproveita aos seus governantes que nasçam grandes ideias entre os governados, nem amizade e associações inabaláveis. [...] assim, onde se estabeleceu que é feio o aquiescer aos amantes, é por defeito dos que o estabeleceram que assim fica, graças à ambição (pleonexia) dos governantes e a covardia dos governados; e onde simplesmente se determinou que é belo, foi em consequência da inércia dos que assim estabeleceram. (Banquete. 182b1-3; c1- 12; d1-5).

Sob o efeito da pleonexia esses governantes desviam de modo autoritário, para o seu próprio benefício, o sentimento de apego dos cidadãos, em detrimento das relações interindividuais. A pleonexia busca a exclusividade deste sentimento. Nas Leis, Platão atenua ligeiramente esta sombra antropológica e deixa antever uma possibilidade política: “sua natureza mortal o impelirá para a ambição pessoal e o egoísmo” (ਥʌ੿ ʌȜİȠȞİȟȓĮȞ țĮ੿ ੁįȚȠʌȡĮȖȓĮȞ) (Leis IX, 875b8 e s). Platão apresenta uma concepção matizada do homem, ou seja, de duas naturezas em que uma, a mortal, é o princípio dos problemas da vida política e econômica. A parte divina no homem torna a reforma possível. Esta diferença da posição mais radical exposta na República se explica pela perspectiva da reforma que aparece nas Leis: para que o homem conduza a ação do político em vista da unidade da cidade, é necessário supor que uma parte de si escape da influência da pleonexia.

A razão corresponde à parte divina, é a razão que dispensa qualquer lei acima de si mesmo, “pois nenhuma lei ou regra é mais poderosa do que o conhecimento” (Leis IX, 875c4-5).