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2. A MODERNIDADE, CIDADE E MEMÓRIA

2.3 AS CIDADES

2.3.4 A cidade em perspectiva

Sobre a cidade, no século XX era possível observar confrontações múltiplas que produziam as mais díspares divergências. Desse conjunto de conflitos, as ondas utópicas passam a pensar cidades alternativas, inspiradas, por vezes, em uma visão romântica de mundo, tal como propunha os primeiros defensores da preservação de inúmeras edificações na Inglaterra, no final do século XIX.

As expectativas daqueles que habitam a cidade, moldaram o ambiente para o desenvolvimento das ideias, ao mesmo tempo em que edificações tornavam-se a concretização dos interesses coletivos, crenças e mitos criados pelo discurso da própria sociedade. A partir da leitura das representações coletivas, provindas do imaginário da população, permitia-se o acesso a um campo muito profícuo, no âmbito do cotidiano, cuja integração disciplinar reuni diversos olhares sobre as formas específicas de organização social, do “viver urbano”. Por vezes, a cidade torna-se um “artefato”, “máquina”, “empresa”,

“sistema” ou mesmo um “texto”, uma espécie de alegoria onde se expõe em documentos

oficiais de diferentes grupos sociais interesses diversos e resistências às determinações de poder. Nesse contexto, despontaram inúmeros grupos que pretendiam desvendar os problemas causados pela industrialização, na medida em que propunham novos referenciais sociais e urbanos.

O próprio movimento que buscava dar ordenamento, alinhamento, recuperação dos espaços públicos e embelezamento dos bairros concebeu parte do pensamento moderno um século mais tarde. Entretanto, a crítica feita à cidade existente observava o quadro urbano com grande apreensão, mesmo quando as transformações econômico-político-sociais eram percebidas majoritariamente de modo positivo.

A idealização dos modernos implicava a ruptura com a cidade existente, buscando razão para construir uma sociedade igualitária. Para Touraine (1994, p.77), a racionalização impunha a destruição dos vínculos sociais, dos sentimentos dos costumes e das crenças chamadas tradicionais. O agente do século XX continuava sendo a razão, afinal “[A] razão não reconhece nenhuma aquisição, faz tábula rasa das crenças e formas de organização social que não descansem sem uma demonstração de tipo científico”. No entanto, a insistência na promoção do homem moderno em busca por um futuro promissor mediado pelo racionalismo e pela industrialização em que a cidade era sua materialização não obteve êxito.

A busca por soluções alternativas, segundo Leonardo Benévolo, decorre das propostas revolucionárias de pensadores do urbanismo, como Saint-Simon e Fourier, quando assinalam a necessidade de diminuir as aglomerações e as grandes cidades (BENEVOLO, op. cit. p. 567). Todavia, a rejeição à cidade existente não acontecia apenas pela proposição de uma cidade nova, e sim pela perplexidade ante o turbilhão produzido pelas grandes transformações econômicas, sociais e políticas que conduziam a uma resposta ao inverso: se, para uns, as grandes modificações exigem uma nova cidade; para outros, a expansão urbanística deveria ser esquadrinhada nos tempos passados.

A nostalgia pelas relações existentes da cidade precedente à era industrial é representada pela valorização de uma morfologia anterior. A defesa do passado, porém, não decorre de uma eventual valorização das estruturas urbanas herdadas, e sim da negação de elementos constituintes dos novos tempos, sucedidos justamente após grandes mudanças tecnológicas e econômicas que configuravam um novo tempo que necessitou se materializar em novos espaços, exigindo assim a expansão urbana.

Os modernos pensavam a “ordem permanente”, ocupavam-se em descrever a cidade perfeita e julgavam que isto se manteria. No entanto, o projeto positivista, o tecnocentrismo e o racionalismo, associados ao planejamento das cidades, das ordens sociais e absolutas demonstrariam mais tarde que a noção do progresso linear se tornara falível (HARVEY, op. cit. p. 19), levando em conta as mudanças em diversos campos do conhecimento bem como as normas estruturadas pela política, economia e cultura.

Na primeira metade do século XX, embora grupos preservacionistas estivessem se organizando na Europa, a ideia de rompimento com o passado se fortalece transformando o espaço construído. Para CHOAY (2003, p.43), esse processo de esquecimento do passado inaugura novas formas de pensar a urbe, nas quais “preservar na construção das cidades, segundo as normas habituais, seria mais que um erro”. A revisão crítica do urbanismo progressista levou as intervenções a se preocuparem com uma cidade como organismo vivo,

que necessitava ser salubre. Não era plausível a preservação do espaço edificado já que, como afirma Choay, “a cidade não é uma múmia, a ser colocada em um museu. Referenciada a um lugar, a cidade evolui.”

Logo, o processo da urbanização, a qual se iniciou com a Revolução Industrial, colocou grande parte das cidades ocidentais sob ameaça da destruição e da readequação do espaço. Tal prenúncio foi fortalecendo-se a partir das primeiras décadas do século XX, à medida que ocorria a consolidação dos conceitos estruturantes do urbanismo vinculado ao Movimento Moderno15. Na maior parte das cidades ocidentais, os conceitos foram transformados em políticas públicas de duas vertentes claras: por um lado, a nova sociedade surgiria de uma nova malha urbana; por outro, as mudanças econômicas e sociais desenhariam a nova cidade democrática e igualitária. Os defensores da forma concebiam desenhos da cidade idealizada, enquanto para os defensores das mudanças estruturais a forma urbana não importava, já que seria adequada à experimentação em uma sociedade socialista. Dessa forma, os conceitos rompiam com a herança recebida e, por vezes, faziam tábula rasa das edificações remanescentes de período históricos caracterizados pelo ecletismo. Essa ruptura acontecia com a forma, com o espaço, com o significado, com a memória: pouco seria o acervo preservado, transformando a cidade histórica em cidade moderna.

Esse seria o ponto de partida para uma análise inicial sobre o planejamento das cidades a partir de um novo quadro teórico e seu encontro às tecnologias modernas, já em desenvolvimento no final do século XIX, e, como os centros urbanos europeus, depois de reconstruídos, forneceram modelos para implantação do urbanismo latino-americano.

No que concerne às cidades que receberam grande contingente de imigrantes, esses projetos estavam influenciados pela idealização, uma espécie de utopia na medida em que buscavam, através do racionalismo, da organização, do modelo geométrico, uma garantia de ordenamento com fins de progresso perene. A idealização sobre o planejamento das cidades permanecia como fio condutor dos administradores após revoluções liberais. A hegemonia comercial e industrial lançou as bases de mudanças da cidade que seguiam por profundas transformações impulsionadas pela revolução da tecnologia industrial.

15 O movimento moderno repercutiu através da busca pelo domínio sobre a metrópole como totalidade, projetado

de forma fechada. As táticas e condições variavam de lugar para lugar, mas havia a tendência de uma experiência de produção e planejamento em massa, como meio de lançar um vasto programa de reconstrução e reorganização. Era uma nova versão, rejuvenescida do projeto do Iluminismo para justificar o quadro teórico e as ações propostas por seu grupo de engenheiros, políticos, construtores e empreendedores. Exemplo disto foi o CIAM – Congresso Internacional de Arquitetura Moderna – Em 1927, o concurso para a Liga das Nações e a Exposição de Stuttgart demonstraram que um grande número de arquitetos em várias nações da Europa trabalhava com métodos similares e que suas contribuições são, com efeito, compatíveis entre si. Le Corbusier era um dos expoentes desse movimento.

Deve-se lembrar que a Inglaterra, ainda no século XVIII, foi a pioneira na criação de um novo tipo de cidade que se relacionava com a produção de bens em massa. Cabe lembrar que esta revolução teve influência na construção do ambiente urbano, sendo possível devido à grande quantidade de carvão, ao desenvolvimento comercial proporcionado pelo contato que a Inglaterra possuía com o Oceano Atlântico, pela utilização de seus rios como fonte de energia elétrica e, ainda, como meio de transporte. Outros fatores que fomentaram o crescimento industrial inglês foi o rompimento da hierarquia católica estratificada desde a Idade Média, mesmo que ainda a aristocracia tenha continuado influente, houve um cenário ideal para os primeiros inovadores da antiga classe artesã.

Os empreendimentos franqueados por vastas fontes de matéria-prima e novos mercados fora da Europa deram o salto para “o raiar da produção capitalista”, segundo Karl Marx. O capital de empreendimentos imperiais, como o algodão, tabaco e escravos, forneceu boa parte do financiamento necessário para que a ilha desse um salto de cabeça e rompesse as fronteiras do mundo industrial. Nesse ínterim, volta-se a pensar o planejamento da cidade como uma espécie de produto da ação humana em que se confrontam dois modelos: o ideal e o real.

Conforme Argan (1992, p. 73), a representação prefigura a construção da cidade ou sua remodelação, desde os exemplos mais típicos apresentados nos períodos “clássicos” da história da arte e do urbanismo. A elaboração sobre os modelos urbanos foi expressa nos trabalhos dos arquitetos renascentistas no século XV, passando pelas as idealizações iluministas em pleno século XVIII. O desejo de interferir no espaço citadino, sinal estruturante da longa duração, tinha condição relevante já que atendia às exigências econômicas, políticas e sociais. Isso animava a planificação renascentista, e não por acaso, nesse mesmo contexto, começaram a aparecer os primeiros esboços de uma teoria sobre a cidade que passa a concebê-la como expressão da sociedade.

Na esteira do raciocínio de ARGAN (1992, p.74), a cidade ideal era pensada como uma obra de arte. Todavia, revela “sempre existe uma cidade ideal dentro da cidade ou sob a cidade real, distinta desta como o mundo do pensamento o é do mundo dos fatos.”

Aqueles que atuam sobre a materialidade urbana tinham um ponto de referência em comum: a aspiração; entretanto, ao definirem sua projeção, passam a divergir, pois o produto de sua imaginação contém visões de mundo distintas, por vezes incompatíveis. O que seria

uma cidade ideal positivista do século XIX não seria a mesma coisa para um romântico ou um Fin-de-Siecle16, mesmo circunscritos no mesmo período histórico.

Por vezes, estes arquétipos permanecem velados sob uma forma de discurso, nem sempre conscientes, e são conduzidos por intelectuais em diferentes regiões geográficas e durante determinado tempo. No momento de sua materialização, a cidade ideal torna-se ponto para medir aspectos que ainda não foram implantados e, por isso, devem ser modificados, alterados, diminuídos de acordo com a intenção do grupo que o constrói. Daí, então, surge o antagonismo entre projetos com visões distintas de mundo; na medida em que aquela sociedade vivia o mais paradoxal dos mundos, como nos revele Dickens (1859)

Era a melhor época de todas, e a pior época de todas, era a época da sabedoria e da loucura, era a época da fé, era a época da incredulidade; era a estação das Luzes e a estação da Escuridão; era a Primavera da esperança e o Inverno do desespero; tínhamos tudo a nossa frente e nada a nossa frente; íamos direto para o Céu, e em direção ao oposto do Céu; em suma, estava tão afastada da época atual que algumas das mais proeminentes autoridades mais insistiam em qualificá-la somente no superlativo, como boa ou má. (DICKENS, 2010, p. 3)

Com a cientificidade, desenvolvimento de técnicas construtivas e novas ordens teóricas sobre a sociedade e seu futuro, a premissa “indústria” passou a ser sustentada no século XIX e fortaleceu-se no século seguinte. Os males a que Dickens fazia menção seriam aqueles que provinham da falta de coordenação entre o progresso técnico-científico e a organização da sociedade; em especial a falta de políticas para melhor a qualidade de vida das pessoas decorrente das mudanças econômicas.