• Nenhum resultado encontrado

2. A MODERNIDADE, CIDADE E MEMÓRIA

2.1 A MODERNIDADE

2.2.3. Imigração, Literatura e Utopia

Para além desse processo, Brasil e Argentina tiveram parte de seu contingente populacional formado por imigrantes italianos, produto da incapacidade da indústria da pátria recém-formada de absorver a mão de obra disponível ou ainda de incluir as camadas populares. De igual maneira, entre os países sul-americanos, os imigrantes italianos estavam circunscritos ao descarte do excedente populacional, expulsos do processo produtivo, em função do desenvolvimento de relações capitalistas de produção europeia, efetivado pelo recém-instaurado “Estado Unitário” (IOTTI, 2010, p. 14). Dessa forma, uma parcela significativa da população italiana foi movida pela utopia da Terra Prometida.

É necessário ponderar aqui que “A Terra Prometida”, dos italianos se aproxima

semanticamente da Utopia, onde se propõe um final que é capaz de mobilizar esperanças e energias suficientes para os andarilhos suportarem os infortúnios. O caso mais emblemático no qual se faz este tipo de referência é o texto bíblico Êxodo. Nele, Iahweh aparece a Moisés e o incumbe de pedir ao Faraó do Egito para libertar os hebreus da escravidão, prometendo- lhes um território para construir uma nação forte e independente. Subjugados por um governante autoritário que impõe duras sanções, entre elas o trabalho escravo e a pena de morte às crianças do sexo masculino, os hebreus passam a construir representações mentais

sobre a Terra Prometida. A partida de Ramsés, no Egito, até a “terra boa e vasta, terra que mana leite e mel”, acontece após o sacrifício dos primogênitos, que constitui a décima praga

de Iahweh sobre os egípcios. Em uma recente análise sobre esta alegoria, ARENDT e PAVIANI (2006. p.219) demonstram que a migração não se dá, porém, sem esforços e suplícios de toda ordem, como travessia de desertos, sede, fome e batalhas sangrentas. Tais sacrifícios assumem, no seu conjunto, a forma de um rito de passagem, apresentado pelo relato bíblico como algo imprescindível para o propósito de alcançar a Terra Prometida, onde pôr fim, o sofrimento, precisa ser aceito com resignação, derivando, por sua vez, no merecimento.

Deve-se, no entanto, levar em conta as especificidades dos grupos imigratórios e as inúmeras expectativas deste grupo de homens e mulheres. Afirmar que todos estivessem movidos pela mesma oferta simbólica da terra prometida, seria algo que demandaria uma análise mais complexa. Entretanto, só existe imigração na medida em que determinado grupo pretende alcançar algo que não possui, inclusive uma vida melhor. No caso da imigração italiana para a América tratou-se de um considerável deslocamento populacional que não fora

um fato isolado, tampouco italiano e estava ligado ao conjunto das grandes transformações históricas ocasionadas pelo capitalismo inglês.

Como lembra DEVOTO (2006, p.97) dentro desse movimento, no caso argentino, boa parte da população imigrante, após sua chegada, percebeu o tipo de obstáculo que teria de transpor, na medida em que as possibilidades de ascensão eram limitadas pela elite local que reagiu com violência aos que começavam a conquistar os mesmos diretos que os cidadãos bonaerenses, habitantes da província de longa data. Contudo, apesar da exclusão, das perseguições dos grupos nacionalistas e das restrições legais, no início do século XX, o estrangeiro passava a ser o principal habitante da cidade: ocupava postos de trabalho, ingressava na universidade e começava a destacar-se no campo cultural.

Com o decorrer das décadas, alguns imigrantes conseguiram enriquecer e, aos poucos, fazer parte da nova classe média letrada na sociedade argentina, enquanto o patriciado passava a desempenhar um papel cada vez menos importante na vida econômica, política e cultural do país. No caso argentino, já no final do século XIX e início do século XX a literatura já era empregada por alguns autores, tais como Carriego, Lugones e Borges, como ferramenta de destaque histórico e fundamentação mítica da cidade afim de ajustar a realidade a uma imagem ideológica justificando a posição de destaque das elites, detentoras do poder local (FANON, In PIMENTEL, 2002, p.5).

No caso brasileiro, especificamente na região nordeste do estado do Rio Grande do Sul, um dos principais destinos dos imigrantes organizadas pelo Império Brasileiro, nas demarcações das zonas coloniais italianas, houve desde seu início uma busca pela modernização, paralelamente ao esquecimento do passado colonial, associado ao atrasado do campo. Algumas obras traduzem este sentimento localmente, porém apenas no final do século XX onde Caxias é apresentada como cidade, fonte de indústria e portanto, “desenvolvida.

Como efeito difundiu-se a construção de mitos locais bem como a invenção de uma história em particular. Na construção desse imaginário, a trilogia de José Clemente Pozenato10 remete à representação das fases desenvolvimentistas: na obra A Cocanha11, inicia-se o

10 José Clemente Pozenato é escritor romancista descendentes de italianos. Iniciou a carreira literária em 1967, participando da coletânea de poesia “Matrícula”. Em poesia, publicou ainda: “Vária Figura”, “Carta de Viagem”, “Meridiano” e “Cànti Rùsteghi” (Cantos rústicos). Em 1985, saíram a novela policial “O caso do martelo” e o romance “O quatrilho”. Pozenato publicou ainda “O caso do loteamento clandestino” (1989), “O caso do e-mail” (2000), “A cocanha” (2000) e “A Babilônia” (2006).

11 “A Cocanha” é um país mitológico, conhecido durante a Idade Média. Nesta terra mitológica, não havia

trabalho, e o alimento era abundante; lojas ofereciam seus produtos de graça, casas eram feitas de cevada ou doces; sexo podia ser obtido livremente; o clima sempre era agradável, o vinho nunca terminava e todos permaneciam jovens para sempre. Vivia-se entre os rios de vinho e leite, as colinas de queijo (queijo chovia do céu) e leitões assados que ostentavam uma faca espetada no lombo.

processo de colonização da terra prometida e da terra da fartura; em O Quatrilho, a colonização se dá através da alegoria de um “jogo de cartas” econômico onde seus personagens podem enriquecer ou perder suas escassas economias; já no romance A Babiolônia, o enriquecimento de um grupo de habitantes da cidade e a posterior invenção de um espaço urbano como símbolo desta prosperidade é o centro da obra.

Em especial, na obra “A Cocanha” existe uma recorrência à história da “terra

prometida”, que serve como ponto de partioda para as demais obras, neste caso como se a

história da cidade estivesse em progresso contínuo, como uma linha reta que leva invariavelmente à Modernidade. A literatura serviu assim, para formar o imaginário coletivo com o poder de projetar para o futuro os sonhos e as expectativas coletivas, cumprindo a função de desafogo dos momentos de opressão política e de carestia alimentar.

É possível observar que o campo é tratado como de ponto de ascendência para um desenvolvimento que se tornará completo na urbe, tema de outra obra literária, “O Quatrilho” onde o imigrante se torna o empreendedor.

Assim, estas obras literárias constroem o imaginário social12 fortalecendo determinados valores que ficam ainda mais implícitos em datas comemorativas e na organização da morfologia urbana, como fator preponderante de organização do poder.

12 Composto por sonhos, mitos, imagens e experiências coletivas que transcendem a cultura material, o

imaginário social constitui um ponto de referência no vasto sistema simbólico produzido pelas coletividades. O FIGURA 1- Descrição da terra de Cocanha, 1606, Discritione del paese di cuccagna (terra da fartura).

A visão sobre a cidade pode tornar-se um olhar mais acurado sobre a matriz material das formas culturais, da mentalidade, da ruptura política ou dos interesses econômicos. Assim, os homens que tratavam o projeto Moderno da emancipação pensaram a materialização de sua proposta como finalidade a ser alcançada. A constante construção das cidades, além de frequente, possuía diretrizes na organização, controle e manutenção da

“saúde do corpo” ora criados. Entretanto, durante o transcurso do século XIX para o XX,

frente a inúmeros acontecimentos quase que instantâneos, o propósito inicial não foi alcançado. Conforme proposição de Françoise Choay (2001, p. 9), o urbanismo buscava resolver problemas de uma cidade firmada nas primeiras décadas do século XIX através de seu planejamento já que a sociedade industrial “começava a tomar conta de si e a questionar suas realizações”.

Contudo, a sociedade industrial teve como resultado o urbano e nele, implicitamente, estão os traços de identidades culturais, onde na tese aprofunda a comparação de duas cidades detentoras de uma mescla de elementos intelectuais: modernidade europeia e diferença campesina ou rio-pratense, aceleração e angústia, tradicionalismo e espírito renovador,

imaginário designa identidades, elabora e reelabora representações, estabelece e distribui papéis e posições sociais, exprime e impõe crenças comuns, bem como constrói códigos de comportamento. Ele cumpre, em suma, a função de regular e orientar a vida social dos indivíduos, catalisando os interesses comuns dos grupos. Cf. BACZKO (1986); DURAND (1988); PATLAGEAN (apud LE GOFF, 1990); MAFFESOLI (1984, 2001).

FIGURA 2: A terra de Cocanha – 1567 Pieter Bruegel. Diferentemente de Bruegel, o Ethos do trabalho na região de colonização Italiana produziria uma representação afastada da preguiça.

vanguarda e identidade patrimonial. A cidade seria a perspectiva da realização de diversas utopias. Dentre elas uma tornou-se vitoriosa, a utópica racionalizadora proposta antes mesmo do Industrialismo e do Iluminismo, atravessando diversas etapas até seu período mais preocupante, quando incidiria a falta de identidade.